A filha da Asilada e do
Morto criou-se na viela entre gritos das mulheres e chufas de soldados e
ladrões. Tinha quatro anos e dormia pelos cantos ou nos braços da Gorda e da
Mouca. Assentava-a nas pernas o Velho que tinha sido cavador e que abria para
ela a enorme boca desdentada. Fazia-lhe festas a patroa. Enchiam-na de beijos
as mulheres num frenesi e dias inteiros passavam por ela sem a verem.
Esqueciam-na. Adormecia a chorar nas camas ou nos degraus das portas. Só a mãe
lhe fugia sempre:
– Não a posso ver!...
Mas ela crescia. Crescia ao
acaso, naquele sítio de alucinação onde os seres se transformam como em sonho,
em figuras de verdade que só a certas horas vêm à superfície, irrompendo do
mundo de dor e de tragédia a que pertencemos todos...
E o Morto perguntava à
amante:
– Por que não podes ver o
anjinho?
– Sei lá! Não a posso
ver...
– És pior que as cabras!
E batia-lhe. Ela calava-se
com um olho fixo de maldade e de espanto.
Agasalhava-a o ladrão com
velhos trapos. Encostava-a ao peito, e nesse inverno dera-lhe um casaco velho
para a aquecer.
– O tropeço não morre? –
perguntava a Asilada, talvez de propósito para o ladrão lhe bater.
O tropeço não morria.
Punha-se a olhar para o pai, a agarrar-se-lhe às pernas, a querer segui-lo
quando ele partia, e lá ia crescendo na viela negra entre gritos e injúrias e o
cantar triste das mulheres.
– Mas por que é que bates
na pequena? – diziam-lhe as outras.
– Não sei! não sei! –
gritava.
No começo do inverno a
Asilada foi para o hospital e antes de a levarem abraçou-se à filha a chorar
num desespero. Foi difícil arrancar-lha dos braços. Tomaram conta dela as
mulheres. Dormia com elas ou com o ladrão. Uma manhã disseram:
– A tua amante lá vai.
Enterrou-se ontem.
E o Morto ficou horas
sozinho a cismar. Acordaram-no risos fora. Levantou a cortina e foi direito ao
velho cavador que tinha a pequena nos joelhos. Calaram-se todos em roda, e ele
tirou-lha de repelão dos braços, encarando com o outro que se riu com a grande
boca de fera desdentada. O Morto saiu com ela e só voltou à tarde, tornando a
entregá-la à Gorda.
– Guarda-ma até à noite.
À noite chamou a pequena e
teve-a muito tempo apertada contra si. Talvez nesse momento
compreendesse o horror da Asilada pela filha e a sua ternura antes de a levarem
de vez para o hospital – talvez visse o Velho com a criança nos braços e aquela
boca escancarada lhe parecesse monstruosa.
– Vem comigo.
– Onde vamos, pai? Passear?
– Passear.
A pequena riu-se.
– Agora?
– Agora.
E pegando-lhe pela mãozinha
levou-a até ao rio, exatamente no sítio onde encontrara pela primeira vez a
Asilada. Meteu-se dentro dum barco, desamarrou-o e pôs-se a remar.
– Onde vamos, pai?
– Tu verás. Dorme.
O mesmo horror inconsciente
que lhe tinha a mãe, sentia-o agora o ladrão. Não raciocinava. Nem o ódio era
pela viela que esperava a criança, nem por a ver nas mãos do cavador brutal ou
do soldado vesgo, que a olhava calado com ferocidade. Doía-lhe qualquer coisa,
que o obrigara a tomar uma resolução para poder respirar. Aquilo não podia
existir ao seu lado – tinha de desaparecer. Isto sentia-o profundamente até ao
âmago, como a mãe o sentira sem o saber explicar. Na alma do ladrão, ao pegar
essa noite na criança, havia ao mesmo tempo ferocidade e horror. Era necessário
matá-la, absolutamente necessário.
– Agora.
Mas a criança olhou para
ele e riu-se – e ele teve-lhe medo.
– Dorme!
A pequena pôs-se a
balbuciar – ó pai! ó pai!... –a dizer as palavras desconexas e extraordinárias
que dizem as crianças, e as obscenidades que ouvia ao Velho na viela quando lhe
pegava ao colo. E o ladrão estremeceu abalado até às profundidades da vida.
– Ó pai! ó pai! – gritou
ela de repente – o que é aquilo lá em cima?
E a pequena, que nunca
tinha visto estrelas na viela trágica, apontou deslumbrada o céu.
– Estrelas.
– Ah estrelas! estrelas!...
– E o monólogo infantil seguiu com estas palavras e encanto – com as palavras
tão repetidas que têm sempre novidade e frescura nos bicos cor-de-rosa, como se
a vida pela primeira vez acordasse sempre que uma criança fala, e palavras
terríveis, que pertencem à vida trágica e que ela inconscientemente misturava
às outras.
Por fim adormeceu na
caverna do barco olhando para o céu. Mas a dormir metia-lhe tanto medo como
acordada... Estendeu as mãos devagarinho e atou-lhe à cinta uma corda com a
poita. A pequena mexeu, acordou, sorriu, abriu a boca para dizer pai, e caiu
logo no sono inocente. E o ladrão ficou muito tempo quieto a olhar para ela.
A criança não podia
continuar a viver. Diante dos olhos tinha sempre a boca desdentada do Velho e
as figuras das mulheres dizendo obscenidades. Sabia que destino a esperava. A
criança era o mal. Ele só teria sossego na terra quando a atirasse ao rio e a
visse descer lá para o fundo, para muito fundo, longe da vida de dor e de
tragédia.
Pela primeira vez sentia
que cometera um crime contra uma coisa imensa e extraordinária, contra uma
coisa imensa e invisível – sentia com horror que envenenara a vida. Era
necessário matá-la... E ao mesmo tempo desabava sobre ele outro espanto sem
existência real... Ainda tentou avançar sem ruído, contendo a respiração, para
deitar as unhas de repente e afogá-la. Não pôde... Tinha uma missão a cumprir e
não conseguia executá-la.
– Terei eu medo? terei eu
medo?
E apertava uma contra a
outra as mãos frias e enormes.
Esbarrava contra um muro
vivo de ternura. A sua alma torcia-se na nudez imensa da noite, esmagado entre
duas forças contraditórias que lhe pesavam como montanhas. Olhou para o céu –
para as estrelas inúteis. A criança dormia no fundo do barco. E aquelas duas
forças quase as via avançar sobre ele cada vez maiores. O drama passava-se no
silêncio da noite e sem poder separar a ternura do ato feroz e necessário que
meditara.
A sua concentração atingia
o desespero.
Por fim deitou-lhe as mãos
e ela acordou:
– Pai! pai!
E imaginando que ia brincar
encostou-se à cabeça curvada sobre ela e exclamou:
– As estrelas! as
estrelas!... Ó Rosa! ó Rosa! ó Rosa!... Pai, tu sim tu és meu amigo... Que
lindo lá em cima!... Pai!...
***
Pela boca inocente e pura
fala agora o mundo a que pertencemos todos, nós e os ladrões das estradas. Ele
detém-se esmagado. Já não pode ir até ao fim. Imobilizado ouve-a, com horror, e
sente-lhe ao mesmo tempo a mãozinha nas mãos enormes. Imobilizado de dor o
ladrão nem se atreve a falar.
Aquilo que julgava fácil
era impossível. Matá-la era melhor, mas não podia. Tinha de aceitar o destino:
o soldado vesgo, o Velho que a esperava com a alegria duma fera que sente a
presa próxima e escancara as fauces temerosas. Soltou devagarinho a corda,
dirigiu o barco para terra e, deitando a correr desvairado, com a criança nos
braços, foi entregá-la à viela.
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