O Gato Negro
Desolado em minha sala, estava eu na
hora das obsessões, o espírito muito para além, pela região dos problemas, bem
longe do mundo e bem distante do bulício humano. Todo o movimento, todo o rumor
cessara e a vida imergira na profundeza do seu sono. Quanto a coisas da terra,
só me apercebo de que me vem lá de fora a impressão da alta noite, calma e solitária.
A rua está deserta e numa grande mudez solene, a destacar-se no meu espírito
como em contraste com a vertigem de poucas horas passadas.
Ainda assim, são fortes as emoções
que me sugere a vasta solidão da noite. E é por isso que não tenho a coragem de
maldizer o silêncio de necrópole que me chama lá das alturas em que anda meu espírito
e que logo me absorve e me vence. Não posso imprecar... porque sinto que amo
aquela escuridão.
Amiga suave e carinhosa das almas –
noite sonhadora e amargurada! – tu és a imagem do mundo em que vive meu espírito.
Pois que tu, noite amargurada, és o mistério que envolve a vida e tens no teu
seio imenso, bem sensíveis, todas as dúvidas do universo moral. Tu és como o caos
informe e indefinido de que vai sair daqui a instantes o prodígio da Criação, restituída
à nossa ansiedade e ao nosso espanto.
Bendita a noite que nos faz novo o
universo! Bendita a noite que me fecha de todo a alma no insondável escuro,
onde erra meu espírito, à busca de signos indecisos e como se estivesse à espera
de palavras augustas que vão ser faladas. A natureza está para mim numa atitude
e numa pompa mística de cerimônia cultual. Há pouco em torno de mim havia
tumultos e eu suspirava; havia todas as manifestações ruidosas da vida, e eu
inquiria o destino numa sagrada ânsia de viver. E é só agora que meu coração se
apercebe de que está no mundo onde se criou e em cujos páramos silenciosos tem
vivido – mundo feito de sombras, de luares inefáveis, de horizontes sem limites
como as voragens; mundo de seres intangíveis,
de existências sem formas, de vultos sem contorno; mundo do vago extenso, da
cor indefinida; mundo da névoa, da solidão e do assombro – ideal paragem das
almas a vagar ansiosos neste oceano do tempo...
A cidade dorme, exausta das azáfamas
e só se ouve, de momento a momento, muito por longe a perder-se na distancia, o
ladrido de cães como aviso de sentinelas que a vida postasse neste amplo solar simbólico
do além, para impedir que seja tranquilo o sono dos que dormem... Ouve-se ainda
o cantar de galos, cantar que anuncia ressurreições, que alarma todo o instinto
heroico, mesmo nas criaturas vencidas... Dir-se-ia que no meio daquele sono
trabalha uma dolorosa obsessão de vigília... e que aqueles ladridos e aqueles
cantos destacam ainda mais o silêncio temeroso que impera sobre as almas como
angústia desconhecida.
E imagino então que estou no meio de
uma grande noite polar... Em torno de mim há uma natureza morta, ruínas
desoladas de um mundo que passou, desertos infinitos eternamente sepultados na
escuridão e na erma quietude que ficou de tudo que foi...
Mas é naquelas mesmas estâncias solitárias
que a alma readquire o vigor antigo, e em vez de sentir a morte e o nada, vou
procurando na imensidade gelada os vestígios da vida.
E como seria bela e grandiosa aquela
noite sem fim! Que mistérios não desvendaria eu na mudez daquele escuro! Que
problemas, que dramas, que heroísmos estranhos me segredaria aquele silêncio de
noite polar!
Eu ia absorto nas profundezas do meu
pensamento, quando sobre o peitoril da janela aberta ergue-se o vulto sinistro
de um gato negro, enorme, imóvel, a fitar-me, como um duende vindo do mistério.
Tive ímpetos de fugir, de buscar alguém que me falasse, alguma voz humana que
me restituísse a minha consciência. Depois, estaquei. Veio-me à lembrança o
corvo do poeta – a ave da desilusão, ave que sabe de todas as línguas apenas
aquelas duas palavras que gelam as almas: – o nunca mais! apavorante e desesperador.
– Mas tu, gato negro, tu andas na
superstição das pobres criaturas envolto sempre na ideia dos demônios. Dos animais
que convivem com os homens, és tu aquele que mais os espanta, porque tu amas o
escuro e o silêncio, tu és o animal da noite, e como animal da noite és o
emblema do pecado e do crime. Se as almas piedosas te vissem pousar esse vulto
cor da treva no alto de um sepulcro – as almas obumbradas se afastariam, porque
tu não te cevas de cadáveres como as hienas, mas de almas como o remorso.
Quem sabe se tu não és mesmo a encarnação
de gênios maus, de espíritos malditos, de agouros errantes, e se não andas de
mundo em mundo como exilado impenitente, a perseguir almas, na insânia do teu
castigo... E se esse fulgor que tens nos olhos é ainda um resto do antigo
brilho que te ficou da bem-aventurança perdida – tu és mais do que as aves, porque
mais do que as aves já amaste e hoje odeias mais do que as aves.
Vem, pois, dizer-me o que sabes da
vida. Não te inquiro sobre as Leonoras que se foram; nem desejo saber o que as
almas amam no céu: dize-me apenas se o inferno de onde vieste é mais horrível
do que a terra. Dize-me se lá também há crimes e se os crimes lá chegam a ser
monstruosos como aqui... Se os entes lá também detestam Deus e aborrecem os
homens... Se tanto como aqui a perfídia, a soberba e a impiedade estão no seu império...
Dize-me se as almas lá vivem também de perseguir as almas...
Imóvel, o monstro parecia ruminar a
minha aflição.
– Mas ouve-me, gato negro. Nas
lendas deste mundo, tu figuras como o disfarce preferido no inferno e sem
duvida, esse conspeto e essa cor escondem alguma coisa da cidade do pranto e
do ranger de dentes... Vem dizer-me se lá nas entranhas do Orco há também Neros
e Denys; se há juízes que condenam inocentes e absolvem culpados; se há lá consciências
capazes de criar Lesurques e Dreifus; se há lá Marats e Herbets e se a liberdade
é horrenda como os feros Moloques daqui. Vem dizer-me, tu que vieste do inferno,
se lá os bons também padecem e se o prêmio da virtude é também lá o martírio
eterno...
Uma palavra tua é bastante, animal
sinistro, êxul da danação. Conta-me se os demônios do inferno são piores que os
demônios da terra... Se há lá maldade que chegue a profanar o sagrado e abusar
da inocência... Dize-me se há lá monstros que sem tremer vão até... envenenar a
esmola com que matam a fome... Ou então, se perdeste a lembrança dos horrores
do inferno ao ver os horrores da terra – fala-me ao menos por gestos e dize-me
como são os castigos do inferno... Dize-me se lá também se conhece um castigo
chamado sonho... este castigo que põe
as almas, sob o silêncio das noites, num grande estatelamento em face do céu,
sem saber por que vieram, sem saber como vivem, sem saber por que suspiram...
Ante a imobilidade do bruto, fico
mais aterrado e cada vez mais exausto. Um medo supersticioso começa a
invadir-me o coração e sem me aperceber me vou erguendo. O animal, como se houvesse
crescido, levanta mais a cabeça e me fita firme e quase hostil. Num supremo
esforço, grito para o vulto, cuja silhueta se destaca enorme e monstruosa à luz
do gás da rua:
– Mas então, se no teu mundo não é
como aqui; se lá não se extingue nas almas a doce e triste piedade, dize-me ao
menos se lá também se ama e se adora...
Um longo miau formidável me faz tremer e o bruto, dum salto, desaparece no
infinito da noite.
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José Francisco da Rocha Pombo (1857—1933)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
José Francisco da Rocha Pombo (1857—1933)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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