O cigano realiza o tipo do boêmio
intrujão e porco.
No maquinismo social, é ele uma
peça solta, sem função determinada e exclusiva, posta ao serviço da primeira conveniência
que o acaso lhe depare. Sem amor de família, sem trabalho fixo, sem crenças e
sem sentimentos políticos, a sua instabilidade joga-o daqui para acolá, de um
país para outro, desnacionalizando-lhe os costumes, as tradições, a linguagem.
Como é cosmopolita, tem um tanto de poliglota. Faz-se entender ou desentender
em todas as línguas. Tem, além disto, o recurso da mímica. Habituado a todas as
inclemências da miséria, está apto para todos os gêneros da vida pobre; se não
morre, a sua resistência atesta uma saúde de ferro. No entanto prefere a existência
nômade, errante, à aplicação a um ofício, a uma profissão. O trabalho pautado e
regular em disputa do pão de cada dia é repudiado em homenagem à tendência
aventureira.
Quando no caminho se lhe não
depara ensejo de colher algum alimento com que iludir a fome, detém-se
contemplativo, na intuspecção de algum projeto. Nos seus cálculos não entram
nunca como fatores nem a moralidade nem o respeito à lei. Há simplesmente o medo
ao código penal, cuja existência ele conhece, por saber que alguns amigos e
parentes seus foram parar à cadeia. Esta palavra, que significa a sequestração
daquilo que ele mais ama — a liberdade, produz-lhe calafrios. Apesar disto,
porém, está pronto sempre a incorrer nas disposições do código, quando possa
fazê-lo recatadamente. Põe-se ao serviço de qualquer em preza, contanto que daí
colha o alimento de um dia ou de uma hora. Não conhece os interesses sociais e
desacata os seus próprios interesses.
Quando dá balanço à vida, não
conta nunca com o dia seguinte.
Não o prendem ao mundo raízes sólidas.
Não tem amor de família, porque desconhece de quem filho e não sabe de quem é pai.
A mãe, quando o deu à luz, alugou-o para efeitos de comiseração em armadilha à
esmola pública.
Passou de regaço em regaço, de pontapé em pontapé,
sempre com fome e esfarrapado, até à responsabilidade de viver só por si.
Começou então a granjear pelos seus esforços o alimento dos seus dias. E por um
incompreensível prodígio de conservação, conseguiu ser homem. A mocidade,
alcançada assim aos baldões, não lhe surgiu sob o aspecto risonho e florescente
com que se revela às pessoas mais ou menos felizes. Simplesmente lhe trouxe um acréscimo
de força e de energia para lutar. Como não teve a unção dos sentimentos, não
chega a compreendê-los. O amor não é para ele mais do que uma exigência da
sensualidade. Nesta maneira de ser, tem enormes compensações. Os desgostos
morais, como não conhece os prazeres, passam-lhe desapercebidos. É uma exemplificação
da filosofia que prescreve, para conhecimento do mal, a experimentação do bem.
A dor manifesta-se pela maior ou menor destruição do prazer estável e
primitivo. Por isso, o cigano jamais sente a dor intima. Ela não acha por onde
lavrar naquele interior, a que uma psicologia figurada e concessionária pode
chamar alma. O simoun dos desertos,
que ele atravessa às vezes, nada encontrará se quiser varrer-lhe do coração a
parte de sentimentos que devia caber-lhe na distribuição pela humanidade. Onde
nos outros homens há células vibradas por afetos, no cigano há simplesmente
cavernas. Dir-se-á que uma grande tuberculose íntima lhe esfuracou todo o seu
ser moral.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019
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