O Gabiru não entende a
vida. Acha-se de repente num pélago refervendo ouro. Descobre torrentes
impetuosas de ódio, torrentes de escárnio, a Árvore, as estrelas, um eterno
redemoinho, gritos, levadas de sonho. Para onde? para onde corre tudo isto? A
Morte ao lado duma árvore cheia de flor. Um caos. Treva e sol, ouro em
borbotões, e o homem indiferente... Ao dar de cara com a existência, ao ver-se
escarnecido, o Gabiru grita. Pois passa o inverno e a tempestade, vem a
primavera e o sol, e o homem nem sequer os olhos ergue? Sob os seus pés a terra
move-se, num burburinho, toda ela viva; sobre a sua cabeça a abóbada do céu
arqueja, carregadinha de estrelas – e o homem queda-se inconsciente? Há o
escárnio, a desgraça, pedras, constelações e o mar profundo e o homem continua
impassível.
O que é isto? o que é a
vida? o que é este mistério onde o homem entra como a salamandra no fogo? Pode
alguém de repente dar com uma árvore cobrindo-se de flor, sem ficar espavorido?
No mais desprezível charco se espelha o sol e tumultua a matéria em combinações
infinitas – e o homem segue o seu trilho inconsciente!...
Todos os desgraçados se
reúnem no saguão para o interrogarem – os ladrões, os
pobres e as mulheres da viela. O que é a Vida? o que é a Vida? Uma alma, um
sonho? A vida tem realidade? O que pratico sobre a terra é indiferente ou vai
repercutir-se algures? Isto é lodo ou fogo, aparência ou temerosa realidade? E
o escárnio e a água a nascer fulgindo de entre a terra, a dor, o amor, a nuvem
que passa, o vento? Tudo isto é um turbilhão de almas e de pedras, de árvores e
de sonho, sem fito, ou esta levada esplêndida caminha para um fim ignorado de
beleza? Ideio numa cova, num sepulcro fechado, ou vivo a verdadeira existência?
E os pobres? por que é que
os pobres sofrem sem gritos, revolvidos como a terra por este arado – a dor? Só
vêm a este mundo para sofrer?
O Gabiru via-os cheios de
resignação seguirem o caminho da vida, cada um com sua cruz, feridos nas pedras
aspérrimas, sem pão, escarnecidos, tombando por terra sem poderem mais. Por quê
tudo isto? Para quê sofrer?
Ele e o Astrônomo ficaram
um pedaço a cismar. O que os prendia afinal à vida? em que criam? Nesse fim da
tarde, chovia e aquilo era lúgubre: como que as coisas os empurravam para a
morte. Na vida tudo lhes falhara e aos quarenta anos já se não constroem
nuvens. Só o Astrônomo se consumia ainda em sonho: os outros, sentindo-o feliz,
puxavam-no para o fundo, como os afogados aos que se querem salvar.
– Sonhar! sonhar! –
pregava.
– Sonhar, deixe-se
disso!...
– Que querem se eu nasci
para isto? Eu só vivo na solidão, e a vida para mim é sonhar. Como hei de eu,
que vivo lá em cima, pobre, com este casaco que de gasto nem sequer me aquece,
compreender a existência? Dum lado estou eu misérrimo, do outro um turbilhão de
astros... Quantas riquezas! Astros todos de ouro, astros de crime, plagas duma
areia fina e rubra e depois largos oceanos desertos... Talvez o céu seja uma
árvore sempre na primavera... Infinitos mundos, colossos mudos, que passam, e
eu pobre, transido de frio, compreendo e vejo!... Depois, se desço cá pra
baixo, nu, a vida parece-me triste e logo corro a refugiar-me no céu.
– Mas a natureza...
– Eu sei, eu vejo do meu
quarto: havendo sol é belo: é tudo de ouro e verde. Sei que há árvores, o mar,
rios, mas nunca ninguém os viu ao pé...
– Perdão! mas já muita
gente... O amigo confunde!
– Na minha pobre cabeça
tudo se confunde.
– Sempre sonhar, sempre
sonhar! Eu por mim já estou farto de nuvens!
– E que querem que faça, se
eu não sei mais nada? Nem me sei rir, nem sei falar...
Falavam do suicídio, riam
do Astrônomo – um sonhador! – e no fundo todos temiam a morte e quereriam ser
como ele. Morrer sem ter vivido!... O que haviam tentado realizar, esse esforço
para materializarem a própria alma, que outra coisa não é
criar, dera-lhes como resultado um bloco gélido e informe, talvez vivo mas um
bloco. Por isso a morte os aterrava, a morte que era o nada para todos,
até para o Pita então idealista. Sabiam que iam morrer sem ter vivido. A
existência não era decerto como eles a haviam compreendido: alguma coisa lhes
falhara. Tinham rido de tudo. Só a Morte ainda restava intacta, sem dedadas na
sua roupagem negra, com todo o seu mistério e toda a sua beleza. Ela põe, até
no homem que na terra representa a onipotência, o banqueiro, arrepios de
alucinação e terror, quando acaso a Havas diz à Terra que um Rotschild acabou
duma forma idêntica à dum pobre diabo, ou dum poeta, ou dum santo. Ela iguala,
porque enfim é indiferente ir apodrecer num
palácio de mármore ou na
vala comum: ela mistura pobres com ricos, heróis e cépticos, egoístas e santos,
e desse oceano negro não saem nem gritos, nem bênçãos, nem palavras. É o
formidável, o misterioso silêncio.
Morrer, dormir, dormir!
Sonhar talvez!... – Ela impõe-se ao homem, negra e férrea: quase sempre, porém,
sob o seu manto tem claridades de relâmpago.
Nada lhe escapa, e se para
uns é madrasta, para outros é noiva.
Os humildes, que vêm ao
mundo para gritar, aqueles para quem a vida é aziaga e que vão de rastros até
essa praia onde o mar desconhecido rola as suas ondas silenciosas, vêem-no
dourado, cheio de claridade, numa madrugada eterna. Apenas caídos, exangues,
sem fibra que não tenha sido torcida e despedaçada, sem
boca para gritar – eles sabem-no – vão erguer-se e, transfigurados, embarcar
nas naus que os esperam para uma viagem de maravilhoso sonho. Para os cépticos
esse mar e negro, tumultuário, de horror, como aquele oceano nunca dantes
navegado, onde só monstros cresciam.
Há pobres e tristes que
passam a vida a esperá-la, a sonhá-la. Os humilhados, os ofendidos, amam-na
porque ela iguala, os escravos porque ela liberta, e até os incompletos, aqueles
a quem não é dado nem sonhar nem amar, porque nela deve existir o Sonho e o
Amor. Cada um encontra nesse pélago o que lhe falta na vida.
E falam! falam... Todos os
sonhadores se põem a falar ao mesmo tempo.
– Para quê então ser homem?
– Ninguém sabe.
– Quem me dera não sentir,
andar como anda a essência do tição ardido, perdida no redemoinho eterno, ora
na mãe d’água, ora no fundo do mar!
– O que é a Vida?
Os pobres a um canto
escutam em silêncio aquelas criaturas nascidas entre pedras e que passaram a
vida agarradas a um sonho. E não dizem palavra – porque só eles sabem sofrer.
– Mas então mais vale a
morte.
– Pois mais vale.
E não vêm lá no fundo as
feições consumidas, os olhos fartos de chorar, as cabeças
de mártires e de santos que parecem cavadas na madeira por algum escultor
ignorante, mas que as impregnou para sempre duma vida estranha. Alguns são
verdadeiros seres de espanto; de outros só se vêm as mãos enormes. E a certas
fisionomias a luz ilumina-as e a sombra corrói-as como um ácido. São anônimos.
Só eles gastos e mudos mergulham na vida raízes profundas. Os outros dizem
palavras, constroem em nuvens – eles edificam. Mas todos perguntavam na mesma
ânsia – o que é a Vida?...
Sei lá o que é a Vida?
Todos me interrogam e eu debalde me interrogo... Nunca foi só no mundo: fios
invisíveis prenderam-me sempre a todos os seres não só pela piedade, não só
pela comunhão com os desgraçados, mas por outra coisa maior e mais profunda,
por um sentimento de remorso, como se eu tivesse alguma responsabilidade nesta
dor e na criação das figuras de desgraça... E tenho medo. Tenho ao mesmo tempo
remorso e medo. Nunca entrei numa casa de prostitutas sem pavor.
Afigurava-se-me sempre uma cena de outro mundo atroz – e isto é ainda o menos –
de outro mundo que eu tivesse engendrado. Um crime atrai-me. O crime fascina-me
como se eu participasse do crime, como se um fantasma desligado do meu próprio
ser fosse cúmplice do criminoso. Não quero ver e fujo! fujo de mim mesmo!... E
a primeira impressão que sinto diante da desgraça não é piedade – é irritação
como se eu pudesse sustar o sofrimento e a injustiça...
O que é a vida? Fui eu
porventura que tracei este caminho doloroso para que todas estas figuras me
apareçam e interroguem?... Estão aqui na minha frente os vivos e os mortos – e
não me largam. Somente os mortos não falam. Não é preciso... As fisionomias
graves e cansadas contam-me a sua história. Basta olhar para os teus cabelos
brancos para saber o que a vida fez de ti. Estas rugas são sulcos abertos pelas
lágrimas. À minha roda estão todos os que me deram um bocadinho de ternura e
todos os que encontrei pelo caminho fora – os mendigos das estradas, os velhos,
os ladrões, as mulheres humildes e os que choram baixinho para que ninguém os
ouça chorar... Até a dor desapareceu – porque até a dor acaba por ser consumida
por esta coisa imensa que se chama a Vida. Mas todos, vivos e mortos, todos me
fazem a mesma pergunta a que não sei responder: – o que é a Vida? – Figuras de
santos e figuras de ladrões com as mãos ósseas e geladas; este velho curvado
pela vida até ao chão; estes olhos turvos que não se tiram de mim: – Para quê?
para quê... – e esta criança que sofre e não sabe porque sofre e cuja expressão
me persegue e se obstina: – Para quê? para quê?... – estes seres nodosos como
troncos e que mal sabem falar, e estes de que a vida fez espectros e que
desatam em risadas descompostas diante do mistério da vida... Outras figuras
estão mais perto de mim e sigo dia a dia as dedadas trágicas com que a vida as
vai modelando. Sua dor é mais contida, e misturada de
ternura, mas a interrogação, sem ser ansiosa, nem por isso deixa de persistir
nem de ser igualmente dramática: – Para quê? para quê?... – Compreendo agora
melhor o lado sério e sagrado da afeição, e fito as mãos deformadas, as mãos
que eu queria beijar, com dor e espanto. Todos sofreram – todos cumpriram a
vida. E nenhum sabe o que é a vida. O céu, esta bondade cega e muda, não
responde, a morte não responde... Só sabemos todos que ao lado da vida – é que está
a verdadeira vida. Outra vida. A consciência da vida. Debalde desviamos o
olhar. Ela é que nos importa. A Vida está aqui presente – e todos nós
pressentimos que a sua sensibilidade é extraordinária e que é tão delicada que
por um ato nosso a podemos matar. Essa vida sofre com as nossas ações e
aproxima-se ou afasta-se em gritos de desespero. Às vezes quer deter-nos, às
vezes quer prevenir-nos, às vezes faz esforços enormes para se interpor entre
nós e os nossos atos. Às vezes grita e não lhe ouvimos os gritos. Às vezes
toca-nos, está ao nosso lado. Às vezes perdemo-la no caminho.
Creio que é essa Vida que
nos sustenta. E os humildes sentem-na mais profundamente, sentem-na mais perto
de si, porque vivem em maior silêncio e mais isolados, e talvez também porque
essa Vida é muito grande e muito simples e se dá melhor com a humildade dos
desgraçados. Mas a Vida, que é um clarão ou uma luzinha de candeia que se apaga
num sopro – nem eu a conheço nem tu a conheces...
Por fim o Gabiru
ficou sozinho com os pobres. Eles não sabiam explicar a vida: sentiam-na e
sofriam. De pé ainda teimou:
– Foi assim... Disseram-me
um dia: – Eis aqui um tesouro, cava! e eu pus-me a cavar. Dum lado e de outro
acumulou-se a terra. As minhas mãos eram negras, os meus vestidos cheiravam a
terra e eu cavava. A mina era profunda como um poço. O céu esquecera-o, as
árvores esquecera-as. Um dia topei pedras que me pareciam luzir como ouro puro
e embebido a contemplá-las esqueci-me do tempo, da terra, do mundo... Súbito,
cá fora, ouvi rir. Trepei pela terra acima e achei-me com pedras negras nas
mãos, cheio de terra, feio e cego como os bichos que nunca viram o sol... E
tudo era belo! Tudo o que esquecera, tudo o que desprezara!... Atônito, com as
pedras inúteis na mão, olhei... E assim desperdiçara a vida à procura dum
tesouro que tinha ali à mão!...
Ninguém me respondeu. Só
uma mulher, curvando-se-lhe sobre o ouvido:
– Eu sei o que tu tens, eu
sei o que tu tens...
– Que é?
– É pena. A vida não se
torna a viver. Perdeste-a. Esqueceste-te dela a sonhar... a sonhar!... Trocaste
o sol, o ódio, trocaste a realidade por nuvens. E, aí! a vida não se torna a
viver! A vida para ti foi como a água que passa pelas mãos duma dessas estátuas
que tu vês nas fontes. Nunca cessa, igual, fresca, cheia de cintilações, e
nunca também estanca a secura dessas figuras de pedra...
Ai, não se torna a ter na boca o sabor a sangue e a mocidade, nem as árvores
são as mesmas árvores e o riso o mesmo riso. Queria ter fome e ser moça...
Perdeste-a! perdeste-a!...
– E tu?
– Eu?... Eu fui nova e
todos dariam a vida por mim. Amaram-me, mas o que eles queriam era o mármore do
meu corpo e a minha boca moça e viva. As rugas vieram, mirrou-se-me o colo,
seco e inútil, e então arredaram-me. E dentro do meu peito ardia ainda o mesmo
amor. Como pode meter-se uma nuvem dentro duma pedra ressequida? Desci à
humilhação, a procurar o amor que se paga. Isto! isto!... Só então entendi que
os homens nos aproveitam e usam para nos deitarem fora depois de servidas...
Olha para mim... Envelheci. Há muito tempo que moro com o ódio. Diante do
espelho, ao ver-me mirrada, tornei-me ainda mais seca. Escarnecida, deitei-me a
odiar... Oh fazer gritar os homens que nos desfrutam, para depois se rirem... E
sonhei... Eu sou inútil, o meu ódio murchará comigo, sem poder florir. Inútil,
velha, caída, quem toma aí a sério o meu ódio?...
O que eu tenho sonhado!...
E o que eu daria para ter uma filha!...
Saiu também. Só ficaram a
um canto os pobres, gastos, com fisionomias de santos e olhos murchos de tantas
lágrimas choradas e que não sabiam queixar-se, e meia dúzia de desgraçados que
se puseram entontecidos a narrar, numa voz amarga – a voz
da desgraça. Erguiam os braços e de cansados e sinistros acreditá-los-íeis
foragidos do hospital e da guerra.
Um disse:
– Eu gosto de ver sofrer!
eu quero ver sofrer!...
Como ele anda a espreitar
ilusões a ver se as calca. Onde nascem flores logo as esmigalha, nada lhe sabe,
nem o sol às levadas. Calca tudo e ri, tudo o que nasce, mesmo a ponta verde da
erva que rompe de entre as lajes.
Um velho gasto queixa-se.
Quer viver e exclama:
– Fui sempre como as
toupeiras, como os bichos que, no fundo da terra, minam e cismam, minam e
cismam sempre na claridade e nunca chegam a ver o sol.
– Há desgraças e dores que
fazem rir – diz alguém. Outro ri, ri sempre de aflições, de catástrofes.
Procura dores para se rir e
doido ei-lo a rir e a clamar:
– Calcamos terra, hein,
calcamos dor... A terra está farta de sofrer.
– Queremos ter saúde e ter
risos. Eu nunca me ri, eu nunca me pude rir – prega uma boca na escuridão.
O Gabiru sente-se agarrado
pelo homem que vivia nas trevas e que fugira das trevas.
O olhar reluz-lhe e a sua
voz, através do pano que lhe tapa a cara, parece provir dum túmulo.
– Leve-nos! mostre-nos o ouro,
as árvores, os montes todos de ouro, mostre-nos a vida!
– É impossível...
– Oh não saber nunca
o que é amar, viver como os outros que se podem rir – e ser só, ser
diferente!... Eu vi! eu vi!... Mas não, eu não sou amigo do sol nem das árvores!
Tenho a minar-me a alma uma ferida como esta... Os risos com que os outros se
riem, os seus risos – e eu sem boca para rir!... Esta ferida come-me a vida – e
triste vida de aflição a minha! Fui sempre doente. Até em pequeno senti a
piedade agasalhar-me. Por que é que Deus faz nascer criaturas com vida e dá a
outras um quinhão de negrura? Tenho frio e fome de sol, de saúde, de forças e
vivo gelado, sempre gelado, e sem poder olhar nada no mundo sem sentir rancor.
Tenho inveja até da terra onde nascem pedras e cardos, porque ela ao menos não
sofre. Deem-me o quinhão de risos que me pertence!... Se eu te escancarasse a
minha alma, tu a verias transida, negra, mirrada... Ouvi dizer – é certo? –
que até as árvores
noivam... Eu apenas sei que existe a inveja, a dor e a enfermaria, onde o
próprio sol requentado sabe a hospital. E nunca ninguém quis saber de mim,
nunca! Que me dera beijar! ter boca para beijar! ter boca para beijar! Diz-me:
há porventura pedras nojentas?
Arrancou o pano da casa e
uma fisionomia de túmulo, onde os dentes surdiam pela carne dilacerada, rompeu
de entre os trapos que a cobriam.
– Olha! olha pra mim!...
Saíram – e atrás de todos,
não tendo dito palavra, caminharam os pobres, curvos, descalços, resignados.
Havia-os gastos pela
dor; havia-os tirando o pão da boca, para o repartirem; havia-os com uma vida
de lágrimas. Saíram uns atrás dos outros, sem queixas nem gritos.
Afinal todos tinham
desaparecido; só na escuridão ficara uma velha prostituta. Era quase uma coisa
– a podridão. Não sabia falar, nem sabia queixar-se. Tinha aparecido para dizer
o quê? Que acusação tremenda contra a vida?
Chegou-se a ela o Gabiru e
pôs-se a olhá-la. Depois perguntou-lhe:
– Tu que tens? tu que
queres? Vai-te!...
Ela não respondeu, e ele
esquecido ficou muito tempo a cismar. O que era a Vida afinal?... Pouco e pouco
um clarão se fazia na sua alma... O Gabiru absorto sonhou, até que a seu lado
uma voz rouca lhe disse:
– Mas então pra quê? pra
que criam a gente? Eu tenho amargado a vida e nem posso gritar... E tu?
– Eu também... Mas olha: eu
gosto de sofrer...
Escuta: sofrer é afinal
reanimar uma labareda, um fogo que se extingue... Possuir um sonho e vê-lo
calcado!...
– Eu cá fui sempre assim,
andei sempre assim...
Quem se importa? Não me
lembro de ter sido feliz...
Não me lembro... Sempre se
riram de mim e toda a vida me bateram.
– Tu sim, pobre de ti... e
amaste?
– Não me lembro. Depois de
servida batiam-me. Eu fui sempre menos que nada. Quem se importa! Inda se a gente encontra o pão de cada dia... Agora sempre anda um
frio!...
– Tu sim... Pobre, pobre de
ti! Eu fui feliz, fui sempre feliz afinal. E batiam-te?
– Punham-me o corpo
negro... E a ti?
– Puseram-me a alma negra.
– E tu?
– Eu sofria. Diz o que
sofreste.
– Não me lembro.
Encostados um ao outro,
para se aquecerem, cismavam, enregelados, quase cobertos pelos mesmos trapos.
Noite escura, mas no sítio onde eles encolhidos sonhavam, pareciam arder
faúlas, restos dum lar a apagar-se.
– Ouve, não chores... Tens
frio?
– Estou gelada de frio.
– Olha: sofrer não importa,
sofrer na vida, que importa? Tu imaginas que o que se sofre se perde? As
lágrimas e as dores vão criar, para depois, alguma coisa de extraordinário. Do
que se espezinha vem sempre a nascer. E se tu amaste e se riram de ti, alguma
coisa brotou, que se não extingue e germina com as tuas lágrimas e os teus
gritos. Amaste?
– Tudo perdi! tudo
perdi!... Não fales! oh não fales! não me lembres!...
– Se tu amaste e sofreste
nada é perdido. As tuas mãos estão geladas, mas as minhas ardem.
– Eu já não sinto o frio...
Só me sinto de rastros, pequenina e perdida... Oh dói-me e tenho pena de mim.
Tu para que falas? De que serve a gente lembrar-se? Para chorar? É melhor
dormir, dormir sempre...
– Nada é perdido. Olha:
vai-se criando com as nossas aflições e os nossos gritos uma outra terra!...
– Aonde?
– Uma terra toda alma,
cria-se, para depois, quando última dor,
aos últimos gritos, se esbrasear...
– Conta! conta-me!
– Escuta: quando se traz um
sonho... Sabes, um sonho?
– Um sonho?! Não me lembro!
– Um sonho é como se
tivéssemos na alma um mundo maior que este. Todo em fogo... Quando se traz um
sonho e se sofre, mais ele cresce. Tanto mais puída é a matéria, mais ele
arde!... Isto não se perde... Constrói-se das nossas lágrimas... É um palácio.
As pedras de que é feito são os gritos... Sabes?
– Um sonho!...
– Tudo se ilumina dentro de
nós. E a cada humilhação ele se torna maior. Depois que sofri, é que comecei a
ver o que nunca tinha pressentido. Tudo. Sabes, as árvores, as nuvens, as
estrelas? vejo-as agora transformadas, de fogo. Arde... Nunca é noite. E tanto
mais sofro, mais se ateia o meu sonho.
– Não sei nada.
Ambos se perdiam, unidos,
gelados, na escuridão. Por fim só a voz dele corria: ela
escutava-o sufocada, unida contra a terra, rasa como a terra.
---
Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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