Noite de luar. A Árvore
mergulha os braços esguios num oceano de luar translúcido, bilhões de átomos
luminosos errando. Primavera... Houve uma coisa que eu sinto, mas que não sei
descrever. Esta primavera caída lá para o fundo, que queria ser primavera, e
que revolvia na escuridão totalmente cega, e aquela Árvore de saguão que queria
ser árvore e que se lembrava numa dor emudecida do espaço e da luz... – E não
morria! e teimou.
E subiu, toda dor e
desespero. Teimou e subiu. Teimou branca e imensa e com uma vida estranha...
Por pouco ouvi-la-íeis falar... Escutai-a na noite calada e cheia de tanto luar
que faz aflição. Por entre os raminhos tremuleiam fios de luar esquecidos. No
chão a sombra da parede faz mancha e os fios de luar dão-lhe vida. Diríeis que
ali anda fôlego vivo. Fora da sombra é tanto o luar que só se vê uma brancura.
Por pouco ouvi-la-íeis gritar...
O Gabiru cisma. Os olhos
abertos, todo ele dolo-rido, deita-se ainda a cismar. Vivera sempre tão
transido e pobre, tão sozinho – que lhe não fugisse o sonho – e nada lhe ficara
entre as mãos. Só escárnio! só escárnio!...
Bate o luar em cheio
naquela figura exótica e transforma-a, Não é ridículo.
Corre-lhe o luar nos olhos, nas mãos estendidas, e cheio de luar sorri
extasiado...
Hein, que queres tu? Nasce
uma criatura para a desgraça. Em pequena anda rota, quase nuazinha, e o pão da
vida dão-lho os ladrões e soldados. Maltratam-na, irmã da terra, rasa como a
terra. Nada sabe do sonho – e que culpa tem ela de não sonhar? Violam-na,
tornam-na igual das pedras, seca como as pedras, mesquinha, e arrancam-lhe
todas as aspirações, cospem-lhe em todos os sonhos. Só sofre. Vêm uns, vêm
outros para a fazerem gritar, e ela um dia põe-se a rir e ri-se até da
desgraça.
Julgaríeis que na sombra,
sob a árvore, o luar constrói e tece, à medida que o Gabiru vai tecendo. É não
sei o quê de incerto que mexe – fio de luar ou vento que passa e vai transir a
sombra misteriosa. O Gabiru olha extasiado.
Da terra dilacerada surgem
formas de prodígio. Quanto mais revolvida a matéria, mais bela é a eclosão do
sonho. Da vida da Mouca que começou a sofrer em pequenina, logo a princípio se
criou algo de radioso. Ela ria, a Mouca, escarnecida e calcada, sem ter tido
quem a ampare senão prostitutas e ladrões. Nasceu para gritar – e ri. Mas nada
se perde na vida. Ela que tudo ignora, rolada como as pedras no enxurro,
conhecerá o extraordinário sonho. Daquela matéria espezinhada vai nascendo uma maravilhosa forma de luar.
O filósofo sorri extasiado
para a Sombra. Ei-la! Uma fisionomia pálida, onde os olhos cegos se perdem, tênue,
construída de luar ou construída de sonho. Direis que essa figura esguia,
sustentada a luar, de negros cabelos de sombra, desaparece no escuro, torna a
surgir nos fios de luar...
– Fui eu que te criei, és
minha! – diz ele absorto, erguendo-se. – Caminhas para mim alheada, não me
querendo olhar e não me podendo fugir, pálida e tremendo. Vens sob o tecido do
luar. Oh que palavras te hei de dizer, ajoelhado, que singulares monólogos
feitos de nada e enormes, arrancados à vida láctea, com palavras que nunca
aprendi, nem soube dizer, mas que me brotam da alma como nascentes! Quem me
dera ser a noite, a árvore, o luar, que me enche de aflição! Juro-o, as árvores
falam com o luar, as montanhas namoram-se ao luar. Brilham perdidas tantas
estrelas pelo céu, meu amor!... Os sapos, confundidos diante da giganteia
natura, cantam nesses pios que, ao longe, na solidão, magoam como ais de alguém
a quem aconteceu desgraça...
Olha: eu sinto-me distante
de ti, para que não fujas desfeita em luar. Gostava tanto de sentir a tua mão
pousada na minha cabeça, tanto! Olha!...
Sob a Árvore –
realidade ou ilusão? – uma figura se constrói de luar, na sombra opaca uma
tremulina toma forma. Juntam-se os fios de luar, amontoam-se névoas e alguma
coisa treme, prestes a fugir – mas viva! viva!...
Diríeis que é só um
sorriso, um olhar muito triste... O Gabiru corre e tudo se esvai... Só a Sombra
resta e um ruído de gotas de luar tombando sobre a Árvore.
Ele sorri e diz:
– Eis como se cria uma
alma!
Todas as noites, muito
tarde volta para ao pé da Árvore.
– Uma é terra, outra é luar
– murmura. Quanto mais a Mouca sofre, mais esta se cria. Oh, não me fujas! Vens
com a noite, melancólica e pálida como as mortas arrancadas ao sepulcro.
Criei-te de lágrimas. Os teus cabelos esparsos perdem-se na sombra. Nunca vi na
escuridão os teus olhos, mas sinto a irradiação da tua alma!...
O Gabiru, na noite branca e
calada, sente-a aproximar-se e olhá-lo muito tempo.
– Minha alma!
Nem um murmúrio. Noite a
noite era mais o luar. Absorvia tudo. A sua claridade misteriosa diluía a terra
e as coisas. A Árvore imensa e só dor, a Árvore esmaecida, toda se desfazia em
pó claro. E noite a noite também a Sombra opaca se tornava mais espessa e
funda. A certas horas o silêncio estremecia, num ai baixinho e triste.
Era a criação! A alma da Sombra acordava. Ei-la! ei-la!...
– Minha vida!
Via-a perfeitamente. O oval
do rosto pálido, os negros cabelos compridos, inteiramente feita de sonho e de
lágrimas. Só os olhos se perdiam em duas sombras, cega talvez de tanto ter
chorado – por a outra rir.
– Não fujas!
Correu um dia para a
Sombra. Lua cheia, lua alta. O mundo, todo embebido em luar, era como um grande
sonho de beleza. Logo a imagem se esvaiu e na sombra funda, na sombra opaca,
restavam apenas manchas vagas e dispersas, luar desfeito... Apalpou a terra.
Havia um ruído ainda –pelo chão corria um fio de água ou um fio de choro...
– Meu amor! meu amor!
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Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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