O
conto do vigário e a moda das mulheres
O espírito dos homens sempre procurou
a graciosa frivolidade feminina com o intuito de fazer graça. Brincar com as
mulheres é mais arriscado ainda do que querer bailar nas bordas de um abismo. A
mulher é uma eterna boneca risonha nas mãos dos homens. É uma boneca que gosta
de ser afagada pelo homem, esse divertido fantoche, que algumas vezes faz
chorar, e quase sempre faz rir. E homem e mulher, na fantochada do amor,
procura cada qual arrimar-se aos predicados morais de um e de outro. O homem,
pelo fato de possuir uma dosagem corrosiva de fanfarronice, quando não tem
outro passatempo que melhor lhe fascine o espírito maledicente, outra coisa não
faz que não seja achar defeitos nas mulheres. E então, estribado na proverbial
resignação feminina, diz que a mulher é um animal de cabelos longos e ideias
curtas; que a mulher não tem talento, como se ela necessitasse de ter talento e
de ter ideias para valorizar a sua beleza. Quanto à alma, é possível até mesmo que,
às vezes, ela tenha mais do que uma, mas é forçoso reconhecer que sempre ela
tem as almas que quer. Na pantomima da vida, os homens, fantoches sisudos,
outra coisa não têm feito que caluniar as mulheres — bonecas risonhas.
Os homens transformam-se raramente
pelo espírito, as mulheres transformam-se constantemente pelas modas.
A moda é a “mise-en-scène” da alma
feminina.
É o delírio furta-cor das pinturas!
Estamos em pleno reinado do “rouge” e do “baton”! Os lábios pintados estão na
ordem do dia e nos caprichos desordenados dos ideais de elegância que inflamam
a sensibilidade das mulheres.
A Eva moderna, vulcanizada pela ânsia
maviosa de mentir, no intuito de exteriorizar uma volúpia escaldadiça, com o
milagre colorante do “rouge” transforma a boca numa romã esquertejada.
“Baton” na cova dos olhos e “rouge”
nos lábios, é um câmbio de cambiantes que torna o rosto feminino uma palheta
curiosamente pintalgada. É forçoso, porém, reconhecer que o rosto feminino, sob
o disfarce simpático do abuso das tintas, adquire essa graça matizada, que lhe
permite corar discretamente. Se é verdade que os sentimentos têm cor, as
mulheres que lançam mão dos coloridos para lançá-los na linda carinha podem
viver relativamente sossegadas, porque têm na artificialidade das massas
coloridas que lhes transformam a fisionomia um agente astuto que as ajuda a
atingir os sentimentos segundo a necessidade e os desejos, fazendo-as aparentar
sempre aquilo que querem ser, e, às vezes, aquilo que querem aparentar.
A mulher, tendo propensão para várias
oscilações, acaricia em última análise a queda das atitudes e das aparências. A
aparência constitui a sua embriaguez máxima, a sua tontura suprema. E a moda
foi inventada justamente para lhe alimentar essas oscilações.
A mulher, para obedecer aos caprichos
da moda, é capaz de cometer todos os dislates possíveis. E para tornar
encantador o corpo por fora, não dispensa muita atenção ao que ele exige por
dentro; e por isso há mulheres que carregam no rosto maior quantidade de pó de
arroz do que mesmo de arroz trazem no estômago.
A moda pode ser considerada hipocrisia
do corpo, a mentira dos semblantes a mutação das atitudes e dos gestos.
A moda é um capítulo de astúcia que
Maquiavel esqueceu de escrever!
A moda, mesmo quando é ridícula,
empresta à mulher uma força que a torna invencível, porque é sempre a ilusão
aplicada ao corpo. E o homem, mesmo crivando a mulher de defeitos, vota-lhe uma
adoração contínua, um pouco porque é próprio da fraqueza masculina gostar das
mulheres, e em grande parte porque elas possuem a magia dominadora da ilusão.
Por isso são invencíveis as mulheres! Mas, essa ilusão, sendo o resultado das
modas que as transfiguram, é para todos os efeitos uma ilusão conto de vigário.
E, na longa teoria dos contos de vigário, esse é por certo um conto de vigário
bom, um conto de vigário que possui o dom maravilhoso de fazer o homem esquecer
todos os contos de vigário maus que ele é condenado a suportar pela vida além.
E, sem essa ilusão, como seria triste
o destino das mulheres! Sem essa ilusão os homens seriam duplamente
desgraçados, porque então os defeitos femininos nos apareceriam enfadonhos,
odiosos, cansativos, com essa agressividade própria das coisas precárias!
Conservemos a ilusão com esse espírito conservador de alto respeito pela
mentira, porque a ilusão e a esperança são duas mentiras mais úteis do que a
verdade da realidade.
---
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...