7/04/2019

O Cigano (Crítica), de Alberto Bramão


O Cigano

O cigano realiza o tipo do boêmio intrujão e porco.

No maquinismo social, é ele uma peça solta, sem função determinada e exclusiva, posta ao serviço da primeira conveniência que o acaso lhe depare. Sem amor de família, sem trabalho fixo, sem crenças e sem sentimentos políticos, a sua instabilidade joga-o daqui para acolá, de um país para outro, desnacionalizando-lhe os costumes, as tradições, a linguagem. Como é cosmopolita, tem um tanto de poliglota. Faz-se entender ou desentender em todas as línguas. Tem, além disto, o recurso da mímica. Habituado a todas as inclemências da miséria, está apto para todos os gêneros da vida pobre; se não morre, a sua resistência atesta uma saúde de ferro. No entanto prefere a existência nômade, errante, à aplicação a um ofício, a uma profissão. O trabalho pautado e regular em disputa do pão de cada dia é repudiado em homenagem à tendência aventureira.

Quando no caminho se lhe não depara ensejo de colher algum alimento com que iludir a fome, detém-se contemplativo, na intuspecção de algum projeto. Nos seus cálculos não entram nunca como fatores nem a moralidade nem o respeito à lei. Há simplesmente o medo ao código penal, cuja existência ele conhece, por saber que alguns amigos e parentes seus foram parar à cadeia. Esta palavra, que significa a sequestração daquilo que ele mais ama — a liberdade, produz-lhe calafrios. Apesar disto, porém, está pronto sempre a incorrer nas disposições do código, quando possa fazê-lo recatadamente. Põe-se ao serviço de qualquer em preza, contanto que daí colha o alimento de um dia ou de uma hora. Não conhece os interesses sociais e desacata os seus próprios interesses.

Quando dá balanço à vida, não conta nunca com o dia seguinte.

Não o prendem ao mundo raízes sólidas. Não tem amor de família, porque desconhece de quem filho e não sabe de quem é pai. A mãe, quando o deu à luz, alugou-o para efeitos de comiseração em armadilha à esmola pública.


Passou de regaço em regaço, de pontapé em pontapé, sempre com fome e esfarrapado, até à responsabilidade de viver só por si. Começou então a granjear pelos seus esforços o alimento dos seus dias. E por um incompreensível prodígio de conservação, conseguiu ser homem. A mocidade, alcançada assim aos baldões, não lhe surgiu sob o aspecto risonho e florescente com que se revela às pessoas mais ou menos felizes. Simplesmente lhe trouxe um acréscimo de força e de energia para lutar. Como não teve a unção dos sentimentos, não chega a compreendê-los. O amor não é para ele mais do que uma exigência da sensualidade. Nesta maneira de ser, tem enormes compensações. Os desgostos morais, como não conhece os prazeres, passam-lhe desapercebidos. É uma exemplificação da filosofia que prescreve, para conhecimento do mal, a experimentação do bem. A dor manifesta-se pela maior ou menor destruição do prazer estável e primitivo. Por isso, o cigano jamais sente a dor intima. Ela não acha por onde lavrar naquele interior, a que uma psicologia figurada e concessionária pode chamar alma. O simoun dos desertos, que ele atravessa às vezes, nada encontrará se quiser varrer-lhe do coração a parte de sentimentos que devia caber-lhe na distribuição pela humanidade. Onde nos outros homens há células vibradas por afetos, no cigano há simplesmente cavernas. Dir-se-á que uma grande tuberculose íntima lhe esfuracou todo o seu ser moral.

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019

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