O
inferno – duas horas na cadeia pública
Ir ao inferno, num dia qualquer da
semana, sem uma prévia apresentação, é tarefa bem difícil. Mas depois de algum
esforço, consegui penetrar no Inferno – Avenida Tiradentes, nº5, Cadeia
Pública.
Os touristes
que devassaram o reino de Sua Excelência o Diabo dizem que este cavalheiro
possui a mais bela morada do mundo. Pela milésima vez, tive outra desoladora
decepção. Aquela miniatura do Inferno não tem, é certo, a suntuosidade do
outro, onde passeia a sua arrogância o Augusto Príncipe das Trevas, mas, como
aquele, um lugar de sofrimento, gritos e choro.
um casarão colonial austero,
decrépito. Todo ele clama, pede, implora a misericórdia salutar da picareta!
Construído em 185176, e
pelos inestimáveis serviços que tem prestado, trabalhando dia e noite, mais do
que as suas forças o permitem, já lhe assiste o direito de ser uma ótima e
galharda ruína. Velho pardieiro! És um anacronismo, uma carcaça mefítica,
abjeta, ao lado do progresso desta capital que tu viste nascer!
Acompanhado do diretor e outros auxiliares,
começo a percorrer os interiores da cadeia. Na porta de entrada, junto às
grades, ao lado dos guardas que estão hirtos e vigilantes como domadores de
feras, vi o homem que infunde o maior pavor aos visitantes daquela casa — o
carcereiro.
Numa pequena saleta, sobre uma mesa
pardacenta, jazia um molho enorme de chaves gastas que, pela continuidade do
manuseio, espalhavam um brilho úmido e sinistro. O carcereiro agita-as nas mãos
que sabem afagá-las com ternura, e elas produzem um som soturno e cavo, como o
de uma pedra que rolasse pelo declive tétrico de um abismo!
Há anos que este homem abre e fecha
calabouços. Imperturbável, exerce o seu mister silenciosamente, com alta
elegância, sem nunca indagar qual é o crime daqueles indivíduos. É tão extraordinário,
que até conseguiu perder o sorriso! Essa perda, aliás, não a fez somente ele:
fizeram-na todos os que estão lá dentro, tanto os funcionários como os presos.
Não se vê uma máscara alegre!
Passo por entre os presos e tenho a
sensação de que a minha liberdade os insulta tenazmente. Esqueço-me dos seus
delitos; quisera corrigi-los com um pouco de piedade. Caminho apreensivamente e
lembro-me de que a piedade, quando muito, poderá comover a criatura humana; mas
nunca a corrigirá!
Paira em todas as caras uma angustiosa
expectativa. O que mais o tortura não é o castigo, é a lentidão dos dias, que
faz com que não se aproxime o momento da liberdade. O tempo é o maior verdugo
daquelas criaturas!
No ar morno há um zum-zum de vozes, um
torvelinho de frases. Todos, ao mesmo tempo, me chamam para expor o seu caso, e
todos, a una voce, dizem que estão
presos sem saber o por quê. Os que cometeram crimes alegam mil e uma atenuantes
em abono de sua inocência. Os detidos por briga, roubo, vagabundagens e outras
patifarias, clamam contra a polícia que não faz outra coisa senão persegui-los.
Toda a vigilância lá dentro é pouca.
Frequentemente, há engalfinhamentos entre os que estão reclusos por
vagabundagem e gatunice. O diretor se vê zonzo para manter uma relativa ordem
entre eles.
— O senhor imagina — diz-me o diretor
—; todos se dizem inocentes, mas por qualquer cousa discutem, provocam
distúrbios. Entre eles, da discussão não nasce a luz, nasce a pancadaria!
Acidentalmente, me retenho na grade de
um vasto salão, onde esperam ajustar contas com o Júri vários indivíduos. Num
abrir e fechar de olhos, afluíram à grade todos os que estavam lá dentro,
sentados, contando lorotas, lendo jornais, escrevendo, fazendo cigarros e
bugigangas de miolo de pão.
Um turbilhão de olhares me focaliza,
verrumando-me com uma certa insistência piedosa. Fisionomias de todos os
feitios havia naquele magote. Falavam lamentosamente, com os lábios secos e os
músculos faciais parados numa contração de revolta surda! Sobressaía de entre
todos um mulato alto, espadaúdo, de beiços carnudos, sensualmente vermelhos como
a polpa de uma romã. A sua figura chama-me a atenção. Indago quem é.
— Esse é aquele que anavalhou o rosto
da Nenê Romano.
Ele não ouviu. Mas, percebendo a minha
insistência, pois que o fitava atentamente, torceu as pontas do bigode e, um
tanto contrafeito, abaixou-se e desapareceu.
Noutra sala, igualmente cheia, mas de
um pessoal um pouco mais limpo, que constitui a “elite” da cadeia, um cidadão
todo garboso, bem escanhoado, sentado sobre um colchão enrolado, falava com voz
forte e timbrante. Os outros, fumando, dominados mais pela preguiça do que pela
loquela do companheiro, prestavam uma atenção negligente, com olhos
semicerrados.
À primeira vista, não conheci esse
indivíduo, pois que lhe faltava o principal adorno, o seu dístico — o cravo
vermelho!
— Quem é aquele homem?
— Aquele é o Sr. Vicente Gervásio...
Juntamente com outros colegas da
prisão, ele vem até à grade. Ninguém fala a não ser ele.
— Sou uma vítima dos caluniadores —,
diz o Vicente Gervásio. — Tudo aquilo que se escreveu por aí contra mim é
mentira! Nunca roubei, nem extorqui dinheiro de ninguém. Eu fazia o que faz uma
grande quantidade de “picaretas” que vivem por aí a fundar revistas
clandestinas que ninguém conhece.
E assim, nesta toada, vociferou uma
tremenda catilinária contra seus ex-colegas de “picaretagem”.
Durante todo o tempo que levei a
examinar outros tipos, Gervásio, fazendo uso da sua verbosidade escorregadia,
divagou sinceramente, a seu bel-prazer,
no firme propósito de me capacitar de que é um rapaz de talento. E acreditei,
não há dúvida! Vistos que foram os calabouços dos homens, passei ao das
mulheres.
Diversas encarceradas respondem por
crime de infanticídio, furto e assassinato. E outras, quase todas pretas e
mulatas, por bebedeiras e arruaças. O barulho que essas mulheres fazem mantém
todo o enorme edifício em constante atoarda.
Pelo enxadrezado de ferro da porta,
espio para dentro dessa prisão. O quadro é desolador e repugnante. No soalho, e
sobre os colchões encardidos, roídos pelo tempo e pela sujeira, há mulheres
sentadas, em atitudes indecentes. Trocam-se insultos virulentos por entre
guinchos, berros, blasfêmias e palavrões de fazer corar a caliça amarelenta das
paredes.
Ante esta cena de ultrarrealismos, um
mal-estar pungentíssimo apossou-se violentamente de todos os meus sentidos.
Tive pena daquelas desgraçadas, não por estarem presas, mas, pela degradação da
moral a que chegaram, devido exclusivamente ao vício da embriaguez.
Depois, ainda dominado por esse
capítulo de sofrimento anônimo, único nos anais da miséria, fui ver aquilo que
a cadeia tem de mais trágico e desumano — o local do suplício extremo — a
solitária!
É um cubículo escuro, estreitíssimo,
úmido, onde o paciente não pode nem abrir os braços. Todo pintado de negro,
fúnebre como um necrotério. Pelas paredes há nomes riscados na crosta do piche;
são caracteres irregulares e ilegíveis, que, logo se adivinha, foram gravados
dolorosamente com a unha. Os presos, os de grande culpa, quando não querem
confessar o seu crime, passam ali uma invernada a pão e água.
Turbilhonavam confusamente em meu
cérebro impressões macabras de dramas soturnos e desvairados grand-guinol, quando cheguei até o fundo
dos prédios, onde os presos cultivavam uma horta luxuriante de variegados
legumes.
Enquanto olhava perscrutativamente um
canteiro de alface, o diretor toca-me o ombro, e diz-me em surdina:
— Agora o Sr. vai conhecer o preso
mais obediente da cadeia.
E aponta-me um homem que se aproxima
lentamente. Chega, saúda-nos e para.
— Ei-lo, o Sr. Miguel Trad!
Permaneci um segundo extático,
recapitulando cenas na memória.
Depois, trocamos monossilabicamente
algumas palavras.
E assim estivemos mais de cinco
minutos a falar, bem entendido “em português”, sobre tudo quanto se relaciona
com a arte de plantar um pé de couve... O Sr. Trad fala jeitosamente, como um
perfeito gentleman. Tudo nele
denuncia o homem que, tendo passado através de profundas transformações, vive
em paz no presente, confiante no futuro, esquecido completamente do passado...
Sabe fazer uso da sua cultura e
inteligência com extrema dissimulação. Sabe, enfim, escudar a arca dos seus
segredos...
Num relance, percebi que a minha
presença constituía para ele uma interrogação. Entre misterioso e amável,
Miguel Trad despede-se de mim, e vai tratar de uma toucerinha de cravos
vermelhos.
E é talvez com alguns desses cravos
que ele pretende presentear o Sr. Vicente Gervásio, no dia em que este sair da
prisão...
Jornal
"Ronda da Meia-Noite", ano: 1925.
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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