7/01/2019

O cego (Conto), de Henrique de Vasconcelos



(A Alberto de Oliveira)

O Pintor, que vivera intensamente na luminosa comunhão das coisas belas, no culto da Forma e da Cor, sorvendo a Beleza religiosamente, como se aprecia um vinho velho, de repente cegara.
E no túmulo do seu atelier de que haviam fugido os modelos, errava angustiado, querendo com a mão sentir a linha das figuras que o seu divino pincel traçara, nas manhãs claras, entre tapetes que amorteciam os passos e às vezes a queda dos corpos dos divãs acolhedores.
Sentava-se no mesmo escabelo veneziano, marchetado, tendo diante de si, no cavalete, uma tela. E vagarosamente ia traçando linhas, julgando ainda desenhar figuras, compor peitos firmes, contornar curvas musicais de quadris, iluminar olhos abertos, cheios de sonho e de volúpia.
Mas o pincel empastava tintas, inexperiente na mão do grande mestre, como na de uma criança de peito.
Depois do inútil esforço, não podendo ver, lançava ao chão, com raiva, a tela, e punha-se a passear, cambaleante, hesitante, como um ébrio, as mãos estendidas, como se da ponta dos dedos nascessem olhos, a guiá-lo.
E vivia apenas com um velho servo. O atelier morria ao abandono. Para quê a moleza dos tapetes persas, os brilhos dos espelhos de Veneza, os mármores das estátuas e a radiosa formosura dos seus próprios quadros divinizando a Vida? Para quê? Se tudo adormeceu sob a cinza que se acumulara nos seus olhos dantes de um tamanho brilho, esses olhos leais, sem ironia, cheios de amor por tudo o que tivesse uma partícula de Beleza?
Fora um grande pintor afamado. Retratara as mais elegantes senhoras da corte, em vestidos suntuosos que mostravam, num decote largo, o colo nu, como uma enorme flor. E nos seus quadros punha tanta voluptuosidade que a marquesa de Bouro, devota e pudica, recusara com horror o retrato; apesar do pequeno decote, da garganta alva pareciam nascer rubras florescências de desejos.
E nunca mais pintou retratos. Ideou quadros em que a mulher e a vida eram divinizados. Fez bacanais, em que as sacerdotisas nuas agitam tirsos enramados, coroadas de flores, numa loucura divina. Compôs uma cena das vindimas em que as mulheres comem as uvas, sob as latadas viçosas, das bocas dos amantes. Fez Leda e o cisne, em que, num lago transparente, as virgens descuidosas se banham. Um cisne aparece, airoso, vagaroso, o macio pescoço numa curva larga. E elas querem apanhá-lo à porfia.
E esses quadros de uma atmosfera tão clara, de um céu tão luminoso, com carnaduras frescas, admiráveis seios que exalavam, como uma flor de trópico, um perfume estonteante, tinham-lhe dado a riqueza e a glória.
A multidão apontava-o, nas ruas, com reverência. As mulheres lançavam-lhe ternamente cobiçosos olhares. E o pintor gozava a vida, sem se prender, beijando as bocas, aspirando o aroma das cabeleiras fartas, que caíam sobre as nucas, sobre as costas, como mantos finíssimos.
Até que um dia cegou. Fechou a sua casa, como se tivesse partido para uma longa viagem, não querendo deixar ver a ninguém o espetáculo torturante da sua angústia. E continuava a querer pintar, ainda o cérebro povoado pelas risonhas imagens, concupiscentes seios, rios translúcidos, gemas coruscantes, dobras sensuais de sedas, sobre o âmbar da pele das morenas, sobre a magnólia das epidermes branquíssimas.
Um dia, soube-se. Vagamente correu na cidade que o pintor magnífico cegara. A curiosidade durou três dias. Os possuidores dos quadros viram com prazer a sua valorização. Os colegas secretamente exultaram pelo desaparecimento do rival vencedor... E tudo caiu, tudo esqueceu.
Uma apenas se lembrou dele. Carinhosa, amorosa, forçou a porta teimosamente fechada. E entregou-se ao cego.
Dias passaram cruzados de angústias e de intensos prazeres. Até que um dia o pintor lhe disse:
— Eu tinha que coroar de rosas — a minha mão inútil nem para isso serve — a tua cabeça. Devia ajoelhar diante de ti e dar-te todo o meu sangue, pois que te dei já todas as minhas lágrimas. Vieste acender uma aurora no crepúsculo eterno da minha cegueira. Permitiste que eu revisse a Beleza da Forma. Com os meus dedos pude sentir como é pura a curva do teu seio, a linha das tuas espáduas e lindos os teus dedos. Trouxeste-me o aroma da carne moça, como uma brisa benéfica leva a um prisioneiro o cheiro do feno. Senti outra vez a música deliciosa das palavras de amor. E no teu corpo pequeno e flexível, o teu rosto deve ser como o luar de um lírio sobre a sua haste...
Calou-se. Hesitou alguns momentos. Pareceu encher-se de coragem e continuou:
— Mas não posso ver-te! Vivo contigo, como numa sonolência — um pouco de realidade e um pouco de sonho. Pode ser que os anos tenham feito brancos os teus cabelos compridos; que alguma doença má tenha esverdeado a tua pele macia. Nas palavras que dizes, ouço às vezes uma promessa, outras um retraimento. Não posso ver nos teus olhos palpitar a tua alma. É como se todos os dias me aparecesses, às escuras, com uma máscara na cara, um dominó a velar-te o corpo. Entrevistas em jardins frondosos, às escuras. Tudo silêncio, mesmo na minha alma. Chegaria até nós, lugubremente, o adormecimento da vida. E não serias inteiramente minha, apenas uma parte de ti me pertenceria, e a outra, uma promessa vaga. "Penso que nos encontraremos, dirias... Eterômana em busca de excitantes, romântica, caçando aventuras, feia sem remédio a esconder aleijões e a querer ouvir palavras que nunca ouviu, sou mais que tudo isso, acredita, e menos que uma ilusão!" Que importariam as tuas palavras? No arroubamento dos beijos sentir-se-ia o travo do prazer incompleto. E beijo-te um pouco como se beija um fantasma. Se eu te pudesse ver, dir-te-ia que arrancasses a máscara, ou que te fosses para sempre. Quereria ver-te, ou realidade inteira, deliciosa na pureza da atmosfera, ou sonho puro, como sei sonhar. Não posso com a tortura do meio mistério que a návoa dos meus olhos cegos cria... Pudesses ser toda minha, conseguisse eu deitar abaixo a máscara, ver-te na glória da tua formosura, mesmo na miséria de alguma incurável doença, fixaria na tela, com estrelas fulgentes, com sucos mágicos de flores desconhecidas, essa radiosa Beleza, ou essa deformidade, que se iluminaria, subiria aos céus, como São Julião quando beijou a boca gangrenada do leproso. Aparecesses tu! Mas não. Ficas na meia luz como um fantasma!
E o cego, em passadas incertas, as mãos estendidas, saiu do atelier, onde a única nota de vida era o soluçar da amante.

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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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