O escárnio
No ermo da noite o Gabiru
vai tecendo a sua teia: "A matéria também sonha. Nessa mistura de homens e
calhaus, torrente que leva consigo gritos e forças embravecidas, turbilhão a
rasto pelo infinito fora, não é indiferente ir ser pedra ou nuvem, nascer em
macieira de quintal escondido e humilde ou na água fulgindo duma fraga. Não é o
acaso que reúne ou afasta as moléculas, para as fundir noutras formas. Há
corpos que a química não consegue ligar, porque os separa o ódio, e outros que
se atraem com sofreguidão.
Depois da morte a matéria
entra num mar. Rios acarretam as moléculas, até que se encontrem as que se
devem juntar. O meu coração unido ao teu há de florir num espinheiro. Será num
sítio pobre, mas alguém que passe nesse Abril, sentir-se-á enternecido para
sempre. O meu cérebro procurará o teu cérebro para vogarmos juntos na mansidão
dum rio. Ora em terra, ora em pedra buscar-te-ei inconscientemente até dar
contigo e te fruir nesse oceano bravio. Se tu fores fonte, irei topar-te e
juntos apagaremos a sede a muita raiz esquecida.
Criaturas simples vão ser
árvores que de anainhas a gente se sente comovida ao vê-las; os sonhadores, desfeitos em nuvens, andarão nos poentes do mar salgado, e as
penedias, que o sol abrasa, as penedias eternas, serão construídas do coração
dos maus.
Ei-lo o prodígio, o
extraordinário milagre, esta vida que o Pita me mostrou, árvores, nuvens, mar,
este monstruoso referver de vida, igual nos montes e nos ígneos mundos. E eu
pertenço a este pélago como tu, passo os meus dias a contemplá-lo!
Fico horas a aparar nas
mãos o jorro do sol, olhando-o correr...
Por força existe uma razão
superior, senão o homem seria Deus, a consciência do universo, o que se não
compreende: um deus reles, com misérias e gritos, sempre a escalar o infinito e
sempre despedaçado pelos tombos.
Sê sempre bom, porque a
bondade eterniza o amor.
Os crimes da matéria
pune-os a matéria, os crimes do espírito pune-os o espírito.
Já ouviste que as árvores,
o mar e as pedras tivessem dúvidas ou tremessem de pavor?
Ver o sol, o universo,
olhar, já é um prodigioso milagre. Mas tocar, compreender
calhaus, almas, ter raízes em todas as estrelas, no céu e no oceano – é o
portentoso sonho.
O homem arranca de si
próprio universos de beleza.
O homem tem uma centelha de
prodigiosa alma que erra no grande mar de sonho que vai espraiar-se de estrela
a estrela e tudo enche, doirado e enorme, e que em si consubstancia o gênio, a
beleza, o amor. Logo que a matéria se dispersa, a imorredoura faísca volta ao
atlântico donde tinha saído.
Criamos cada um de nós um
universo de angústia ou de beleza, ressequido ou de fogo. São felizes os bons
portanto. Há no entanto criaturas que vivem sem suspeitarem que o universo
existe."
Às vezes nos mais simples
fatos encontra-se mistério, como num punhado de desprezível terra há uma força
escondida. Parece inerte. Esperai, porém, que março a toque!... Assim esse
pobre desajeitado, sempre tímido e vestido de negro, tinha uma existência
feliz. Na trapeira passava as horas a cismar nessa rapariga quase tísica, com
um ar de máscara que vai gritar de aflição. A Mouca foi amada como as princesas
lendárias, e esses amores entre um filósofo esfaimado e uma mulher da vida tinham não sei que enternecido interesse. Sobre os
calhamaços do Gabiru alguém encontrou por vezes flores ressequidas e nessa
primavera – caso único – o vento trouxe por cima dos telhados duas borboletas
que vieram noivar no saguão.
Ele era feliz. Que importa
ter-se fome, se se ama? O amor e a fé não transformam o mundo até às suas mais
profundas raízes? Quem diz que se não podem construir com aquelas nuvens
esparsas marmóreos palácios ou estrofes de luar?
As suas teorias, as suas
ideias ia-as tecendo e olhando a Árvore. Pelo tronco corriam estremeções.
Debruçado na trapeira, fascinado olhava os galhos esbranquiçados, ainda nua,
mas – como direi?–já vestida de emoção.
– Aquela Árvore... –
murmurava ele cismático. Em baixo corria sempre a levada, lágrimas, gritos,
gargalhadas, lama espezinhada que fala, lodo misturado de sonho, logo nascido,
logo atirado à arena, gebos, prostitutas, monstros em cujo corpo de sapo habita
a alma dum deus. Por quê? donde? De que ruínas se constroem estes seres que o
destino marcou com dedadas trágicas? São feitos de pedaços de estátuas e
loucura. Falam em gíria. Se riem são o Riso e é como se dentro deles andasse um
doloroso palhaço aos saltos. Têm olhares de desespero e de ódios. Eis um rio de
gritos que brotou para sofrer. É a noite que anda a arquitetar de neblinas os
seres destinados à arena? Este esgoto que passa, todo revolvido,
pela natureza indiferente, é porventura necessário e fecundante?...
Todos os dias o Gabiru lá
vai sentar-se olhando a Mouca entre os ladrões e os soldados, que a noite
surgem para se rirem das lágrimas e dos gritos. Entre a turba sinistra vem
sempre o velho, calado e feroz, que só ri com uma boca disforme, e o Morto, que
fala com desprezo do sofrimento, das mulheres, da morte. O Gabiru, encolhido e
triste, põe-se ao seu lado a olhar para a Mouca e vai tecendo o seu sonho. Toda
a noite é uma mistura de gritos, de lágrimas e risos. Espancam as mulheres e
quando elas choram, caídas, tornadas em escárnio, ínfimas como a terra, todos
eles riem, com um anh! de satisfação por as fazerem sofrer.
Mas um deles nessa noite
repara no Gabiru, perdido a um canto sem ver nem ouvir, ridículo, esguio,
alheado. Aponta-o e logo a turba emudece.
O Morto, pondo-lhe a larga
mão no peito:
– Ó tu!
– Anh?
– Tu que andas aqui a
fazer, ó Gabiru?
Logo o Velho escancara as
faces e todos os outros de repelão se erguem.
– Esperem... Tu não ouves?
– Anh? – diz ele, acordando
estonteado. – Anh? Então o Morto, que aperta sempre uma contra a
– Acho que é poeta! Dizem
que é poeta!...
E em torno pega-se o riso
feroz como um mar que sobe. As mulheres, que foram sempre maltratadas,
chegam-se rotas, tísicas, rasas como o chão:
– É o poeta!
Há olhares vesgos, de ódio,
lume que gela e arde. A maldade ressurge. Vão-se rir, vão espezinhar. Logo o
coro de gargalhadas e de gritos estruge.
– Olhai pra ele... Sabeis
como lhe chamam? chamam-lhe o Gabiru.
– É o enguiço – diz a
Mouca.
– Olha lá – avança outro –
onde metes tu essas pernas?
– Anh? – pergunta o Gabiru
sem entender ainda, tonto de sonho.
E fita os ladrões e as
mulheres que formam roda. Esguio e transido de frio, dentro do casaco de
alpaca, pela primeira vez descobre, à luz do candeeiro fumarento, a triste
realidade, as mulheres da vida, os seres de descalabro, as cara dos ladrões. Há
fisionomias de pavor, e em semicírculo, chegam-se para ele, de bocas
escancaradas, só bocas. Ninguém se ri da dor física como os pobres, que só
admiram a força.
– Tu que andas aqui a
fazer, ó Gabiru?
Ele espantado acorda:
– Anh?
Olha-os tonto, magro, esfaimado.
Através da névoa do sonho vê a realidade, e entre o circulo dos ladrões e das mulheres acha-se transido, tímido e torto. Em redor os
outros sentem que vão fazer mal. Vão-se rir do que é pobre e desajeitado;
vão-se rir do que não compreendem – do sonho.
– Acho que é poeta!...
E os ladrões ululam. O riso
é ódio, o riso ignaro é ódio da matéria contra o espírito. Tem este nome – o
escárnio. Ajuntam-se os ladrões e as mulheres para gargalharem daquele ser
encolhido e torto.
Tem passado fome, tem vivido
só com pão e cisma, preso a nuvens e de súbito dá de cara com o escárnio. Há
quem se ria da dor, dos gritos, da tragédia. O mal faz rir? Faz. A dor faz rir?
Faz. E a desgraça? Também.
Os ladrões e as mulheres
têm vontade de espezinhar porque odeiam e não compreendem o sonho. Arrastem
para um tablado as piores ruínas e as mais amargas catástrofes, que a multidão
gargalha. Ponham a fome a ulular, que a matéria ri. Ri de tudo o que é triste,
pobre e torto – e do que é belo como os astros.
Ressuma raiva o escárnio.
Neste riso há sempre gritos. Toca a gargalhar da desgraça e da dor;
trans-formam em força toda a tragédia humana.
– Diz que estás apaixonado?
O Gabiru cala-se.
– Tu não falas?... Ah tu
não falas, enguiço?... É desta que tu gostas?
– É de mim? – pergunta a tísica e tosse, rindo-se.
Cessam num momento os
risos. O que sentem todos é vontade de o calcar, de o tornar raso como eles...
– É por esta? Não? Então tu
imaginas que há alguém que goste de ti, meu desengonçado? Tu!... Vocês vêem-no?
Nem sei que parece! Aí vai o poeta!...
Dá-lhe um encontrão,
atira-o e, entre risos e chufas, vai de mão em mão como um trapo. Todos têm
vontade de o amachucar, de o tornarem mais reles, mais triste, mais pobre e
transido, por não lhe poderem tirar o pão da sua vida – o sonho.
– Aí vai o poeta!...
Até que o largam. De pé no
meio da sala, com o casaco roto, amolgado, exclama, não compreendendo:
– Mas eu que fiz? eu que fiz?...
– Vai rir? vai chorar?...
As gargalhadas redobram ao
verem-no espantado e pícaro. As bocas más clamam, cheias de gritos. O seu olhar
aflito procura a Mouca e vê-a rir-se também. Nos olhos reflete-se-lhe o abismo
que descobre, a secura dos outros, o sonho calcado e por terra, lágrimas e
enternecido espanto.
– Foste tu! foste tu! Tu
riste-te de mim!... – diz, apontado a Mouca.
Os ladrões gargalham e só
ela se cala, a Mouca que tem rido sempre de tudo, da vida, da morte e até da
própria desgraça.
– Que é! Deixem-me!...
E cisma.
Altas horas da noite. Saio,
erro... A pensar em quê?
Em coisas desligadas, sem
nexo: na ambição, no ódio, no exaspero. As ruas seguem monótonas, negras, enlameadas;
dum lado e de outro as casas parecem construídas de tinta, e de lama o céu, que
se desfaz e goteja. Que mundo este!... Na minha frente, reparo, caminha um
velho... Não o distingo bem: é a sua sombra que eu vejo, cômica e desengonçada
e, ao passar pelo lampião ia jurar que lhe notei cabelos brancos. Aquela sombra
agita-se. Mexe os braços, com o chapéu na mão, fala sozinho, discute... As
vezes tropeça, ergue-se e lá parte a pregar por entre a casaria e o ruído,
debaixo da chuva miúda, lama negra que goteja do céu.
Agora as ruelas apertam-se
e, já reparei, ele pára, volta para trás, há meia hora que gira no mesmo sítio,
absorto. A chuva enlameia-lhe os cabelos e os seus braços gesticulam num
redemoinho.
Das alfurjas vai saindo um
ou outro noctívago, que o olha e passa indiferente, murmurando os seus
exasperos ou as suas aflições.
A cidade di-la-íeis farta
de tédio, afundando-se em lama. As nuvens baixas e disformes esfarrapam-se,
colam-se aos prédios. Os casarões alongam-se pesados e enormes, e onde a onde
irrompe um golfão de luz. A sombra caminha, toma por ruelas funéreas. Vai
sozinha com o seu sonho ou a sua desgraça. Três horas numa
torre. Há um silêncio cavo. Chove sempre a mesma chuva tenaz, com um céu
nublado e aflitivo. A cidade morta, sob o aguaceiro, espapaça-se na lama.
Debaixo de cada um destes tetos escondem-se as mesmas misérias e os mesmos
sonhos. Esta pedra abriga ódios, crimes, escárnio. A sombra perde-se no escuro,
torna, pára indecisa...
Que me importa o que os
outros sofrem? Uma desgraça? O mundo está cheio de desgraçados. Um sonhador que
se afunda? O mundo está farto de sonho. Este mesmo céu pesado, esfarrapado e
trágico, tem abrigado sempre gritos e catástrofes. Que me importa o que ele
sofre? Cada um por si, cada um com as suas lágrimas e os seus ódios... O homem
por vezes tropeça, cai; depois lá se arrasta trôpego. Alvorece e, àquela
primeira luz, a cidade parece desenterrada. A casaria ressurge, emerge da
treva, leprosa, cambada, gasta pelo ódio, pelas ambições, pelos rancores...
Ei-lo que se senta na
terra, arrasado, enlameado, exausto... Ao romper da manhã começa de novo a
chover e ele chora.
Tanta lágrima! Um dia a
desgraça, no outro a desgraça... Aquela sombra é a minha! aquele homem sou
eu!...
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Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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