— Se não fosse paradoxal, eu afirmaria
aos leitores da Gazeta que nutro pelo
Sr. Zadig uma grande admiração pela sua rasgada audácia de, não sendo escultor,
afrontar uma cidade como S. Paulo com aquela salgaralhada rotulada de
monumento. O Sr. Zadig, ex-massagista, segundo a voz flutuante dos que há muito
o conhecem, quis, num momento de delírio ambicioso, mostrar que ele também,
seguindo as pegadas dos aventureiros que aqui armam o bivaque da sua piratagem,
e enriquecem trazendo na sua bossa somente as garras da ganância, não bancaria
o inocente nem a pomba entre milhares, e, consultando a sua bossa, encontrou no
fundo, em estado latente, apetites de aventureiro. E, como aqui, tudo se
improvisa, ele improvisou-se, do dia para a noite, em escultor. Fez campas,
mausoléus, hermas, estortegadas estatuetas, placas, targas, baixos relevos,
santos e outras bugigangas pertencentes à categoria das artes plásticas ou
femininas. Assim, furando meses e anos, o nosso homenzinho, que suspirava, como
aquele personagem do “Guarani”, na “ária do Aventureiro”, à espera de um golpe
decisivo que lhe permitisse um salto, nesta terra de saltos, dos baixios da
mediocridade e do obscurantismo, onde esmurrava barro para fazer santos, até à
suma glória dos triunfadores, contava fazer um dia um grande monumento. A
ocasião chegou: vítima, logicamente, devia ser um anafado capitalista que,
tendo legado parte de sua fortuna a uma instituição de caridade, a
municipalidade entendera de imortalizá-lo, perpetuando o seu arcabouço na praça
pública. Mas, assim não aconteceu; nenhum anafado houve por bem morrer e o bode
expiatório, arrastado pelas enxurradas do opróbrio, que havia de ser?! — O
nosso máximo poeta, de cujo nome eu não me posso lembrar sem me comover! E o Sr.
Zadig, de tocaia, ardiloso, sinuoso, premeditativo, envolvente, como um jaguar
que se arremete contra uma presa imbele, trançando curvas lépidas de ferino,
desferiu contra o bote fatal e espostejou a vítima entre as apuas laminadas de
suas garras. E em certa manhã aziaga, para escárnio dos paulistas, a estátua de
Bilac surgia no extremo da Avenida Paulista, tétrica, medonha, horrível, como
um insulto fundido em bronze, lançado à memória do cantor do “Caçador de
Esmeraldas”! Sobre essa manhã aziaga, outras manhãs monótonas rolaram como que
compungidas com a sorte do Poeta e sobre a tristeza dos que nesta terra ainda
se interessam pelas coisas sagradas. Vivia em paz o sr. Zadig, talvez
inconsciente de ter burlado um grande povo, cogitando em ampliar o seu raio de
ação, farejando aqui e acolá a maneira fácil de abocanhar mais uma presa para
encher o tonel das Danaides de sua ambição. Mas, nem tudo, nesta terra de
aventureiros, está medularmente pervertido. Os que não enriquecem seguindo o
exemplo dos bandoleiros, ainda velam de cabeça erguida, como sentinelas nas
fronteiras da pátria e, de azorrague em punho, e o verbo flamejante de cóleras,
chicoteiam e condenam, para o afinamento da raça, e o decoro e respeito à
Civilização, todas as manifestações berrantes de todos os escoiceadores da
Arte, do Belo e da Harmonia. Compreendo isso mesmo, a Gazeta, tornando-se tuba de todas as indignações que explodiam
avulsamente, sem nenhuma força coesiva, abriu uma clareira nas manhãs aziagas
que rondaram à volta do monumento de Bilac, e condensando em suas colunas o
clamor anônimo, veio reabilitar a memória do grande poeta, reabilitando ao
mesmo tempo, a terra que aspirava vê-lo perpetuado no bronze. E essa campanha,
avolumando-se dia a dia, há de arrasar, como um furacão de ódio, o aborto
engendrado no cérebro nebuloso de um pseudo escultor.
Neste ponto interrompemos:
— Acha você então que o Sr. Zadig não
é escultor...
— Já o disse e continuarei a
afirmá-lo: Zadig é um sofrível fazedor de túmulos; um marmorista vulgar, que
poderia viver aqui muito quietinho se não fosse tentado pelos pruridos da sua
audácia. Audácia que cavou a sua ruína; ignorância que o tornou indesejável;
ambição que o tornou odioso e o integralizou, novamente, para todo o sempre, no
seu antigo plano rasteiro de obscurantismo.
Jornal
"A Gazeta", 29 de novembro de 1920.
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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