Quando em nosso país um homem apresenta as singularidades que logo de inicio distinguiram o escritor Monteiro Lobato, os meios letrados entram em pânico à procura de uma palavra definidora. Enquanto não encontram essa palavra, não sonegam.
O vocábulo garimpado no
léxico, depois de um trabalho de todos os diabos, evita o esforço bem maior de
estudar o homem, indagar de suas origens, formação social é intelectual,
deduzir dos escritos aquilo que constitui a sua razão de ser, não se contentando
apenas em mirar-lhes a arquitetura literária, numa deleitação puramente
estética.
Muitos anos se passaram
antes que os nossos críticos pudessem fixar a personalidade de Monteiro Lobato
nessa palavra definitiva, espécie de alfinete com que se espetam as borboletas
no mostruário dos entomologistas. Até que, um dia, ela surgiu. Foi um delírio.
Estava decifrado o enigma.
— Monteiro Lobato é um
cético!
Mas, em que sentido aparece
aqui a palavra "cético?"
Abramos o dicionário de
Aulete e vejamos o que é, em seu rigoroso sentido vernáculo, a palavra ceticismo:
"Doutrina dos que examinam e duvidam, doutrina dos sofistas. Dúvida
universal; disposição para duvidar de tudo. Por extensão: estado dos que
duvidam ou afetam duvidar de tudo; descrença; pirronismo". E na palavra "cético", o autor tem esta
explicação muito oportuna, como os leitores hão de ver, para a boa inteligência
deste artigo: "Que descrê de tudo; que não liga importância a coisa
alguma; que não crê nas coisas dignas de respeito".
Ora, toda a grita suscitada
pelo aparecimento de Urupês, ao ponto
de um literatelho da época lançar um opúsculo, achando que o caboclo do Norte é
um desmentido à inércia deliquescente de Jeca Tatu, foi por haver Monteiro
Lobato investido contra as "coisas dignas de respeito". Pois então o
caboclismo não era uma "coisa digna de respeito?" Sim, o caboclismo
erigira-se em dogma, em religião, satisfazendo triplicemente aos anseios
bovaristas da sociedade brasileira: a) afagava-lhe o orgulho racista, porquanto
no caboclo se unem os dois sangues, índio e português, incontaminados pelo "africano
desprezível"; b) o índio por ser o nativo, cantado em prosa e verso pelos românticos,
simboliza uma força contra o invasor, e o nosso heroico antepassado em viva
oposição ao predomínio lusitano; e finalmente, c) do ponto de vista estético, o
íncola tem os cabelos lisos, a pele bronzeada, em contraste com o negro da
carapinha e pele cor da noite. Pode-se apresentar uma quarta e mais honrosa
circunstância para os nossos falsos brancos: o silvícola preferia morrer a
deixar-se escravizar. Não o macula, portanto, o estigma do cativeiro. Longe
ainda dos tempos em que uma revisão severa devia ser feita em todos esses
conceitos mostrando a superioridade do mulato sobre o caboclo, e já Monteiro
Lobato a antecipava ao notar a miserável condição do Jeca, até nas
manifestações artísticas, por mais primitivas que sejam, avesso como é a
qualquer tendência musical bem marcada:
"Dirão: e a modinha? A
modinha, como as demais manifestações de arte popular existentes no país, é
obra do mulato, em cujas veias o sangue recente do europeu, rico de atavismos estéticos,
borbulha d'envolta com o sangue selvagem, alegre e são do negro".
Essas palavras foram
escritas precisamente quando a mestiçagem afro-lusitana mais reprimia em si o
chamado "pudor das íntimas certezas" em nossas altas camadas. A
poesia se alimentava ainda dos resíduos indianistas. É de se notar, por exemplo,
que lhe pagaram forte tributo Olavo Bilac e Machado de Assis, ambos mulatos, os
quais incluíram em sua obra poética inúmeras composições inspiradas em
Gonçalves Dias.
Mas a partir de 1919,
quando Monteiro Lobato, aproveitando o êxito de livraria do seu livro de estreia,
se instala na cidade, disposto a trocar a vida de fazendeiro desiludido pela de
editor, o rótulo de "cético", superficialmente
inferido do caráter irreverente dos seus contos, começa a desbotar-se. É que se
foram tornando conhecidos alguns trechos de sua biografia. Lobato estudara
Direito em São Paulo e reuniu em torno de si inúmeros companheiros aos quais
dedicava forte amizade. No entender dos nossos críticos, um cético não acredita
em coisa alguma, e muito menos nos valores morais. Aqui, nota-se perfeitamente a
confusão lexicográfica de "ceticismo"
com "misantropia".
E tais equívocos resultaram da notação friamente humorística esparsa
em todos os escritos do autor de Urupês,
a ausência de ênfase, a impossibilidade álgida com que apresenta os quadros
mais tétricos, escondendo-se atrás dos personagens e dos episódios.
Mas, sendo o humor
entendido em nossa literatura como simples disfarce técnico, motivado por umas
tantas características de escola, de que o mais alto e incompreendido exemplo fora
até então Machado de Assis, persistiu o engano em torno de Lobato.
Cético permaneceu ele até
os últimos instantes de vida, mas por não acreditar naquilo que os literatos
bem-pensantes acreditam, ou fingem acreditar: na estabilidade das instituições
caducas, nos seus falsos valores entronizados, na onipotência e onisciência dos
governos charlatões, nos lauréis acadêmicos, na "cagoterie" dos
medalhões bem postos na vida, em tudo, enfim, que constitui a aparatosa fachada
de um mundo morto que se esforça por parecer vivo. Em suma, Lobato não
acreditava naquilo que realmente não merece crédito, e o seu mérito residiu na
posição de combate assumida desde o início até o fim, sem desfalecimentos,
contra os mistificadores.
Quando a posição do
escritor se tornou perfeitamente definida, mostrando-se ele irredutível à
catequese dos bem-pensantes, estes atenuaram um pouco o julgamento,
limitando-se a dizer:
— Monteiro Lobato é um
espírito de contradição.
***
LOBATO
E A
LONGA APRENDIZAGEM LITERÁRIA
A ideia geralmente concebida ante a estreia espetacular de Monteiro Lobato, posto em destaque pela referência que Rui Barbosa fez, em discurso político, ao Jeca Tatu, foi de um escritor improvisado graças a um conjunto de aptidões inatas. Porque nós somos, e ainda seremos por muito tempo, um povo que acredita no milagre da vocação. Intuição e vocação, eis as palavras que definem, em todas as camadas sociais, a inclinação para a lei do menor esforço. Entregamo-nos cegamente à certeza de que não adiantam estudos, se o sujeito não trouxe do berço a marca misteriosa capaz de guiá-lo a grandes destinos. O gênio, aqui, nunca será uma longa paciência.
Essa crença é abonada, em
todos os espíritos, pela própria natureza tropical. Vemos em torno de nós a
quadra estival prolongando-se pelos doze meses do ano. As árvores perpetuamente
verdes, certas espécies vegetais, de cultura empírica, produzindo duas
colheitas anuais, o céu perpetuamente azul, as flores pintalgando os jardins e
várzeas, sem as lúgubres intermissões do inverno. Se é assim a terra, por que
acreditar no esforço do homem nas conquistas da inteligência?
Não foi, portanto, sem a
mais decepcionadora surpresa que muitos leitores se inteiraram, ao compulsar A Barca de Gleyre, coleção de cartas
representando quarenta anos de confidências feitas a Godofredo Rangel, do
longo, acurado esforço de Lobato para obter o dútil e vigoroso instrumento de
expressão revelado em Urupês e nos
livros posteriores.
Para destruir o conceito de
cético, foi esse o último golpe. Cético o homem que já havia revelado em seus
artigos de jornal, quando enfim entrara para o jornalismo e para a vida de
editor, a crença profunda no trabalho da ciência a fim de curar o nosso Jeca verminoso?
Cético, enfim, o homem que, na gênese até então ignorada de sua formação
literária, bebia em Camilo Castelo Branco a seiva do idioma, provendo-se dos
recursos expressionais que raros escritores alcançam em nossa língua de
empréstimo? Cético o cidadão que, mais tarde, ficaria quase sozinho em meio da
preguiçosa descrença nacional, a afirmar que a riqueza do Brasil está no
petróleo, e que o petróleo existe no Brasil, conquanto atestassem o contrário
os técnicos oficiais? Cético o brasileiro que, no empenho de provar aos seus patrícios
a realidade do "ouro negro", desmascarou os técnicos oficiais e, pela
sua coragem inaudita em plena ditadura, foi metido no cárcere?
As cartas de Lobato a
Godofredo Rangel trazem à luz da publicidade e do exame crítico o escritor em
sua inteireza, tanto moral como literária. Não se improvisou homem de letras
como tantíssimos outros que por aí gaguejam algumas ideias-feitas na meia língua
a que pomposamente costumam chamar "estilo". Não; Monteiro Lobato não
procurou a forma dos mestres, nem tampouco leu Camilo como a maioria dos seus
discípulos em busca de palavras peregrinas; nem se percebe em seus sentidos, tanto
os da época do Urupês como dos últimos
dias, os cacoetes vernaculistas do solitário de Seide, imitados, macaqueados pelos
nossos puristas intragáveis. O que ele encontrou no autor da Corja foi o material necessário a quem
pretenda dizer as coisas triviais de maneira tão insinuante, que os espíritos
mais avessos à literatura venham a interessar-se pela matéria versada. O que o
levou para Camilo foi, sem dúvida, o horror a monotonia e ao lugar-comum. E
isto não aconteceu por acaso, como logo veremos.
Assim, quando o fazendeiro
do Buquira remete ao Estado de São Paulo,
para figurar nas Queixas e Reclamações,
uma carta protestando contra o mau vezo do Jeca, de deitar fogo às matas e
pastagens, exigindo providências contra o sacerdote da Grande Lei do Menor
Esforço, como classificado "piolho da terra", era já um escritor
pronto e acabado. E não admira que no jornal, a carta corresse de mão em mão e
fosse levada ao diretor. E a carta foi publicada com destaque, como peça literária,
em vez de ir parar à vala-comum das Queixas
e Reclamações. Estava feita a sensacional descoberta que Rui Barbosa, mais
tarde, recomendaria à atenção de milhões de brasileiros desatentos.
***
PORTUGAL E A ZONA NORTE DE
SÃO PAULO
Não foi por simples acaso,
como linhas atrás acentuamos, que Monteiro Lobato se nutriu de Camilo. O drama
intelectual de ambos é o mesmo. Com frequência os críticos superficiais, tanto
aqui como em Portugal, repetem o julgamento, aceito sem discussão, quanto ao
feitio literário do autor de Eusébio Macário
taxando-o de pouco imaginativo, de haver composto mais de cem romances sobre
dois ou três temas, esgotando-os até ao fastio.
Ora nesse juízo está o
maior elogio ao ardente polemista da "Questão da Sebenta". Não tendo
jamais saído de seu país, permanecendo em seus serros minhotos entregues ao
estudo e meditação das velhas crônicas das famílias e da história de sua pátria,
embebendo-se até à medula do humos nativo, que podia escrever um romancista que
não trouxesse as limitações intransponíveis do meio e da sociedade nos quais
obrigatoriamente devia inspirar-se?
Toda obra deve ser lida de
acordo com o espírito do seu tempo Camilo não foge a estas duas contingências:
a época e as peculiaridades do meio. Portugal permanecia romântico, mesmo quando
o Romantismo encerrara o seu ciclo na velha Europa. Num país rural, de feição
eminentemente conservadora, o apego às formulas românticas ultrapassadas tinha
que ser uma fatalidade histórica.
Sim numa terra e numa
sociedade tardiamente revolvidas pela subversão racionalista, exigir um Camilo
diferente é tão absurdo como deplorar, lendo Platão, que a Grécia não tivesse
telefones e automóveis. O importante é haver Camilo permanecido fiel ao seu
meio e à sua gente. Lê-lo descontando-se as influências do meio e da gente, é
libertar-se do hábito muito frequente em Portugal e no Brasil, de confrontá-lo
com Eça de Queirós. São dois homens tão diferentes que o paralelo resulta uma
intolerável superfetação literária. Tanto mais quanto, o universalismo
elegante e sedutor de Eça, não raro soa falso do ponto de vista do ambiente
português, embora o transfigure um sentido altamente poético. Em Camilo, a verdade
desse ambiente ressalta de modo mais vivo e espontâneo, sem perder, às vezes
certo encanto idílico, graças ao qual o escritor alcançou a notoriedade e os
favores de um público tão numeroso.
É pena que, nos dois
países, a obra camiliana tenha servido de pasto aos vermes da caturrice
vernácula, gramáticos e filólogos, desfigurando-o e desafeiçoando-o à simpatia das
classes letradas.
Ora, Lobato nos parece, quanto
a esse ponto, o único homem de letras brasileiro que assimilou Camilo, sem
incorrer no feio vício de "camilice" pedante. E isto porque os dois
escritores, o mestre e o discípulo, precisaram superar, pela impressão sempre
imprevista, a monotonia do meio. Para se realizarem em toda a plenitude, era necessário
que o estilo, as maneiras de dizer fizessem um vivo contraste com a pasmaceira
circundante.
Formado em Direito e
despachado para a promotoria de Areias, eis o futuro escritor devolvido à zona
Norte, já por aquele tempo caída na "austera e vil tristeza" de uma
irremediável decadência econômica. É a mesma zona que viria a inspirar-lhe os
contos de Urupês e as crônicas de Cidades Mortas. Na sua "oblivion"
bíblica, só há uma forma de evasão — a leitura. Lê muito. É o período fecundo
das descobertas no mundo do pensamento.
Se o solitário de São Miguel Seide
facilmente triunfa sobre a tristeza bucólica de suas montanhas vales, por trazer no sangue insubmisso as taras da
inquietação, a neurastenia sexual, estudada por Júlio Dantas num curioso estudo nosográfico; o destemperado orgulho, a revolta bravia contra tudo e contra todos, Lobato, muito mais equilibrado, possui,
entretanto, o faro crítico a denunciar-lhe a mais saliente característica do
humor.
É tempo de explicar o humor
e a sátira em Monteiro Lobato. Ordinariamente, ao tratar do fenômeno Machado de
Assis, os nossos ensaístas recorrem aos seus modelos conhecidos na literatura
inglesa. O gênio do autor de Brás Cubas
consiste em haver conciliado o que há de particular no humor dos bretões, com o
que há de geral na escola, quando adotada em outros climas.
O que distingue o humorista
é uma espécie de hiperlucidez sem intermitências. O espírito, sempre aceso como
uma lâmpada de grande potência, não está sujeito aos sombreamentos da emoção
lírica. É como um sol que teimasse em não descer ao poente, permanecendo bem
alto, a inundar e ferir tudo com a sua luz crua e implacável. Machado bem que
compreendeu isso, como o demonstra no diálogo entre Prometeu e Asverus. A
eternidade da vida parece ao Judeu Errante algo de tremendo; e, quando Prometeu
lhe diz: "Mas não padeceste, creio; é alguma coisa não padecer nada",
Asverus responde-lhe: "Sim, mas vi padecer os outros homens, e, para o fim
o espetáculo da alegria dava-me a mesma sensação que o discurso de um doido.
Fatalidades do sangue e da carne, conflitos sem fim, tudo vi passar a meus
olhos, a ponto que a noite me fez perder o gosto ao dia, e acabo não distinguindo
as flores das urzes. Tudo se me confunde na retina enfarada".
Eis aí o estado de espírito
de um verdadeiro humorista. A sua hiperlucidez crítica repugnam as convenções
humanas; por mais que a elas queira submeter-se, acaba por insubordinar-se e
voltar à atitude anterior, isto é, a atitude indagadora, portanto prestes a
negar o que antes lhe pareceu aceitável.
Esse comportamento resulta
da percepção clara e constante das mudanças operadas atrás das instituições, de
que suas leis imutáveis pretendem ser o espelho, de que os hábitos e costumes insistem
em afirmar a perenidade tranquila e benfazeja. A sociedade se apresenta, assim,
aos humoristas, como os velhos que, por meio de massagens e pinturas, procuram
contrariar a ação destruidora do Tempo. Todos lhes percebem as rugas e os
cabelos brancos. Os bem-pensantes, calam-se; os humoristas denunciam tudo,
fazendo-o às vezes, para mais acentuar o ridículo, de maneira sisuda e
impassível.
Enquanto as falhas da
literatura bem comportada não foram postas a nu, esteve em moda negar direito
de cidadania, em outros países, ao humor britânico. Dickens, Swift, Sterne —
dizia-se em todos os tons — são produtos puramente ingleses; não podem ser
exportados. A crítica aludia exclusivamente ao "processo" literário
em si e não às causas sociais que o geraram. Em França, Paul Saint-Victor foi
um pouco mais longe, apontou Swift como um perverso intelectual, um ser
destituído de humanidade, comprazendo-o em pilheriar grosseiramente sobre os infortúnios
da Irlanda. Não viu, ou fingiu não ver, no sangrento sarcasmo do panfleto
sugerindo medidas para salvar a Irlanda faminta, o mais doloroso protesto ditado
pela inteligência que se envergonha de mostrar-se revoltada contra as injustiças
de um regime no qual as leis se forjam para garantir o direito do forte contra
o fraco.
Esse pudor da inteligência
hiperlúcida, incapaz de seguir a trilha do lugar-comum, sabendo-o inteiramente
inócuo, só pode externar-se pela sátira.
Mas a sátira, sendo a forma
do humor, não é em si o humor. O verdadeiro humorista, vencido pelas formas
políticas vigentes, pelo círculo de aço em que o encerram os interesses criados
e respeitados; e sendo, ao mesmo tempo, ferozmente egocêntrico, portanto
incapaz de agremiar-se para destruir um tal estado de coisas, insurge-se a seu
modo contra a opressão, mas não acredita que a inteligência possa vencê-la um
dia. Por isto, adota a máscara da impassibilidade sardônica.
O satírico é diferente.
Amando os homens e a vida, investe contra as convenções odiosas, transformando
o riso em arma de combate. Porque acredita na possibilidade de, por esse meio, mudar,
não as formas sociais em si que permitem o advento da mediocridade, mas os
homens, substituindo os estultos pelos sábios, os maus pelos virtuosos, os
hipócritas pelos sinceros, numa palavra, estabelecendo o reinado do mérito.
Monteiro Lobato, como prova
a sua ação pessoal direta e a feição combativa dos seus escritos, na fase
posterior a Urupês, evoluiu das
formas puras do humor para a sátira. Achava possível fazer a República melhor
do que é, os governos menos interessados nos artifícios da politicagem do que
na solução dos problemas coletivos.
Só nos últimos anos de sua
vida sentiu a inanidade de um tal esforço. Mas, do satírico impenitente,
substituiu o senso caricatural. Porque, não podendo haver satíricos e
humoristas sem um forte sentimento do ridículo, Lobato trouxe do berço esse sentimento,
que o estudo e a observação aperfeiçoaram em face das contradições humanas.
Sorria. Dickens definiu o humor como o "sorriso dos tristes".
Mas o espetáculo perene das
contradições humanas, e a necessidade contingente de submeter-se a elas para
subsistir, fazer contraditórios reflexamente os homens desse feitio singular, e
isto apresenta Lobato como um caso à parte na literatura brasileira dos últimos
tempos. Toda a sua vida é uma trama desconexa, na aparência, para guardar
interiormente o fio lógico de sua personalidade autêntica, indestrutível. O
homem permanecerá para sempre igual a si mesmo.
Vimos como o julgamento
inicial dos críticos se tornou precário ao taxá-lo de cético; veremos daqui a
pouco a luta do escritor consigo mesmo para vencer as influências deformadoras contra
as quais nunca deixou de lutar. Horrorizou-o, desde os primeiros passos nas
letras, a desumanização literária, aquilo que veio a tomar o nome de Torre de
Marfim, a fuga à realidade. O feroz egocentrismo dos artistas não
participantes, leva-os a não entender a luta de Monteiro Lobato contra os
resíduos de sua formação reacionária. E essa luta, encerrando uma lição aos
homens de inteligência, é também uma censura que muitos deles vaidosamente
repelem.
Enquanto a similitude do
meio físico aproxima Monteiro Lobato de Camilo Castelo Branco, um terrível
drama de consciência o identifica irremissivelmente com Eça de Queirós.
***
A REABILITAÇÃO DO JECA E DO
CULI
Se, como observa Nietzsche,
"a natureza criou muitos e variados caminhos para se chegar ao homem de gênio",
força é convir que o homem de gênio também conhece "muitos e variados"
caminhos através dos quais chega sempre ao conhecimento da razão e da justiça.
Que
Lobato, desde os primeiros passos na vida até o termo de seus dias, tenha sido
um poço de contradições, sem jamais perder o miraculoso fio de Ariadne de sua
personalidade inteiriça, raramente o assinalam os críticos mais afeitos a
examinar a literatura do que o homem. Vimo-lo, como fazendeiro no Buquira, imbuído
de conceitos meramente beletrísticos, formulando o mais duro anátema jamais
atirado à vítima, por se interpor entre o pobre Jeca, em sua lastimosa
condição, e as causas reais do seu pauperismo, a cultura unilateral de classe. O
mérito de Lobato, nunca assaz louvado, há de ser sempre o haver um dia
reconhecido o erro dessa cultura. E reconheceu-o, já no fim da vida, em carta a
Matias Arrudão, para explicar outra atitude que o havia de destacá-lo
contraditoriamente aos olhos de muita gente: a de incorporador de empresas petrolíferas.
Espantosa fábrica de paradoxos foi sempre o homem que, nascido da classe
fazendeiral, renuncia à terra para meter-se na indústria dos livros; arruinado
e desiludido da indústria dos livros numa terra de pobreza e analfabetismo,
ambiciona lançar-se a mais largos horizontes e entra a sonhar com a indústria
pesada. Modesto em seus hábitos domésticos, pessoalmente sóbrio, sem vícios,
portanto sem necessidade de fortuna, tendo vivido com os seus na mais austera
mediania, não pensa e age como um burguês de sua classe, mas como um
aventureiro de além-Atlântico descido em Nova Iorque para tentar fortuna. Ficcionista
em sua auspiciosa estreia literária, quando entra pelo jornalismo adentro é
para partilhar as ideias de Artur Neiva e outros cientistas, buscando salvar o
homem brasileiro pela engenharia sanitária. Enfim, podendo findar seus dias com
a renda da obra copiosa que deixou, ainda hoje ninguém pôde conciliar sequer o
escritor cruel de Bocatorta, Colcha de retalhos, A vingança da peroba, com o autor de livros infantis, debruçado
sobre Lilipute, iniciando-o carinhosamente no grande mundo das ideias práticas
através das mais descabeladas fantasias. E nenhum homem mais terno, mais
rendido à graça inquieta de milhares de cabecinhas infantis, recebendo-lhes as
cartas balbuciantes, acolhendo-as em casa, quando as mães até lá conduziam os
filhos para conhecer o autor de Dona
Benta, do Visconde de Sabugosa e
da Chave do Tamanho.
E
é, no fim de contas, o humorista que salva Lobato do abismo de si mesmo. Graças
a essa rara disposição da inteligência inamolgável ao convencionalismo, chega a
perceber o erro cometido, sem entretanto perceber que, para liquidar de uma vez
com o falso indianismo e o caboclismo hipócrita, pouco importam as ideias
reacionárias do escritor; o que importa é a verdade sobre o nosso Jeca. Até
então, somente Euclides da Cunha, nos Sertões,
vislumbrara o erro monstruoso do litoral, ao investir contra os nossos irmãos
de Canudos, não com as armas do progresso, a escola, a técnica, os jornais,
todos os instrumentos tornados monopólio dos habitantes da orla marítima, e sim
com os fuzis e canhões destruidores. Mas Euclides, mercê do aprendizado
socialista que lhe propiciara Silvério Fontes em Santos, havia devassado novos
rumos. E, como depois se averiguou, não estava intoxicado de literatura, não
obstante o seu estilo requintadamente literário, mas larga e tumultuosamente
aprovisionado de ciência.
Não
importam, repitamos, as ideias políticas do escritor. O que importa é o seu
respeito à verdade. Balzac, monarquista, partidário de Napoleão, ultramontano,
nem por isso deixou de ser o historiador fiel da burguesia capitalista. Não
endeusou os nobres para desfigurar o burguês: pintou a ambos como eram e são na
realidade. Ao baixar seu olho imenso e perquiridor sobre a sociedade nascente,
fazia tábua rasa das ideias políticas e religiosas, mostrando-se avesso
inteiramente a todo facciosismo.
E
foi porque Lobato agiu da mesma forma, ao traçar, no estilo mais impressivo em
oposição ao nosso dessorado beletrismo, o perfil do infeliz "agregado",
que provocou a animadversão de todos quantos viviam dentro de um sonho cor de rosa.
A literatura havia falsificado a tal ponto o nosso roceiro caboclo, criando em
todo o país um ilusório estado de consciência a seu respeito, que o
"retrato" de corpo inteiro, tirado por Monteiro Lobato, ficou sendo
uma horrenda e repulsiva caricatura. O escritor portou-se, no cerimonioso
banquete das letras nacionais, como um convidado indiscreto capaz de
comprometer o bom tom, ao declarar ter encontrado na sopa de aspargos, não um
fio, mas um chumaço de cabelo.
No
fim de contas, a quem interessava a adulteração da verdade a respeito do Jeca?
Aos
fazendeiros, aos poderosos do dia, àqueles mesmos em cuja classe se achava
encartado o escritor. Numa palavra: aos coronéis tatuíras, que passaram a ver
no seu colega fazendeiro da Mantiqueira, possuidor de um másculo estilo
literário, a ovelha negra do rebanho. E nunca lhe perdoaram Urupês, como no futuro não lhe
perdoariam outras verdades duras, bem como a tomada de posição entre os que
desejam de verdade a nobilitação física, moral e intelectual do Jeca.
No
entanto, posto de pé o desgraçado Jeca, levado aos quatro cantos do Brasil para
que cada brasileiro falsamente ilustrado sobre a realidade brasileira o visse
em sua verdadeira condição, quando Lobato enfim se desembaraçara das influências
deformantes da literatura doce de coco, e começa a ver claro, apossa-se dele o
mesmo remorso que assaltou a Eça de Queirós... por um crime que não havia
cometido.
Todo
mundo sabe que Eça, antes de frequentar Londres e Paris, na carreira consular,
viu-se despachado para Cuba. E eis que a função lhe apresenta sedutoramente
aquilo a que hoje chamamos, num sentido imoralíssimo, oportunidade.
Como?
Muito
simples. Quem no-lo explica, ao traçar o perfil biográfico de Eça, é o seu
amigo Eduardo Prado:
"Florescia
então em Cuba o comercio dos "chins" escravizados, nominalmente portugueses
porque era do porto português de Macau que eles eram levados para os infernos
de verdura, calor e de sofrimento que eram, para eles, as plantações de açúcar
da ilha. Foi Eça de Queirós nomeado cônsul para regular, inspecionar e,
portanto, manter esse comércio. Por uma disposição fiscal da lei consular, esse
comércio era altamente lucrativo para o cônsul. Aconteceu, porém, que o cônsul foi
Eça de Queirós, que começou uma campanha oficial contra o comércio dos "chins",
que foi, finalmente, abolido".
E,
no entanto, se aceitasse a proposta feita pelos fazendeiros cubanos, Eça teria
enriquecido. Via de um lado a fortuna proporcionando-lhe os requintes do
conforto a que sua natureza de artista era particularmente atraído, mas via de
outro o pobre "culi" — o Jeca chinês — escravizado os truculentos
"terratenientes" de Cuba. Bastou o fato de, numa visão estonteadora e
fugaz, haver em sua imaginação prefigurado um palácio, roupas de fino talhe,
gravatas de seda, luvas, mármores, livros raros e, de outra banda, o
infortunado "culi", para o escritor, no futuro, como que libertando-se
de um pesadelo, escrever O Mandarim.
Nessa novela, o escritor altamente dotado de uma moral humanitária, prova que a
consciência humana está condicionada ao imperativo das distâncias. Se, para
herdar a imensa fortuna de um mandarim, no fundo da China, fosse necessário apenas
o gesto de premir um botão, provocando lá muito ao longe a morte do letrado
amarelo, quem deixaria de fazê-lo?
Pois
Eça de Queirós não só não tocou no botão de cristal, como lançou o seu veemente
protesto funcional contra a opressão dos desgraçados "culis". E
escrevia ao ministro do Exterior do seu país, a 17 de maio de 1873:
"Sucede,
com efeito, às vezes, que nos engenhos há assassinatos misteriosos de "mayoraes",
a que os "chins" não são alheios; mas estes excessos não podem ser
atrelados à índole, porque vem da desesperação. À desesperação se deve
atribuir, também, ainda que haja neste fato muita influência das superstições
religiosas, os numerosos suicídios de colonos. Assim é, excelentíssimo senhor, que
em todos os exemplos da servidão humana, eu não conheço, a não ser no "felá"
no Egito e na Núbia, ninguém mais infeliz do que o "culi". E se a
justiça não é uma mera categoria de razão, a condição dos colonos na América
Central não é compatível com a dignidade desta época".
Monteiro
Lobato, que com leves variantes de meio e circunstâncias, veio a retificar um
julgamento feito à base da emoção e não da razão, ou mais precisamente,
conseguiu liquidar em si o literato para restaurar o homem justo, subscreveria
o arrazoado de Eça.
É
possível ampliar o paralelo. Eça, tendo seguido para o Egito, em companhia do
futuro cunhado, conde de Rezende, a fim de assistir às festas inaugurais do
Canal de Suez, convidados ambos de Ismail-Paxá, o quediva, pôde ver com os
próprios olhos o tratamento cruel dispensado aos "felás". Trabalhavam,
e por muito tempo ainda trabalharam a chicote.
Pois
bem; mais tarde, já cônsul na Inglaterra, descrevendo o bombardeio de Alexandria,
para mostrar como Arabi-Paxá estava com a boa razão colocando-se na defesa de
sua pátria, em certo passo recorda-se dos sofrimentos do "felá" e dos
gastos santuários do quediva:
"...Despesas
com os dois mil convidados durante quinze dias no Cairo e no Canal — setenta
milhões!... Para a champanha bebida nessas semanas de bambocha — dois milhões! O
"felá" pagava. Eh! e eu que estou aqui a falar — também a bebi, essa
champanhe que era no fundo o suor do "felá" espumante e açucarado!
Também eu fui hóspede de Ismail-Paxá, à custa do "felá!" Também eu...
Calemo-nos, cubramos a fronte de cinzas, imploremos o perdão do felá!"
Tal
foi o drama de Lobato em relação ao Jeca. Na carta a Matias Arrudão,
sinceramente o confessa. Lamenta os dias em que, no Jeca roído de vermes,
maltratado, escorraçado das fazendas como um cão lazarento, interessava-o, não
o ser humano, mas o motivo estético, o assunto literário. E toda a batalha que
veio a travar mais tarde, em busca das riquezas do subsolo, não visava outra
coisa senão enriquecer a nação. E, enriquecendo a nação, teria salvo o pobre Jeca
da miséria afrontosa que o envilece tanto como ao "felá" e ao "culi".
A
diferença entre o drama de Lobato e Eça é que este último, ao fazer-se de vela
pelo mar remansoso da literatura estética, estava já largamente abastecido de
socialismo, enquanto o primeiro, o autor de Urupês,
só veio a divisar a Terra Prometida quando a idade e a doença apenas lhe
consentiam lançar a vista para o passado, à procura do tempo perdido.
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GALEÃO COUTINHO
GALEÃO COUTINHO
Revista "Fundamentos", edição
de setembro de 1948.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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