No último andar do prédio
mora o Gabiru, um solitário filósofo, esguio e triste como um enterro. Sabe
tudo e nunca viveu. O que existe para lá do Hospital é para ele um grande mar
ignorado e verde.
A realidade também não na
entende: da vida só se fartou com sofreguidão desta fonte que transborda – o
sonho. Tem o olhar estático e, metido na trapeira com ignóbeis calhamaços, deixa
correr as suas ideias à solta como os rios. Assim, metafísico e pobre, de raras
palavras, deitou-se a armar a Mouca, escárnio de soldados.
Nasceu para sonhar. Tem um
suspiro de alívio quando se fecha na mansarda e exclama: – Vou idear!...
– Sabe palavras, teorias,
cartapácios, e nunca viu ao pé os rios, os montes, nem as árvores. Remexe em
ideias profundas e nunca encontrou a realidade.
É assim feliz e triste.
Posto à janela do cubículo espreita por cima do Hospital, sente correr o
doirado jorro dos dias, cisma num portentoso sonho e ama. Entre as ideias que
vai tecendo surge sempre aquela figura trágica, que todo o dia ri com os
ladrões e os soldados...
Ignora a vida. Alguma
coisa, porém, existe de imaterial – emoção violeta e ouro –
que o rodeia, quase o toca e súbito foge magoada e aos soluços. E fio a fio vai
tecendo e constrói a sua teoria:
"Oh como eu tremo
diante das árvores, do luar que corre branco e sem murmúrio, da natureza
esplêndida que adivinho para além dos muros do Hospital!... Passo por doido e
na verdade quase grito de pavor diante do espantoso universo. Olhai a treva a
escutar, o mistério, a água que brota sem ruído, a árvore de braços erguidos, o
caliginoso mar...
O homem passa indiferente,
mas eu sinto-me enlouquecer diante das coisas mais simples: dum farrapo de
nuvem como um sudário a rasto, dum raio de luz em pó, todo de ouro vivo, que
entra no meu quarto. Nunca me pude habituar a olhar a natureza cara a cara.
Isto! que significação tem isto? E um sonho, um grito de beleza, uma alma?
Montes verdes e etéreos lá ao longe, constelações infinitas, névoa que do mar
nasce e sobre o mar vai, como um portentoso rolo, como um giganteu fantasma...
E não adquiro o hábito.
Todas as manhãs é como se pela vez primeira me achasse diante da monstruosa
natura – verde, ouro, azul, com os seus rios, florestas, o mar a bramir e
árvores que são seres, vida que pressinto extraordinária e que nunca vi ao
pé!... Por isso, sobretudo nestes dias de inverno, em que anda uma prodigiosa
voz de Adamastor a pregar à terra e às coisas dilaceradas, eu me
ponho, escondido e só, a discutir o enigma...
Devo, porém, notá-lo: eu
sou uma criatura singular. Há até quem me suponha doido. Todos os que são
apenas restos de sonhos vivos e despedaçados como eu, têm este feitio encolhido
e transido. A esta hora da noite em que o universo parece desabitado e em que
até o rumor da pena no papel me faz medo, fecho-me sobre mim mesmo e escuto-me:
alguma coisa, que não sou eu próprio, se põe então a murmurar baixinho. E
eis-me perdido no canto duma negra trapeira, encolhido e esguio, a sonhar em
quê? Naquele universo verde e ígneo que está para lá das pedras...
Desabituei-me de falar, mas
sonho. Há vozes esplêndidas dentro em mim; de mim brotam árvores, estátuas
mutiladas, pedaços vivos de sonho. Oh eu creio que cada criatura é um composto
de almas de montes, de pedras, de águas, e creio também que existe uma
misteriosa ligação entre o homem e os mundos. Estou preso às estrelas, àquela
confusão de tintas e murmúrios e aos cardos humildes.
Dizem rindo se passo
encolhido e esguio:
– Lá vai o Gabiru!
Deixá-lo dizer! Eu sou mais
feliz do que os que riem, e antes quero conviver com os desgraçados do que com
os outros. Deles tiro emoção para o meu sonho. Depois fecho-me nesta trapeira
alta, construída nos telhados e donde se vêem seres admiráveis: labaredas
verdes que se agitam – e são árvores; nuvens pousadas sobre
a terra com ouro a flux ou então dum violeta desfalecido – e são montes; e
rolos que correm vivos e fluidos – e são rios. Muito tempo levei a
decifrar-lhes o nome. Nenhum dos desgraçados o sabia, porque o Hospital enorme
entaipa a cidade, e essa vida úmida, torrentes de detritos, árvores,
primaveras, gritos de sol, é desconhecida a todos os que sofrem lá em baixo,
entre o granito ressequido. Só outro pobre, o Pita, da trapeira contígua vê
como eu a prodigiosa natureza – a Mãe.
Oh! e há horas, quando uma
neblina de sol cai sobre as coisas estarrecidas, todas verdes, em que eu quase
toco o mistério. Ouço as palavras da natureza numa linguagem de que não
compreendo o sentido. Os sons são sílabas perdidas, umas de ouro, outras
verdes. O ar é fino, alma empoada de luar, as árvores desmaiam e os grandes
montes pálidos, onde o sol deixou fuligem, que vai esmorecendo até ao vir da noite,
falam baixinho, entontecidos. Mais tímido é o murmúrio das fontes, como se não
quisessem perturbar o espantoso diálogo.
É esta a melhor hora para
se ouvir e em que eu quase entendo as palavras, Há coisas desfalecidas: árvores
vão tombar de emoção e de tudo o que existe sai uma prodigiosa alma etérea e
viva, que me envolve e toca, e que fala! que vai falar!...
Donde nasce esta beleza?
donde vem tudo isto?...
Se um homem cai prostrado e
grita, as suas palavras ígneas são apenas sons que, misturados a outros gritos
de dor, formam palavras dum monólogo enorme. E credes que
existam montanhas, águias, o mar, crede-lo por ventura?... São sílabas, são
vozes da Terra, que entra no diálogo. E mundos, estrelas, são palavras daquele
que no infinito prega. É sempre a mesma força, a única força que cria a beleza
e o sonho, a força donde brota a Vida.
Eu tinha visto que a dor
era sempre necessária para se produzir alguma coisa de belo: para se agarrar um
pedaço de sonho, que, apenas entrevisto, foge; para que nas nossas mãos
esquálidas fique um farrapo dessa figura de prodígio; para que a vida tenha um
fim; para amar; para criar; para que alguma coisa de duradouro reste. Num grito
existe sempre viva uma porção de beleza. Da cova nascem coisas materiais,
formas, árvores, nuvens
– da dor a beleza absoluta.
E com que fim? dir-me-ão.
Imaginem um estatuário:
para compor uma marmórea figura, para realizar um fantasma entrevisto, precisa
de sofrer. Depois tritura o barro, petrifica a dor. E acaso pergunta se o barro
sofre? Assim Deus esmaga o barro que nós somos para construir alguma coisa de
extraordinário: mundos, a Vida e a Morte, alma infinita que tudo atravessa.
De que precisam os poetas
para fazer uma obra de gênio? De dor. O sofrimento cria. Lembram-se das figuras
de mármore, para sempre debruçadas sobre os túmulos antigos? O luar que vem
pela rosácea tocando-as dá-lhes uma vida de sonho, fá-las todas de poalha; estremecem, levantam voo, dir-se-ia. Pois a dor, fio a fio,
como o luar, dá vida ao sonho.
Para se criar é preciso
sofrer. Hoje e sempre só a dor é que dá vida às coisas inanimadas. Com um
escopro e um tronco inerte faz-se uma obra admirável, se o escultor sofreu.
Mais: com palavras, com sons perdidos, com imaterialidades, consegue-se este
milagre: fazer rir, fazer sonhar, arrancar lágrimas a outras criaturas. Com as
simples e secas letras do abecedário, um desgraçado com gênio, metido numa
água-furtada, edifica uma coisa eterna, uma construção mais sólida e mais bela
do que se fosse arrancar os materiais ao coração das montanhas. O que é então a
dor, milagre extraordinário, que consegue dar vida às fragas? o que é esse
assombroso fluido, que se comunica, alma arrancada da própria alma e que se
pode repartir como o pão? Nunca houve sob o sol criatura que sofresse da
verdadeira dor, cujo sofrimento não consolasse ou salvasse. Até as mais
humildes, como árvores que ainda depois de mirradas vão aquecer e alumiar os
pobres.
A dor dá a vida e não é a
própria vida: cria, redime, obra prodígios e nada há que se comunique, que
convença, que torne os homens irmãos, como ela... Para onde vão pois todos
esses gritos, unidos num só grito? Visto que nada se perde, que é que se
sustenta no infinito com essa enxurrada de lágrimas? Deus?
Por muito tempo escutei o
ruído de vozes, de exasperos, de gritos de criaturas.
Vinham da guerra, do Hospital, da miséria humana.
E desse mar espezinhado
nasciam clarões, as nebulosas donde surgem mundos. Esse eterno rio de gritos, a
correr desde que o homem existe, vai desaguar no infinito.
E que a dor é a única força
que verdadeiramente cria e destrói: é a Força. Alimenta Deus e o limo. É um
atlântico de fogo, é o espírito do universo. Cria claridades na alma dos
desgraçados e faz nascer montanhas.
As árvores são emoções da
terra.
Sonhai! sofrei!
Este mundo é talvez, como
disse um filósofo desconhecido, uma gota caída dum oceano infinito de beleza.
O universo é o sonho
dolorido de Deus.
Nada se perde. A alma, as
ideias e as emoções, fazem parte da força que faz florir o céu e os humildes
pomares ignorados.
Eu coleciono a dor. Passo a
vida a juntar farrapos desse manto em fogo.
O mundo é misterioso, cheio
de gritos. A cada passo um túmulo donde renasce um
amálgama, uma poeira verde, azul, doirada, cova onde o Desconhecido remexe
formas: o mar, as criaturas, as pedras, as tempestades, tudo vivo e a falar! O
homem passa inconsciente, mas eu tremo de pavor.
Estas pobres criaturas que
vivem no mesmo prédio em que eu habito, ladrões, filósofos, coveiros, mulheres
perdidas, são esmagadas para que alguma coisa se crie. Geram o mistério e o mar
bravo da dor. Sob a nossa vista indiferente a cada passo se cumpre um milagre:
sol, água a nascer, pinheiros bravios e vivos!...
Escutai... As coisas
choram. Nesta noite de frio inverno – ventania – o que as coisas dirão!... – o
vento despedaça-as e é sempre triste ouvir cair tantas lágrimas. Por momentos
quedam-se numa quietação, como se ficassem a escutar ou a falar baixinho entre
si...
Eu tremo e, para me
esquecer, deito-me a escrever o meu livro A Árvore. E do lodo destas
coisas humildes que eu construo a minha estátua disforme...
Ora uma tarde destas,
embebido nos meus pensamentos como num largo horizonte, não reparei que pela
porta aberta alguém entrara. De forma que tive um sobressalto, ao ouvir a meu
lado numa voz pausada:
– Maquinações filosóficas,
meu preclaro amigo...
– Hein?
Era o Pita, mas o Pita
transfigurado e triste; o Pita com dentes de menos e não sei que doloroso
sorriso; o Pita mais velho e mais sórdido.
– Maquinações filosóficas,
meu preclaro amigo.
A realidade é triste e
amarga. Isto que daqui vê e não compreende, árvores, montes e águas, é no fundo
tão revolvido e espezinhado como o lodo humano. Vem uma raiz e despedaça outra
raiz, um braço que se crie empurra logo outro braço. Cada monte gera tanto ódio
como o coração do homem.
– Porventura o amigo já viu
árvores ao pé? Eu só a do saguão.
– Sim, conheço-as não só
dos bons autores, como de ter dormido à sua sombra movediça e fresca... São diferentes:
são vivas e enormes...
– E o mar?
– O mar, que daqui vê ao
longe, todo de poeira verde, é trágico e feroz. Brame de fúria, despedaça. É
esverdeado e cheio de cóleras...
– E a Mãe, a natureza?
– Um amálgama, um cadinho
cheio de gritos: formas revolvidas e trituradas, bocas que não podem gritar.
Veja...
Para lá do Hospital havia
ainda trêmulos de luz, raios esquecidos de sol emaranhados nas árvores, presos
nos espinhos do monte. Dir-se-ia no entanto que a vida redobrava; cresciam e
murmuravam os pinheiros, gorgolejava a seiva ao trepar nos troncos. A água
corria num ruído mais vivo, e a terra, que o sol queimara, bebia-a toda dum
trago. As noras cansadas pingavam o seu último suor, e da
noite que descera irrompia um murmúrio envolto em sombras, a voz das árvores,
dos rios e montanhas."
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Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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