A caminhada fora longa, embora
feita lentamente, porque não tínhamos pressa nem destino. Não será a melhor
maneira de repousar ideias, de adormecer preocupações, de preparar o espírito para
um jantar apetecido e para uma noite reparadora, andar à toa, uns vinte
minutos, meia hora, a pé, em companhia de alguém com quem se esteja em
intimidade absoluta, assim pelos crepúsculos de verão, nas tardes ventiladas,
quando já desapareceu o calor afogueante dos últimos raios do sol, quase
horizontais.
Se não estávamos, na verdade,
cansados, punham já os nossos músculos uma certa indolência na marcha e uma lassidão
agradável se insinuava nas pernas, nos braços em abandono e chegava mesmo às nossas
espáduas. Assim o convite mudo mas persuasivo, daquele banco sob a aparada fronte
do oiti, perto dos maciços em flor, sendo oportuno, foi aceito com agrado por
nós ambos.
— Um cigarro!
— Se não for muito forte...
Era de fumo fraco. O meu amigo
aceitou-o e entramos a fumar com preguiça, os olhos perdidos no mar imóvel da
enseada, nos claros palácios da Praia Vermelha, até o céu, do outro lado das
pedras. Carros passavam, de volta de um enterro, seis, oito em fila,
apressados, empoeirados, conduzindo sujeitos vestidos de preto, as faces a
reluzir das fricções violentas dos lenços enxugando o suor. Em sentido contrário
passou um elegante double-phaeton de
40 cavalos, rápido, e um instante brilharam vestidos frescos de verão e véus e
gazes de cor, echarpes que flutuaram nervosamente para fora da carrosserie...
— Quem é?
— Não sei, não pude ver.
E a poeira implacável que se
levantava na estrada e subia até nossos olhos, bocas e narinas, fez-nos voltar
com desgosto a face para o outro lado. Ao mesmo tempo o meu amigo estremeceu dos
pés à cabeça.
— Que foi isso?
— Foi o arrepio, respondeu-me a
rir, apontando com o dedo o mirante de um dos mais altos prédios da cintura de
construções. Era um prédio novo, dos mais belos da nossa época, produto dessa
espécie de renascimento arquitetônico que se manifestou quando a bem amada
cidade do Rio de Janeiro resolveu finalmente reagir contra a tirania inestética
dos mestres de obras, classe execrável de utilitaristas sem imaginação, sem ideias,
sem gosto e sem responsabilidade profissional. Era uma casa alta, de linhas
graciosas, ao sabor flamengo, com um dos lados se projetando em torre até
grande altura. Não estava concluída, mas não se via senão um andaime, exatamente
no mirante, dando-lhe a volta toda e sem pontos de apoio do lado exterior. Não passava
de uma platibanda feita de tábuas ligadas umas às outras, conjugadas
provisoriamente, todo o aparelho preso pela parte interna da casa. Não tinha
mais que três palmos de largura e sobre o estreito passadiço estava um homem
agachado, provavelmente o operário que reunia os seus utensílios, acabada a
tarefa.
— Tiveste receio que o homem
viesse abaixo, perguntei, quando o operário se retirou.
— Não...
— Sofres da vertigem das alturas?
— Também não. E se sofresse, não
havia risco porque eu estava embaixo. Queres a explicação do meu arrepio?
— Está claro que sim.
— O arrepio vem todas as vezes
que vejo alguém trabalhando numa torre ou mesmo em qualquer andar mais elevado,
em equilíbrio sobre uma tábua que se projeta fora das fachadas. Hoje foi a vez daquele pobre
homem. Vem-me o arrepio porque me lembro
de certo fato, já muito remoto, que me causou uma terrível sensação, sem,
entretanto, no momento, fazer-me estremecer. Eu cursava o primeiro ano de
direito, numa Faculdade de província. Tinha uma boa roda de amigos na
turma. E nessa roda havia de tudo: o
estudante modelo, vivendo apenas para o compêndio — classe de moços que até a
terminação do curso fecham todas as portas deslumbrantes da vida e se contentam
com a miserável janela do exato e acanhado cumprimento dos seus mesquinhos
deveres acadêmicos; o aluno brilhante que se não vê estudar e presta excelente
exame; o repetente eterno, que sempre tem a sorte de encontrar um professor sem
entranhas, reprovador desalmado, poço de ódios pessoais; outro que, para não
perder uma hora estudando um ponto, compreendendo-o, gasta duas aparelhando o
material de fraude para as provas, com muito engenho mas sem a assimilação de
uma só ideia; e até mesmo o que sem estudar durante o ano, sem o menor cabedal
armazenado, consegue por um prodígio de presença de espírito, dizer coisas
certas em banca. Morávamos oito na república. Tínhamos a casa toda, uma
casa térrea, situada na praça, em frente à Catedral. Certa ocasião — a época de exames
vinha perto — eu estava abancado na sala da frente, devorando os pontos de
Direito Romano, quando subitamente no interior estalou uma algazarra, uma altercação.
Mal reconheço a voz de dois colegas em disputa, ei-los atravessam a sala como
um pé de vento, um perseguindo o outro, e, saltando a janela baixa, caem no
passeio, ganham a praça que um alvo lençol de areia cobria e por ela continuam
a desabalada carreira. Eu deixara o livro, interessado na aventura,
acompanhando as peripécias daquele esporte improvisado. A praça não era muito grande, de
sorte que eu podia seguir todos os movimentos dos companheiros. O perseguido
conseguia manter o outro a distância de seis a oito metros. Várias vezes fizeram
a volta à praça e de cada vez que passavam em frente à janela mais afoguerdos
vinham, mais excitados e cada qual menos disposto à rendição. Inda lhes soltei
um grito: — Malucos! Ambos viraram os rostos rubros e risonhos para o meu lado e continuaram a
correr talvez mais animados. Um era magro, outro era gordo.
Parece que o gordo, com o meu grito, ganhara certa vantagem! O magro, o
perseguido, logo viu isso e enfiou pela porta aberta da igreja, defronte. E o
gordo passou atrás dele. Eu repeti para mim mesmo: Malucos! e ia abandonar a
janela, volvendo ao livro. A manhã estava fresca e alegre. O
sol nascendo no oitão de nossa casinha, batia em cheio nos prédios fronteiros.
A Catedral, toda branca, mais branca estava do sol. A brisa que corria rente às
casas do lado ensombrado era uma carícia boa. Criadas regressavam do mercado,
os cestos abarrotados de legumes. Crianças brincavam de roda e cantavam, à sombra
de um castanheiro. Mas, uma pancada, de sino, uma
pancada seca, falha, de ressonância áspera, veio tirar-me da contemplação em
que estava mergulhado. Levantei, instintivamente, os olhos para as torres,
alvas da Sé e, de repente, na torre do lado esquerdo, vi surgir da mais alta
janela, da última ogiva, a figura do magro. Deteve-se um instante. Avançou o
pé, experimentando a platibanda. Passou para fora, deitando logo a correr. Não
tinha ainda desaparecido do lado de lá da forre e o gordo já transpunha também a ogiva, ganhando a
platibanda e disparando, empós do outro. Essa plataforma não chegava a
medir três palmos de largura — na tarde desse mesmo dia fui verificar — distava
do solo, meu caro, apenas quarenta e cinco metros. Não tinha corrimão ou balaustrada,
nada que se parecesse com um vago ponto de apoio. Pois, foi por aí mesmo que, durante
uns três infinitos minutos, vi em voltas sucessivas, o magro passar perseguido
pelo gordo, o gordo perseguindo encarniçadamente o magro. Eu tinha o coração
pequeno, apertado, e creio que a minha emoção ainda era maior quando algum dos
dois, ou, às vezes os dois ficavam ocultos pela torre. Eu acompanhava,
suspenso, a pavorosa carreira: o magro... o gordo... o magro... o gordo...
o magro... o gordo... De repente — e nunca mais tive sentimento de alívio tão grande
— o magro desapareceu pela Ogiva. O gordo seguiu-o. Respirei. Estavam salvos. No dia seguinte, voltados à razão
os contendores, fizemos a nossa mudança para longe da Catedral. E aí tens a história
do calafrio...
---
Oscar Lopes (1882-1938)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Oscar Lopes (1882-1938)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...