O Relógio de Estrasburgo
Em pleno século XIV. O sol
brilhante, num céu sereno e límpido de um dia de alegria, derramava-se em
torrentes sobre a catedral de Estrasburgo. Voltada para o oriente, segundo o
rigor do simbolismo religioso, recebia a luz do alto, como um cenáculo em que
as línguas de fogo vinham revelar os mistérios da vida e a serenidade, que ela
havia de infundir aos tristes que se acolhessem, corridos das tempestades do
mundo, na tranquilidade do seu recinto. A luz refletia-se coruscante das
vidraças, que ostentavam um rosicler das cores mais caprichosas e vivas; cada
pedra, cada ângulo, cada saliência destacava-se mostrando os rendilhados e
lavores esquisitos; a torre parecia então mais altiva, não topetava com as
nuvens, perdia-se na profundeza do espaço azulado e puro. Era um belo dia de
primavera.
Diante da catedral majestosa
foram-se agrupando pouco a pouco alguns vultos ociosos; e, atraída na razão
direta das massas, instantes depois a multidão flutuava impaciente, como quem
espera um prodígio anunciado, um eclipse. Não era nenhum eclipse, nem tampouco
o aparecimento de um cometa, que então fazia tremer os pontífices e os reis.
Não era mesmo procissão esplêndida, que o povo e os amadores de tertúlias
estavam esperando com ansiedade. O que seria então?
Uma figura estranha, embuçada num
tabardo escuro, chapéu emplumado ao uso da corte, vinha montado, a passapelo,
num cavalo fouveiro; custava-lhe a romper por entre a turba apinhada;
estrangeiro ali, não quis atropelar ninguém, e resolveu esperar que o concurso
fosse diminuindo.
— O que está toda esta gente aqui
a fazer, num dia de trabalho? — perguntou o desconhecido para um rapaz, que
parecia esconder-se entre o vulgo, com um ar de tristeza e de uma dor
indizível. — Há alguma procissão ou festa de jubileu? Ainda as portas da
catedral estão fechadas.
— É certo que vindes de bem
longe, — volveu-lhe vivamente o pobre rapaz — pois que ainda vos não chegou a
fama do grande Relógio de Estrasburgo. É uma maravilha da Alemanha. Não vedes
aquela estatuazinha da Virgem? Diante dela, vêm ao bater do meio dia os três
Reis Magos com seus presentes, e o Galo autômato, que lá está, sacode as asas
logo que o sol toca o zênite.
O cavaleiro não teve tempo para
compreender o que ouviu, porque um sussurro imenso, repentino, burburinhou por
toda a praça. O carrilhão de Estrasburgo dava meio dia. Ficaram boquiabertos,
atentos esperando o aparecimento dos Reis Magos. Sentiu-se primeiro o ruído
estrepitoso de umas asas pesadas, depois o clangor de uma voz ênea, soturna. O
cavaleiro estava pasmado com o que via. A fama do Relógio de Estrasburgo
correra as partidas do mundo. Os palácios, os mosteiros, os castelos desejavam
uma maravilha igual. Ignorava-se o nome do artista. O cabido da catedral
ufanava-se com tão magnífico e singular artefato.
— Oh! diz-me, — acudiu o cavaleiro,
saindo do espasmo da admiração — diz-me quem fez esta obra prodigiosa, que é a
inveja de todas as cidades do mundo! Porque se não fala no nome dele? Onde está
o artista? Venho de França para vê-lo.
— Perguntais, nobre cavaleiro,
como se eu pudesse violar tal segredo! Mal sabeis que as vossas palavras
acordam na minha alma uma dor profunda como um eco num páramo aziago. Quem fez
o Relógio, perguntais vós, e a glória tenta-me, precipita-me, impele-me a
arriscar a vida! Foi o meu pai! — E as lagrimas de alegria e pesar foram-lhe
arrasando os olhos, até que rompeu num choro insofrido de criança. O cavaleiro
apeou-se e estreitou-o nos braços.
— É a saudade do teu pai, que te
lava o rosto com esse pranto de ingenuidade e amor? Não soube a morte respeitar
tão preclaro engenho? E eu que vinha da parte de Carlos V, de França, para
visitá-lo e falar-lhe!
— Ele ainda vive, senhor. Mas que
vida! Oh! antes a morte o tivesse envolvido nas suas trevas geladas; antes
houvesse nascido sem aquela luz do talento, que é sempre a predestinação do
martírio.
A praça estava já deserta, e os
dois partiram enleados nesta conversação.
Chegaram à oficina do relojoeiro.
Era um velho; tinha o rosto escondido entre as mãos, como quem se abismara numa
abstração intensa, ou numa grande e entranhável agonia. O estrangeiro
permaneceu hirto sob a soleira da porta; não se atrevia a interromper os
processos misteriosos daquela mente perscrutadora. A criança aproximou-se com
familiaridade, e segredou-lhe longamente umas palavras mal articuladas e
confusas. O velho ergueu então a fronte banhada numa alegria suave, e voltou-se
para a porta:
— Buscam-me da parte de el-rei
Carlos V de França? — perguntou ele com um ar afável e indicando um assento ao
desconhecido.
— Em verdade, el-rei me envia
aqui.
— E o que pretende de mim, que
nada posso, el-rei, que tudo manda?
— Conhecendo a vossa boa fama,
vendo que enriquecestes a Alemanha com essa maravilha do Relógio de
Estrasburgo, ele quer também colocar na torre do palácio da Justiça uma
máquina, que dividindo com justeza as doze horas do dia, ensine a observar a
justiça e as leis.
— Como o não serviria eu de boa
vontade, se me não houvessem apagado para sempre o lume dos olhos. Não vedes
estas órbitas vazias?
Cegaram-me. Há já dezesseis anos
que vivo mergulhado nestas sombras cerradas, que me antecipam a escuridão tétrica
do sepulcro, mas que me prolongam a vida, no abandono da desgraça, para sofrer
a cada instante as mais excruciantes provações. Eu vivo ao desamparo; nem sei
já trabalhar.
Nesta solidão do espírito, para
esquecer o tédio e a desesperação que me pungem, eu invento maquinismos
complicados, que o meu pobre filho executa. É ele o herdeiro do meu engenho.
Cada pancada do relógio no carrilhão da catedral, é uma palavra de sarcasmo, um
insulto vibrado por uma língua satânica, só entendida por mim. Vou contando as
horas na mudez das noites de insônia, e cada uma me descreve com mais feias
cores esta morte onde fui precipitado em vida.
Havia nas palavras do velho um
misto de resignação e dor, uma conformidade, uma santidade admirável. A fronte,
enrugada pelos anos e o estudo, pendia-lhe sobre o peito; o filho ainda
imberbe, engraçado, ingênuo, estava de pé ao seu lado, mudo, com os olhos no
chão.
— Como houve mãos tão bárbaras,
que ousaram pôr diante do vosso espírito, para sempre, a sombra eterna da
morte? Foi o acaso? Foi a malvadez que vos despenhou nessa desgraça? Seria a
inveja quem vos suplantou à traição, vendo-se obrigada a admirar os artefatos
que não podia exceder? Oh, contai-me. Não! não! tenho horror de ouvir; deve
custar-vos muito isso. El-rei há de sabê-lo e acudir-vos.
O velho ergueu lentamente a
fronte; pousou as mãos sobre a cabeça loira do filho, brincando distraído com
os cabelos anelados. Depois de um momento de indecisão, começou:
— O bispo João de Lichtenberg
encomendou-me um relógio grande para a torre de Estrasburgo. Era preciso que as
horas canônicas fossem observadas com escrúpulo; as irregularidades na divisão
do tempo causavam graves inconvenientes às rezas e ofícios divinos do coro. Eu
trabalhei dois anos consecutivos; tinha empenhado naquela obra a minha fama.
Inventei um calendário em que representava as indicações das principais festas
móveis: ao lado pus-lhe um quadro em que estavam escritas em verso as
principais propriedades dos sete planetas; ao meio coloquei-lhe um astrolábio, em
que os ponteiros notavam o movimento do sol e da lua, as horas e os quartos. Ao
alto estava uma estátua da Virgem, perante a qual se inclinavam, ao dar do meio
dia, as figuras dos três Reis Magos. Ficaram espantados com a maravilha da
obra; soou por toda a parte a fama dela. O povo aglomerava-se na praça para
ver. O cabido receou que os outros mosteiros ou as cortes da Europa quisessem
ter um monumento igual. Como impedi-lo? Uma noite, estava eu descansando do
trabalho assíduo, ímprobo que levava, quando me bateram à porta. Vieram
dizer-me que o relógio estava parado. Levantei-me à pressa, aterrado, confuso,
e dirigi-me para a torre. Quando ia subindo, e já a uma altura vertiginosa,
apagaram-se de repente os archotes; os que me acompanhavam, lançaram mão de mim
para me precipitar; as unhas prenderam-me ás fendas da cantaria, com a
tenacidade do amor à vida. Por fim, cansados, agarraram-me, arrancaram-me os
olhos. Aos meus gritos, os malvados respondiam que me desse por feliz em não
ser queimado vivo na praça pública, exposto à irrisão da plebe, por feiticeiro;
que eu tinha pacto com Satanás, que o evocava com linhas cabalísticas com que
formava as rodas denteadas.
O pobre velho permaneceu um
instante silencioso refletindo no assombro daquela noite infernal; depois
mudando de conversa, o embaixador pediu-lhe para levar o filho, que havia de
fazer por certo o relógio para o palácio da justiça. Não faltaram negações e
hesitações. O velho conhecia o talento do filho, e temia um igual desastre. O
cavaleiro jurou protegê-lo com a vida, e trazê-lo incólume a casa do seu pai,
logo que tivesse findado o trabalho.
O relógio foi posto na torre do
palácio da Justiça, e, ele que aconselhava a observância da justiça e das leis,
foi o mesmo que, dois séculos mais tarde deu o sinal para a execranda
carnificina da noite de São Bartolomeu.
Quando o filho do relojoeiro de
Estrasburgo voltou à pátria, ainda o pobre velho vivia. Estava no meio da sua
desgraça, possuído de uma alegria infinita.
Na solidão do espírito em que
ficara, procurara constantemente vingar-se.
Vingou-se afinal. Um dia
conseguiu aproximar-se do Relógio, e tocou numa roda de tal forma, que não
voltou mais a regular, apesar de todos os esforços; em 1574, intentou
restaura-lo Dasípodes, outros em 1669, em 1731, até que cessou de trabalhar em
1789, como uma relíquia última da Idade Média que arrebatava a Revolução. O
desgraçado levava esta única consolação do mundo. A mesma lenda se conta dos
relógios de Nuremberga, de Auxerre e Lyon, em que as versões parecem filhas da
compreensão de uma mesma verdade.
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