O amor de Eça à terra portuguesa
Jamais na nossa literatura alguém desenhou mais
nítidas paisagens, modelou mais vivas figuras, pôs em circulação maior número
de ideias e imagens, anotou mais incoercíveis sensações, desbanalizou e
recunhou mais palavras gastas, melhor descreveu, melhor narrou, mais de perto
atingiu a fronteira da realidade e as fontes da vida!
(Alberto de Oliveira: "Eça de Queirós", Páginas e Memórias)
***
Dos nossos escritores dos
últimos tempos é Eça um dos mais diversamente discutidos. Há sobre ele as mais desencontradas
opiniões. Uns têm pelo eminente romancista uma verdadeira idolatria, escondendo
cautelosamente os seus defeitos, outros, não se referindo às suas qualidades de
prosador e artista primoroso, criticam-no acerba e impiedosamente.
Para alguns a Relíquia é quase um decalque das Memórias de Judas de Petrucelli dela Gattina, o Mandarim uma simples bluette
extraída do Peau de Chagrin de
Balzac, a Ilustre Casa de Ramires uma
pochade à política provinciana, a Correspondência a sua pior obra e até Os Maias "uma porção de crônicas,
isto é, de apontamentos, de notas muito ridículas, muito engraçadas, que tanto
podiam vir colecionadas sob um título único como debaixo de vários títulos,
fragmentadas" (Fernando Reis).
A ânsia dos seus detratores
em lhe amesquinharem a obra vai ao ponto de considerarem o Crime do Padre Amaro como um ignóbil plagiato de La faute de l'abbé Mouret, escrito por
Zola alguns anos depois.
Eça, defende-se
ironicamente desta falsa acusação numa nota inserta na segunda edição do Crime: "Com conhecimento dos dois
livros, só uma obtusidade córnea ou má fé cínica podia assemelhar esta bela
alegoria idílica, a que está misturado o patético drama duma alma mística, ao Crime do Padre Amaro que, como podem ver
neste novo trabalho, é apenas, no fundo, uma intriga de clérigos e de beatas
tramada e murmurada à sombra duma velha Sé de província portuguesa."
Fialho de Almeida, o azedo
panfletário dos Gatos, como oficial
do mesmo ofício, não poupa Eça e acha-o um caráter desnacionalizado, uma
contrafação estrangeira e Silva Pinto, que a princípio o considerava um
escritor sem mácula, faz coro com o autor do País das uvas.
E até o Sr. José Agostinho o
põe também pela rua da amargura!
Jaime Batalha Reis
prefaciando Eça não se esquece de indicar as influências estrangeiras que se
notam na obra queirosiana; o Sr. Dr. João de Meira, num curioso folheto, vai
mais longe pois se entrega ao trabalho pacientíssimo de comparar algumas
passagens de escritores estrangeiros com as de vários romances de Eça, dizendo
como desculpa à denúncia feita que Eça se limitou apena» "a imitar,
transportar para o seu estilo as imagens, as ideias ou as expressões de um
outro estilo, apresentando de um modo inédito as coisas já ditas, ou aplicando
frases feitas a situações inteiramente novas."
Um dos muitos defeitos
atribuídos à obra de Eça é a pornografia, a imoralidade, a ação dissolvente dos
seus romances. Estes — dizem — atacam a família, essa instituição que devia ser
sagrada, intangível. O próprio Eça sai è estacada defendendo-se dessa agressão:
"eu não ataco a família, ataco a família lisboeta, produto do namoro,
reunião desagradável de egoísmos que se contradizem", escreve ele numa
interessantíssima carta dirigida em 1878, de Newcastle, ao Sr. Dr. Teófilo
Braga.
O Primo Basílio e O Crime do Padre Amaro são os romances considerados como mais
realistas, mais imoralizados, contudo o Sr. Dr. Fidelino de Figueiredo
considera o primeiro, na sua serena e minuciosa análise "uma obra de
imaginação, animada dum elevado propósito de morigeração" e o segundo um
romance completo que integralmente satisfaz, "de superior beleza e de
elevada mora!"
O Sr. Dr. Teófilo Braga,
que em matéria literária, não é fácil de contentar reputa também inexcedível o
primeiro destes romances: "não haverá nas literaturas europeias romance
que se lhe avantaje. Há ali a construção segura de Balzac, o acabado artístico
de Flaubert, a crueza real mas imponente de Zola, os quadros completos como um
Daudet."
Porém, uma das mais graves
e importantes acusações feitas ao eminente autor da Cidade f. as Serras é a de
que ele foi um escritor desnacionalizado, que as figuras dos seus romances não
são portuguesas.
Como escreve o ilustre
poeta e escritor Dr. Alberto de Oliveira: "os espíritos mais sagazes e refratários
ao contágio dos lugares comuns não hesitam em afirmar, aliás na intenção menos
depreciativa, que Eça de Queirós foi o escritor português menos português que
ainda houve em Portugal."
Isto não é verdade. Eça
adorava a sua terra, a luminosa, a ridente e linda terra de Portugal; a ação
dos seus romances, escritos no estrangeiro, desenvolve-se em meios portugueses
e toda a galeria de personagens da sua obra é genuinamente nacional.
Ele amava a sua pátria; o
que fortemente detestava eram os ridículos da sociedade portuguesa que
desassombradamente classifica de mesquinha, estúpida, convencionalmente pateta,
grotesca e pulha.
Os conselheiros Acácios e
os literatelhos acéfalos que Eça tão flagrantemente personaliza na figurinha
alvar do Ernestinho é que lhe não perdoam as ironias e as incoerências.
Das centenas de tipos que
povoam os seus romances e que constituem a prole literária de Eça todos eles
viveram e se agitam ainda no nosso meio. Mesmo as figuras episódicas,
fugitivas, mal esboçadas se tornam inconfundíveis pelos seus ligeiros traços
porque foram todas elas copiadas do natural, arrancadas ao tablado da vida
nacional. Toda a série curiosíssima de personagens arroladas por Eça são
etnográfica e psicologicamente exatas, bem estigmatizadas nas suas taras, nos
seus defeitos, nos seus vícios e na crueldade impiedosa como ele os rubrica,
como ele desfaz as suas existências, como as arrasta pela amargura da vida,
como as ridiculariza, e que está o seu forte realismo.
Seria interessante fixar
aqui a lista verdadeiramente curiosa de todas as suas personagens genuinamente
portuguesas, mas não é esse o objetivo do nosso despretensioso artigo; o que
pretendemos apenas é reabilitar Eça da acusação que mil vezes lhe tem sido
dirigida de que ele desprezou sempre a sua terra.
"Acusam-no de não ser
um escritor português a ele que vivendo quase sempre no estrangeiro fez todos
os seus livros sobre assuntos nacionais, e constantemente teve os olhos presos
na visão desta terra que ele sobretudo criticou — porque a queria a melhor e a
mais bela. O meio em que evolucionam os tipos que a sua imaginação criou, foi
sempre o nosso", assim escreve Justino de Montalvão numa das suas
magníficas e brilhantíssimas crônicas.
Eça lá fora viveu sempre
assoberbado por uma profundíssima nostalgia, nostalgia que ele deixou bem
documentada na Cidade e as Serras,
livro que é, como diz Paulo Osório, "de todos o mais nosso e o que mais
encanta, o único que, roçando apenas a miséria humana, se eleva alto, num voo
de otimismo e crenças, e cuja leitura, para mais como brilho dum estilo
adorável, tonifica, faz bem."
Com as suas sutis ironias,
com os seus famosos paradoxos, com as futilidades mundanas, Eça procurava
afogar as saudades da Pátria, mas, de quando em quando, elas espicaçavam-lhe a
alma e assim, recordando os seus tempos de estudante, das alegres guitarradas,
a horas mortas, pelas ruas estreitas do velho burgo coimbrão, escreve em uma
das cartas a madame Jouarre: "E o dia na quinta finda... enquanto na
guitarra ao lado geme algum dos fados de Portugal, longo em saudades e em ais,
e a lua, ao fundo da varanda, uma lua vermelha e cheia, surde como a escutar,
por detrás dos negros montes."
Dando relevo às suas
preocupações de touriste intelectual
fantasia o Mandarim.
Pois ainda mesmo dentro de
todo esse exotismo encontramos uns laivos de paisagem portuguesa.
Teodoro, quando do alto das
muralhas de Pequim envolve com o olhar triste a grande cidade, sente
invadir-lhe a alma uma profunda melancolia, lembra-se com saudade da sua
aldeiazinha minhota.
"... era como uma
saudade de mim mesmo, um longo pesar de me sentir ali isolado, absorvido
naquele mundo duro e bárbaro: lembrei-me com os olhos umedecidos, da minha
aldeia do Minho, do seu adro assombreado de carvalheiras, a venda com um ramo
de louro à porta, o alpendre do ferrador, e os ribeiros tão frescos quando
verdejam os linhos..."
Como se vê, as personagens
dos seus romances, mesmo quando peregrinam por longínquas terras, afoga-as a
saudade da Pátria. O Teodorico Raposo da Relíquia,
farto das remotas paragens orientais, de volta de Jerusalém, exulta de prazer
quando, num hotel do Egito sabe que, finalmente, pode regressar a Lisboa porque
"um vapor de gado, El Cid Campeador,
partia de madrugada para as terras benditas de Portugal!"
A paisagem é sempre duma
flagrante verdade.
"Algumas páginas
descritivas — como escreve Alfredo de Carvalho num seu interessante opúsculo —
são traçadas por mão de mestre, e valem como esplêndidas aquarelas, a que os
anos não conseguem delir a beleza viçosa. As paisagens do Padre Amaro conservam-se agora mesmo, em torno de Leiria, e com uma
igual distribuição de tonalidades e uma inesmaecida policromia de outrora."
Realmente que luminosa aquarela
é esta em que Eça nos descreve um recanto da paisagem do Lis:
"A tarde descaía muito
límpida; o alto céu tinha uma pálida cor azul; o ar estava móvel. Naquele tempo
o rio ia muito vazio; pedaços de areia reluziam em seco; e a água baixa
arrastava-se com um marulho brando, toda enrugada do roçar dos seixos...
Com a inclinação do sol a água
perdia a sua claridade espelhante, estendiam-se as sombras dos arcos da ponte.
Do lado das colinas ia subindo um crepúsculo esfumado, e as nuvens cor de
sanguínea e cor de laranja que anunciam o calor, faziam, sobre os lados do mar,
uma decoração muito rica."
Interessante e fortemente
colorida é também a seguinte descrição duma quinta minhota:
"... por aqui me
quedei, olvidado do mundo e de mim, na doçura destes ares, destes prados, de
toda esta rural serenidade que me afaga e me adormece...
Adiante é a horta viçosa,
cheirosa, suculenta, bastante a fartar as panelas todas de uma aldeia, mais
enfeitada que um jardim, com ruas que as tiras de morangal orlam e perfumam, e
as latadas ensombram, copadas de parra densa. Depois a eira de granito, limpa e
alisada, rijamente construída para longos séculos de colheitas, com o seu
espigueiro ao lado, bem fendilhado, bem arejado, tão largo que os pardais voam
dentro como num pedaço de céu. E por fim, ondulando ricamente até às colinas
macias, os campos de milho e de centeio, o vinhedo baixo, os olivais, os
relvedos, o linho sobre os regalos, o mato florido para os gados...
De madrugada os galos
cantam, a quinta acorda, os cães de fila são acorrentados, a moça vai mungir as
vacas, o pegureiro atira o seu cajado ao ombro, a fila dos jornaleiros mete-se
às terras — e o trabalho principia, esse trabalho que em Portugal parece a mais
segura das alegrias e a festa sempre incansável, porque é todo feito a cantar.
As vozes vêm, altas e desgarradas, no fino silêncio d'além, dentre os trigos,
ou do campo em sacha, onde alvejam as camisas de linho cru, e os lenços de
longas franjas vermelhejam mais que papoulas."
E referindo-se aos jantares
da quinta de Refaldes, exclama orgulhosamente:
"Em palácio algum, por
essa Europa superfina, se come na verdade tão deliciosamente como nestas
rústicas quintas de Portugal."
E prosseguindo num verdadeiro
cântico à terra portuguesa conclui:
"Os arvoredos repousam
numa imobilidade de contemplação, que é inteligente. No piar velado e curto dos
pássaros há um recolhimento e consciência de ninho feliz. Em fila, a boiada
volta dos pastos, cansada e farta, e vai ainda beberar ao tanque, onde o
gotejar da água sob a cruz é mais preguiçoso. Toca o sino a Ave-Marias. Em
todos os casais se está murmurando o nome de Nosso Senhor. Um carro retardado,
pesado de mato, geme pela sombra da azinhaga. E tudo é tão calmo e simples e
terno, minha madrinha, que, em qualquer banco de pedra em que me sento, fico
enlevado, sentindo a penetrante bondade das coisas, e tão em harmonia com ela,
que não há nesta alma, toda incrustada das lamas do mundo, pensamento que não pudesse
contar a um santo...
Verdadeiramente estas
tardes santificam."
E aqui e ali, em toda a
obra de Eça, pequeninas manchas, esplêndidos carvões esquissando-nos
amorosamente lindos fragmentos da nossa paisagem tão cheia de luminosidade, de
cor e de sentimento.
As telazinhas sobre Sintra
de Os Maias; as de A Ilustre Casa de Ramires e tantas
outras, dão-nos flagrantemente a fisionomia pitoresca dos nossos campos e das
nossas cidades e demonstram-nos que todos esses trechos da nosso Portugal se
conservavam na retina de Eça mesmo quando em terras alheias e longínquas, onde
foram escritas as melhores páginas dos seus melhores romances.
Vivendo no estrangeiro, ele
só se interessa pelo seu país.
Mas onde Eça exprime o seu
grande amor à terra lusa é sem duvida no livro póstumo A Cidade e as Serras. Nessa obra, escrita com a ternura dum
enamorado, ele redime bem o grande pecado de haver sido alguma vez ingrato para
com ela, quando ainda mal a conhecia.
"Enquanto conheceu mal
o seu país, em que abundam maravilhas de beleza, feriu-o cruelmente com
alfinetadas de violenta e implacável crítica. Mas não tardou a emenda do
irremissível erro.
Ao fim da longa curva que
seguiu na sua evolução literária, a transformação por que passou o espírito do escritor
exímio era completa e ele pôde então ver os encantamentos da sua terra, cujas
serras alcantiladas, o verdejar dos vales aos píncaros, algumas vezes o
agasalharam à sombra dos densos arvoredos, perfumados pelo aroma agreste e
picante dos montes floridos. Nessa hora de visão clara, Eça de Queirós compôs e
dedicou-lhe harmoniosos hinos bucólicos a que deu toda a alma..." (Antônio
Cabral)
Quem não conhece essas
deliciosas páginas em que Eça nos descreve a beleza incomparável das serras e
dos vales do Douro e que tanto maravilharam Jacinto, o príncipe da Grã-Ventura,
o hipercivilizado do nº 202 dos Campos Elísios? Como ele admira "o divino
Artista que faz as serras e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, neste
seu Portugal bem-amado!" (A Cidade e
as Serras)
O acendrado amor pelo nosso
belo torrão manifesta-o Eça ainda quando em Paris, cheio de nostalgia talvez,
fecha um dos seus romances com este período:
"... e padre Soeiro,
com o seu guarda-sol sob o braço recolheu à Torre vagarosamente no silêncio e
doçura da tarde, rezando as suas Ave-Marias, e pedindo a paz de Deus para
Gonçalo, para todos os homens, para campos e casais adormecidos, e para a terra
formosa de Portugal, tão cheia de graça amorável, que sempre bendita fosse
entre as terras."
ELOY DO AMARAL
"Eça de Queiroz: In Memoriam" (1922)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
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