O
espertalhão caipora
O conto do vigário do casamento por
interesse começa na ambição, passa pelo ridículo e acaba sempre no espetáculo
triste do desengano.
Imagine um belo rapaz pobre, uma
perfeita estampa litográfica de homem, dotado de uma grande ânsia de enriquecer
e que vive a transformar a imaginação num louco moinho de vento, na expectativa
de que um dia o vento da fortuna o arrebate em seu turbilhão. Esse vento, que é
o acaso, a sorte, o momento, que tem a máscara risonha da felicidade, tarda,
não vem! E o belo rapaz vai sacando, através da esperança, sobre o futuro, o
alimento róseo para o seu sonho ávido de fortuna. Tenta vários ofícios, ensaia
outros tantos expedientes, mas a fortuna teima em não lhe passar ao alcance dos
braços. Quando está quase a sucumbir sob o peso formidável, mas invisível do
desânimo, um dia, olhando atentamente a sua linda estampa no espelho do quarto,
bate na terra e, se tem uns laivos de cultura literária, exclama: — “Eureka! Cá
está a fortuna.”
De fato, o espelho bondoso, como é a
maioria dos espelhos, lhe revelara a grande verdade, a verdade da sua beleza, a
qual, bem avaliada no mercado do casamento entre mulheres que procuram um belo
marido, poderia alcançar um preço incalculável. E assim fez o nosso herói.
Começou a cotizar seus belos olhos e a sua esbelta figura desde aquele dia em
que o espelho, refletindo-lhe a sua fisionomia, o chamara à realidade. E entrou
então a fazer girar nas asas do moinho da sua ambição o desejo de casar, não
com uma moça nem uma mulher, nem tão pouco ainda com o amor — porém com um dote.
E será possível que o nosso herói não
encontre o dote desejado? Encontra, sim; porque o mundo é grande, a vida é
vasta e a tolice humana é maior ainda.
E o Caça-Dotes em questão
teima, porfia, persiste, até afiar a paciência nos rebolos de todos os
obstáculos, mas a sua paciência tem a virtude da paciência obscura da formiga.
E ele prossegue sempre, escorregando pelos patamares do seu sonho de grandeza,
arrimado ao corrimão da esperança, levando dentro da alma o eco daquele conselho
popular que diz: Quem procura acha! E de fato, até mesmo o acaso, que não
costuma andar ao léu com qualquer pessoa, nem bem, nem mal acompanhado. A
persistência é uma gazua com a qual, abrindo-se as portas do imprevisto, um
indivíduo dá sempre de cara com o acaso. E o belo rapaz, sempre trabalhando
pela ânsia louvável e simpática de ser rico, veio um dia encontrar-se com uma
coisa que tinha talvez uns quarenta anos de idade, coisa essa que possuía
cabelos compridos e usava saias. Era uma dona viúva, dona também de algumas
dezenas de contos de réis. Uma respeitável senhora; porém, ao espírito do
Caça-Dotes, ela era simplesmente uma coisa que tinha muito dinheiro. Foram
apresentados por um terceiro, que escondia habilidosamente o interesse em tal
apresentação. Noivaram, escondendo ele, o mais possível, todos os seus
sentimentos de ganância.
O sonho do herói estava em vias de
materializar-se, ou por outra, de metalizar-se. Nas vésperas do casamento ele
vibrava e, sentindo-se já um homem que dominava a vida, porque era mais que
certo que ia ter dinheiro, muito dinheiro, já pisava firme, ruminando o
seguinte solilóquio: Dinheiro! Com o dinheiro, comprarei todas as coisas belas
e agradáveis do mundo; com o dinheiro, todas as criaturas humanas rojar-se-ão
sobre a minha sombra; com o dinheiro, comprarei aquilo que nem todos possuem — a
felicidade.
Comprar a felicidade! Grande mentira,
que seduz e perturba unicamente a imaginação dos tolos, porque, em última
análise, o dinheiro, tudo conseguindo, consegue somente realizar a parte
material da felicidade, e nada mais. No dia do casamento, o ilustre Caça-Dotes,
completamente desvairado, recebe felicitações até de indivíduos que o detestam.
E passa então a desfrutar a estima e a consideração de várias famílias e de
muitas personalidades. Enriquece e é de bom tom cotejar os que enriquecem. Mas
se diz o adágio que quem procura acha, há também uma sentença que diz muito
bem: O dia da alegria é sempre a véspera da tristeza. Pois bem: as alegrias
passaram. Vejamos agora como vive o nosso herói dentro da tristeza.
Passados alguns meses, a ilustre senhora,
atacada de uma forte recaída de ciúmes, tornou-se impertinente, irritadiça,
amarga.
E, como que agachada atrás do biombo
roxo do seu ciúme progressivo, tomou uma assinatura sinistra de rabugices
contra o seu esposo, que, a princípio, vergado por uma habilidosa resignação,
sorria em face dos tormentos. Porém, ele estava a queimar os últimos cartuchos
da paciência, e passou então do sorriso à sisudez.
Evadira-se-lhe, como por encanto, a
alegria. Os dias passavam embaciados aos olhos entristecidos; e ele, fazendo
prodígios sobre a corda bamba da paciência, pedia aos céus que lhe mandassem
uma pesadíssima carga de resignação.
A esposa era rica, mas o dinheiro que
caía nas mãos do Caça-Dotes, uma espécie de mesada que lhe dava a ilustre
senhora, não chegava nem ao menos para controlar com uma dose de prazeres
extraconjugais, todos os tormentos que o assediavam.
E o nosso homem, à espera de que a
esposa fosse chamada o mais depressa possível pela Providência, à espera —
digamos o pensamento cruel do Caça-Dotes — de que a consorte morresse, estraga
os nervos e envelhece antes do tempo sob a descarga de uma neurastenia ultravioleta.
Quando o dinheiro já não lhe serve
quase para mais nada, porque ele está envelhecido e curtido por uma lixívia de
intensivo pessimismo, a mulher morre.
E aí temos o conto do vigário oriundo
da ambição.
E mesmo que o Caça-Dotes desafortunado
como foi este, viesse um dia revelar estas amargas verdades com o intuito
humanitário de pregar exemplos, não seria tomado a sério absolutamente! Todos
os aspirantes a caça-dotes dariam uma sonora gargalhada, achando que o herói em
questão, depois do ridículo do seu fracasso, ainda pretende coroar a sua
comédia bufa com o ridículo enjoativo de dar conselhos.
Se todos os conselhos provocam
naturalmente uma certa aversão, os conselhos que procuram delimitar a ambição
provocam ódio, acarretando a pecha de despeitado sobre o mísero mortal que teve
a veleidade de querer incutir na cachola de alguém a obediência aos conselhos.
Porque, na melhor das hipóteses, quase sempre aceitar um conselho é aprender a
errar pela cabeça dos outros. E é por causa disso que há no fundo da astúcia
humana uma surda prevenção contra os conselheiros...
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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