(A Alberto de
Oliveira)
O Pintor, que vivera intensamente na luminosa comunhão das coisas belas,
no culto da Forma e da Cor, sorvendo a Beleza religiosamente, como se aprecia
um vinho velho, de repente cegara.
E no túmulo do seu atelier de que haviam fugido os modelos, errava angustiado,
querendo com a mão sentir a linha das figuras que o seu divino pincel traçara,
nas manhãs claras, entre tapetes que amorteciam os passos e às vezes a queda
dos corpos dos divãs acolhedores.
Sentava-se no mesmo escabelo veneziano, marchetado, tendo diante de si,
no cavalete, uma tela. E vagarosamente ia traçando linhas, julgando ainda
desenhar figuras, compor peitos firmes, contornar curvas musicais de
quadris, iluminar olhos abertos, cheios de sonho e de volúpia.
Mas o pincel empastava tintas, inexperiente na mão do grande mestre,
como na de uma criança de peito.
Depois do inútil esforço, não podendo ver, lançava ao chão, com raiva, a
tela, e punha-se a passear, cambaleante, hesitante, como um ébrio, as mãos
estendidas, como se da ponta dos dedos nascessem olhos, a guiá-lo.
E vivia apenas com um velho servo. O atelier morria ao abandono. Para quê a moleza dos tapetes
persas, os brilhos dos espelhos de Veneza, os mármores das estátuas e a radiosa
formosura dos seus próprios quadros divinizando a Vida? Para quê? Se tudo
adormeceu sob a cinza que se acumulara nos seus olhos dantes de um tamanho
brilho, esses olhos leais, sem ironia, cheios de amor por tudo o que tivesse
uma partícula de Beleza?
Fora um grande pintor afamado. Retratara as mais elegantes senhoras da
corte, em vestidos suntuosos que mostravam, num decote largo, o colo nu, como
uma enorme flor. E nos seus quadros punha tanta voluptuosidade que a marquesa
de Bouro, devota e pudica, recusara com horror o retrato; apesar do pequeno
decote, da garganta alva pareciam nascer rubras florescências de desejos.
E nunca mais pintou retratos. Ideou quadros em que a mulher e a
vida eram divinizados. Fez bacanais, em que as sacerdotisas nuas agitam tirsos
enramados, coroadas de flores, numa loucura divina. Compôs uma cena das
vindimas em que as mulheres comem as uvas, sob as latadas viçosas, das bocas
dos amantes. Fez Leda e o cisne, em que, num lago transparente, as virgens
descuidosas se banham. Um cisne aparece, airoso, vagaroso, o macio pescoço numa
curva larga. E elas querem apanhá-lo à porfia.
E esses quadros de uma atmosfera tão clara, de um céu tão luminoso, com
carnaduras frescas, admiráveis seios que exalavam, como uma flor de trópico, um
perfume estonteante, tinham-lhe dado a riqueza e a glória.
A multidão apontava-o, nas ruas, com reverência. As mulheres
lançavam-lhe ternamente cobiçosos olhares. E o pintor gozava a vida, sem se
prender, beijando as bocas, aspirando o aroma das cabeleiras fartas, que caíam
sobre as nucas, sobre as costas, como mantos finíssimos.
Até que um dia cegou. Fechou a sua casa, como se tivesse partido para
uma longa viagem, não querendo deixar ver a ninguém o espetáculo torturante da
sua angústia. E continuava a querer pintar, ainda o cérebro povoado pelas
risonhas imagens, concupiscentes seios, rios translúcidos, gemas
coruscantes, dobras sensuais de sedas, sobre o âmbar da pele das morenas,
sobre a magnólia das epidermes branquíssimas.
Um dia, soube-se. Vagamente correu na cidade que o pintor magnífico
cegara. A curiosidade durou três dias. Os possuidores dos quadros viram com
prazer a sua valorização. Os colegas secretamente exultaram pelo
desaparecimento do rival vencedor... E tudo caiu, tudo esqueceu.
Uma apenas se lembrou dele. Carinhosa, amorosa, forçou a porta
teimosamente fechada. E entregou-se ao cego.
Dias passaram cruzados de angústias e de intensos prazeres. Até que um
dia o pintor lhe disse:
— Eu tinha que coroar de rosas — a minha mão inútil nem para isso serve
— a tua cabeça. Devia ajoelhar diante de ti e dar-te todo o meu sangue, pois
que te dei já todas as minhas lágrimas. Vieste acender uma aurora no crepúsculo
eterno da minha cegueira. Permitiste que eu revisse a Beleza da Forma. Com os
meus dedos pude sentir como é pura a curva do teu seio, a linha das tuas
espáduas e lindos os teus dedos. Trouxeste-me o aroma da carne moça, como uma
brisa benéfica leva a um prisioneiro o cheiro do feno. Senti outra vez a música
deliciosa das palavras de amor. E no teu corpo pequeno e flexível, o teu rosto
deve ser como o luar de um lírio sobre a sua haste...
Calou-se. Hesitou alguns momentos. Pareceu encher-se de coragem e
continuou:
— Mas não posso ver-te! Vivo contigo, como numa sonolência — um pouco de
realidade e um pouco de sonho. Pode ser que os anos tenham feito brancos os
teus cabelos compridos; que alguma doença má tenha esverdeado a tua pele macia.
Nas palavras que dizes, ouço às vezes uma promessa, outras um retraimento. Não
posso ver nos teus olhos palpitar a tua alma. É como se todos os dias me
aparecesses, às escuras, com uma máscara na cara, um dominó a velar-te o corpo.
Entrevistas em jardins frondosos, às escuras. Tudo silêncio, mesmo na minha
alma. Chegaria até nós, lugubremente, o adormecimento da vida. E não serias
inteiramente minha, apenas uma parte de ti me pertenceria, e a outra, uma
promessa vaga. "Penso que nos encontraremos, dirias... Eterômana em busca
de excitantes, romântica, caçando aventuras, feia sem remédio a esconder
aleijões e a querer ouvir palavras que nunca ouviu, sou mais que tudo isso,
acredita, e menos que uma ilusão!" Que importariam as tuas palavras? No
arroubamento dos beijos sentir-se-ia o travo do prazer incompleto. E beijo-te
um pouco como se beija um fantasma. Se eu te pudesse ver, dir-te-ia que
arrancasses a máscara, ou que te fosses para sempre. Quereria ver-te, ou
realidade inteira, deliciosa na pureza da atmosfera, ou sonho puro, como sei
sonhar. Não posso com a tortura do meio mistério que a návoa dos meus olhos
cegos cria... Pudesses ser toda minha, conseguisse eu deitar abaixo a máscara,
ver-te na glória da tua formosura, mesmo na miséria de alguma incurável doença,
fixaria na tela, com estrelas fulgentes, com sucos mágicos de flores
desconhecidas, essa radiosa Beleza, ou essa deformidade, que se iluminaria,
subiria aos céus, como São Julião quando beijou a boca gangrenada do leproso.
Aparecesses tu! Mas não. Ficas na meia luz como um fantasma!
E o cego, em passadas incertas, as mãos estendidas, saiu do atelier,
onde a única nota de vida era o soluçar da amante.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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