Lembrava-se mal dos primeiros dias de hospital.
Confundia as alucinações terríveis da febre: carrancas, esgares medonhos, com a
realidade triste: o senhor enfermeiro, um brutal, arrastando a perna, piteiro
sempre, atrás da maca.
— Aí no vinte, rapazes!...
Aos rasgões via a enfermaria, as camas
alinhadas, de cobertas de ramagens escuras; a noite — lampiões luzindo
tristemente, quando redobram os gemidos, maldições, aquela gente com medo de
morrer longe dos seus — principalmente uma criança chamando pela mãe, numa ânsia
terrível.
Ele tinha pena também, e depois com a noite a
febre voltava-lhe, tristezas grandes, alguém que morria, torcendo-se, aos
uivos, lutando com a morte, para não ficar ali no hospital medonho, com a
autópsia em seguida, a cova triste, um farrapo de lençol com manchas de sangue
... E o doente do vinte e um, a cama junto à dele, dizia obscenidades, rindo
escárnico, roído por um cancro na face, medonhamente inchada.
— Mais um! Mais um! Lá vai aquele adiante de
mim!...
Era terrível aquele homem, Odiava os que iam
passando melhor, com alguma esperança já, e tendo a morte certa, e sabendo-o
desiludia os mais, cheio de podridão, a cara roída, roída a alma. Dizia rindo,
com uma alegria muito grande ao ver os outros empalidecer:
— Tenho visto muitos assim! Vão melhorando e de
repente... zás...
E descrevia-lhes miudamente, com um regalo
intenso, a casa das autópsias: os estudantes
cortando carne, atirando com desplante bocados uns aos outros,
esburacando nos cadáveres...
— Que aquilo são uns malandros!...
De maneira que o temia — e já, na alucinação da
febre, o doente do vinte e um lhe aparecera, dizendo dele:
Lá vai mais um! Lá vai aquele! — rindo, os olhos
cheios de contentamento, com vontade de que os outros morressem primeiro,
prenhe de inveja, sabendo que todos tinham nojo dele, que era repugnante, podre
assim...
Pouco e pouco, porém, foi melhorando. Sentava-se
na cama já, muito pálido, sem força ainda — e o médico dissera:
— Vá que você escapou de boa!...
Um dia, da aldeia apareceu-lhe a mãe — uma
velhinha antiga, miudinha, muito lavada, os olhos azuis. E rindo mostrou-lhe
maçãs que trazia escondidas debaixo do avental — malapios do quintal, da velha
macieira, muito vermelhos.
“Ai o seu filho não imaginava como o pomar
estava lindo, cheio de fruta, carregadinho, assim!... Era preciso enrijar.
Querendo Deus havia de se pôr bom depressa...Depois ia até lá, passeava...
Veria...”
Ele, contente, mais saudável até, o olhar
luzindo, pensava nos seus, via o quintal, amava a sua casa cheio de ternura
como se fosse uma pessoa: lembrava-se das árvores, da laranjeira antiga...
E a mãe papagueava-lhe dando-lhe as maçãs de
presente, ajeitando-lhe a roupa, risonha, trabalhadeira — querendo ver tudo em
ordem.
— Ora, meu filho!
Depois uma enfermeira passou, e a velhinha
reconhecendo nela a filha da Maria da Tenda, da sua aldeia, correu, os braços
abertos, radiante — e houve um contentamento, risadas — a rapariga, satisfeita
por a velha lhe falar nos seus, prometendo olhar pelo doente...
— Ora a Maria! Como estás bonita, rapariga!
Benza-te Deus!...
E na cama o homem do cancro espreitava mordido
pela inveja — sem ninguém que dele cuidasse — odiando-os a todos...
Ai, pois todos, todos os doentes tinham quem os
visitasse, mulher perdida ou mãe, que viesse um dia na semana amá-los, trazendo
uma fora fruta, carícias, enchendo à quinta-feira de alegria, de cheiro a roupa
lavada, a enfermaria, o hospital inteiro — e só ele...
E toda a vida fora assim — assim sempre,
sempre... todos tinham nojo dele, a cara aberta de pachos em sangue, com nódoas
lívidas de podridão e de matéria, sem nariz, medonho e terrível. E de cada vez
o mal avançava mais, hediondo, hediondo... e ele sentia na alma violentamente
um desejo grande de amar alguém. Sem lábios já, tinha vontade de dar beijos
ainda...
De manhã procurava nos mercados, no Anjo —
nascia o dia — pedaços de fruta apodrecida, mexendo com o pau, curvado,
nojento, a babar-se, podre — Jesus!...
E pouco e pouco a alegria ia entrando no
mercado. Era uma tela de artista genial e forte, sem preocupações. Montões de
repolhos amarelos, cenouras, rábanos, todas as cores rompendo em contraste,
amontoadas, aos murros. Em cima das bancas as couves dum verde escuro,
exalando frescuras, regadas, pingando... Do outro lado, nas barracas, laranjas,
canastras de maçãs, de frutas... O sol que nascia dourava a folhagem das
grandes árvores e o saque àquela abundância começava. As regateiras, braços
nus, fortes, manga arregaçada, discutiam. Uma flecha de sol dourada atravessava
as folhas, e caindo sobre os legumes, sobre os frutos, aviventava as cores um
instante... E era uma balbúrdia, uma alegria esfuziando no céu... Ele então,
repelido, desaparecia. Chegada a noite vadiava pela cidade, rente às muralhas,
escondendo-se na escuridão das vielas, em antros repelentes que só ele conhecia
— e na alma raivava-lhe sempre uma sede grande de amor, uma ânsia infinita que
nunca acalmava, em revolta sempre. E até as rameiras nojentas, vadiando na
cidade à noite, sem fim, como cadelas com fome, fugiam dele! Sem ninguém que o
amasse, bom Deus! E só uma noite — uma noite de chuva — uma barregã nojenta o
quisera. Não tinha pálpebras ela, a miserável, roída de sífilis, um montão de
andrajos, a podridão ambulante. Para se aquecerem, ela morrendo de fome, ambos
morrendo de frio, juntaram-se no escuro — e foi o noivado da podridão. Ao outro
dia ela morreu — e ele foi vadiando, quase feliz, quase contente.
E mais e mais nojento — terrível...
Pouco e pouco, escorraçado, sem a piedade de
ninguém, toda a gente com nojo dele, odiou o mundo inteiro; afez-se lentamente
a alegrar-se com a desgraça dos outros e tinha o desejo ardente de que a
humanidade inteira apodrecesse mais depressa que ele — que todos morressem
primeiro. De uma vez correra, cheio de raiva, atrás duma criança, procurando
beijá-la para lhe comunicar a podridão que o enchia...
Quando a mãe lhe disse adeus o doente do vinte
ficou cheio de resignação, o pensamento nos seus, as maçãs escondidas debaixo
do travesseiro — e o outro espreitando odiava-o, odiava-o mais ainda — porque
ele tinha saúde, e porque ele tinha mãe. E como o rapaz lhe oferecesse uma
maçã, comeu metade — e queria que ele comesse o restante, sabendo bem que o
outro não aceitaria porque tinha nojo dele — unicamente para o ver embaraçado.
— Coma, coma! Instava.
O rapaz cheio de repugnância não quis, fazendo
um gesto de nojo e ele então comeu a maçã inteira.
Pouco e pouco a enfermeira começou a gostar do
doente. Falavam da terra, dos seus — e juntos passavam ali na enfermaria dias inteiros
amando-se...
E ele sentia ao ver os dois juntos, ela rindo,
cheia de cuidados, afável e linda, um ódio imenso, uma raiva espumante, sem
fim, rebentar-lhe na alma. E os dias todos, tardes inteiras, os ficava
espiando, espiando... E ele morria. Como todos o odiavam, o enfermeiro havia
dito contente, arrastando a perna, ao passar por ele:
— Anda malandro, esta noite, zut! E foi
cantando:
O ladrão do negro melro
Toda a noite assobiou...
E um rapazola para outro doente:
— Que raio de piteira hoje, hein!...
A Morte! Era ela! Morrer, bom Deus! Morrer sem
ter tido no mundo um dia de felicidade, alguém que o amasse, mulher que o
beijasse fundamente, com amor, na boca! Morrer! morrer! quando o do vinte
renascia para a vida, falando em casamento à enfermeira, tão linda, linda! E
sentiu-se nojento naquele instante: — tendo-lhe estalado um olho, a face
descarnada já, o peito também, não podendo falar desde o dia antecedente, a
rouquejar — horrível, horrível — vivo ainda e sentindo já os bichos roerem-no,
passearem-lhe lentamente na fronte! Morrer! morrer! Não queria! não queria! E
torceu-se na cama numa angústia enorme, rugindo! Não! Não! Babujou. Mas caiu
sem forças e então pediu... Bom Deus! O bom Deus bem sabia! Por piedade! Nunca
ele tivera como os outros mãe que o acariciasse — alguém que lhe dissesse no
mundo uma palavra amiga, cheia de bondade. E ele não pedia muito, não!... Um
dia só de felicidade! Um momento — Jesus! Só um instante, alguém que o
acariciasse — alguém que lhe desse um beijo na boca, um só— Senhor!...
A noite descia; a noite avançou terrível,
medonha naquele hospital. Gemidos redobraram e doutras enfermarias vinha de
quando em quando um grito — alguém que morria talvez... Dos Lampiões caía uma
luz ensanguentada, e nas paredes a sombra das cordas que os suspendiam
desenhava-se em arranhões tremulando... As camas, àquela luz vermelha e má,
enfileiravam-se tristemente, e os doentes gemiam... Na do trinta — um pedreiro — à morte viam-se os lençóis sacudidos numa
respiração ofegante, num arquejar cheio de angústia e àquela hora, acordados
ainda, os doentes lembravam-se dos seus — das suas mães, das suas casas, da
aldeia, do sol, de lá de fora... — Meu Deus! Meu Deus! Era a hora terrível, a
hora angustiosa em que se tem medo de ficar ali, em que a febre aumenta, em que
as alucinações começam, as súplicas do Senhor, os gemidos, os gritos do fundo
da alma... Para ele aquela noite era a última, a última! Sentia-o! sentia a
morte!
E o seu único olho raiado de vermelho, luzindo na cara apodrecida e
negra, olhava fixo, odiendo e triste — cheio de tristeza pelas alegrias que
nunca tivera — cheio dum ódio intenso por todos aqueles que as sentiam... Um
pensamento dominava-o agora: — ia morrer e os outros — o do vinte — não morriam também! E o ódio
foi tão grande nele que se sentou na cama — o olho vermelho luzindo, luzindo...
Mas teve de se deitar outra vez: a enfermeira
vinha ainda ajeitar a cama do vinte —
e ele ouviu, ouviu bem, ela dizer alegre:
— Durma bem, vá! Amanhã tem alta!...
Ai, para aquele havia amanhã ainda, alta, saúde, o casamento e ele...
Oh, Deus! Oh Senhor, Senhor!... por piedade, bom Deus! Que bandalhos!... deitou
as pernas fora da cama num impulso, mas agachou-se ainda: alguém passava
devagarinho, sem barulho... E ele não podia! Já não podia! Sentia-se morrer.
Mas era ali — vá.... Gemidos redobraram e ouviu-se bem um grito noutra
enfermaria — um grito onde a angústia era tanta, tanta, que ele mesmo o
sentiu!... Vá!
— Que é? Disse o do vinte surpreendido.
Mas não teve tempo de gritar. O outro numa raiva
infindável, louco, caiu sobre ele, cheio de força, apertando-lhe o pescoço
entre as mãos, beijando-o, esfregando-lhe a cara pela dele com força, a ponto
de pedaços podres de carne caírem...
Ao outro dia encontraram-nos mortos ambos, ambos
juntos. E o enfermeiro, arrastando a perna, chamado à pressa, piteiro já,
berrou:
— Ora já viram um filho da puta assim! Que
canalha!
E foi dar parte, cantando:
O ladrão do negro melro
Toda a noite assobiou...
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Raul Germano Brandão (1867-1930)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
Raul Germano Brandão (1867-1930)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
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