Quem,
dez anos atrás, tivesse alguma demanda ou dependência nos tribunais, conheceria
certamente o Romalino, então escrevente dos cartórios e solicitador dos mais
manhosos.
O
Romalino não tinha estudos: após a instrução primária, apenas passara três
classes do inglês. Mas como lidara muito com bombaístas e africanistas, que nas
suas demandas recorriam aos seus préstimos de solicitador, tinha prática do
inglês, que falava sofrivelmente.
Poderia
ter sido da mesma forma um sofrível ajudante de escrivão se, com a prática dos
cartórios, tivesse adquirido alguns conhecimentos jurídicos e literários
privativos do foro. Mas o Romalino só se dedicava ao culto da chicana e, além das
formalidades e termos do processo, em que estava calejado, só era mestre em
toda a espécie de tricas e trocatintices.
Quando
chegava um novo magistrado, o Romalino – que às vezes não punha os pés no
cartório, ocupado em solicitações e diligências extrajudiciais – era solícito
em levar-lhe processos, prestar informações, oferecer-se a fazer recados, a ir
às compras e a todos os serviços, até os mais humildes e inconfessáveis, só
para captar as suas boas graças, tornando-se indispensável, e estudar-lhe as
manhas. E, quando houvesse alguma demanda indecisa – que não tivesse
probabilidades nem contra nem a favor da parte de quem solicitava a causa – o
Romalino puxava a sardinha para a sua brasa por meio de empenhos.
Era esta
a sua especialidade. Conhecia todos os métodos, sabia todas as vias e não
conhecia escrúpulos: o ponto era chegar-lhe com massas, que a tudo se prestava
e a tudo se atrevia.
***
Desde há
uns dois anos que o Romalino apareceu feito advogado provisionário: teve sua
promoção.
O
solicitador é uma espécie de subadvogado: corresponde ao praticante da
ambulância do médico da aldeia. O praticante avia as receitas que o médico lhe
passa, recebe as suas instruções e arrecada as massas. O solicitador vai
aconselhar-se ao advogado, contrata com ele honorários, informa-se do que as
testemunhas precisam depor, para as preparar, e discute com ele as chicanas e
contra-chicanas a empregar.
Alguns
advogados são também solicitadores. Então discutem e contratam eles próprios
com os clientes e adestram as testemunhas tão bem que só um advogado de igual
força as pode fazer cair.
Há
honrosas exceções na classe, como não podia deixar de haver, mas conheço vários
assim.
O
Romalino não se sabe bem onde é que prestou exame de direito, nem para onde
teve carta; mas um belo dia apareceu de toga no tribunal e a notícia nos
jornais de que tivera provisão para advogar. Como, porém, não podia ter
préstimos para ser só advogado, passou a ser advogado-solicitador, mas mais
solicitador que advogado, e sendo sempre ajudante de algum colega, a quem
confiava o papel principal.
***
Viera um
novo juiz na comarca, e o Romalino, que não lhe chegara a estudar as manhas –
agora que, deixando de ser escrevente de cartório, não podia levar processos à
casa dos magistrados nem prestar-lhes serviços – começou a sair mal em todas as
questões que patrocinava.
Cartas
de recomendação, pedidos, saguates diretos e indiretos, tudo era inútil. Quanto
mais recomendado era o seu constituinte, mais segura e fatal era a condenação.
Parecia
que a desgraça o perseguia desde que envergara a agourenta toga. Para mais,
nenhum dos saguates mandados ao juiz chegava sequer a subir os degraus da sua
escadaria, e ainda que fossem mandados o mais veladamente possível – em nome
dos seus parentes e amigos e sem mesmo serem acompanhados ou precedidos de
pedidos – eram de longe farejados pelo íntegro magistrado e imediatamente
rejeitados.
O
Romalino estava sucumbindo. As suas proverbiais habilidades, a sua grande
perspicácia, a sua tenacidade de ferro, tudo naufragava de encontro a esse
escolho terrível que era o novo juiz.
***
O Romalino não era orador, nem escritor; não minutava, articulava ou alegava por si, mas por intermédio de colegas, aos quais expunha as questões e dava ideias. Não sabia falar nem escrever o português corretamente, mas tinha fé na sua astúcia e na sua argúcia. E, por isso, como supunha que nelas só o excedia um colega – que, como ele, era fraco orador e deixava barbicha – nutria por ele secreta inveja e nunca recorria aos seus serviços quer como consultor quer como ator do papel principal.
Mas um
dia o Romalino, que tinha uma causa importante a defender, forçado pelas
circunstâncias, não teve remédio senão ir consultar esse colega rival, e, muito
contrafeito, foi procurá-lo a casa e expor-lhe a questão e o estado das coisas.
O rival
do Romalino ouviu tudo atentamente e ficou a pensar no caso, maduramente,
cofiando a barbicha. E, depois de muito matutar, disse, gaguejando:
– É um
caso muito bicudo! E continuou a pensar.
Também o
Romalino ficou a pensar, mas em coisa diferente: se seria pura fantasia tudo o
que se dizia da argúcia e da astúcia do seu colega e se daquela cachola não
sairia nada, absolutamente nada.
O colega
continuava pensando.
Então o
Romalino atreveu-se a uma pergunta:
– Não
seria bom pedir a alguém para falar ao juiz, arranjar-lhe alguma carta de
recomendação ou mandar-lhe algum saguate?
–
Asneira! – respondeu o colega, largando num gesto brusco a barbicha que afagava
– Este juiz condena sistematicamente todos os que lhe mandam saguates ou metem
empenhos!
O
Romalino ficou derrotado na sua presumida rivalidade. Ele, que tantas vezes
experimentara aquilo, como é que não dera com o caso? Mas o colega acabou de o
aniquilar e mais a sua pretensiosa rivalidade, dando-lhe o seguinte conselho:
– Mande,
antes, falar-lhe pela parte adversa, ou mande-lhe um saguate em nome da outra
parte, e vencerá infalivelmente a demanda.
***
Tempos
depois, o Romalino patrocinava uma acusação. Mas ficando de fora: o papel
principal era feito por um colega que era o orador. Nenhuma prova se conseguira
fazer; todas as testemunhas, arranjadas e adestradas pelo Romalino, tinham
decaído; o advogado da defesa era forte e desmanchara-lhe a igrejinha.
O
Romalino estava fulo. Tanto trabalho tomado, tanto dinheiro gasto, e afinal
tudo estragado em algumas horas! Subitamente, lembrou-se do conselho dado pelo
colega que o tirara uma vez de embaraços. Mas já não havia tempo; o julgamento
estava para terminar. Porém, uma dessas sortes, frequentes na vida forense,
veio em auxílio do Romalino: o juiz suspendeu a audiência por causa da hora
adiantada e, deixando a sentença para o dia imediato, foi-se embora.
Então, o
Romalino aproveitou a ocasião: deitou a correr e foi esperar o magistrado ao
caminho de casa.
O juiz
retirava-se fatigadíssimo, pensando ainda nas peripécias do julgamento, quando
o Romalino se acercou dele e, dando-lhe as boas noites, perguntou, com muito
interesse, se o réu fora absolvido.
– Ainda
não dei a sentença que ficou para amanhã, – respondeu o magistrado, aborrecido.
–
Pareceu-me, pareceu-me – gaguejou o Romalino, fingindo-se atrapalhado. –
Pareceu-me, porque soube agora mesmo, dum ourives, que o réu lhe mandara fazer
um anel para oferecer a vossa excelência!
O juiz
ficou furiosíssimo e retirou-se apressadamente.
No dia
imediato, voltou ao Tribunal e leu a sentença, com pasmo da acusação e da
defesa, condenando o réu a uma pena fortíssima.
---
(José Francisco da Silva Coelho - Goa: 1889-1944)
Texto-base:
Da tese de: João Figueiredo Alves da Cunha, sob o título: "Entre melindres e espertezas: personagens malandras, nos contos de Lima Barreto e José da Silva Coelho". Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2016.
Da tese de: João Figueiredo Alves da Cunha, sob o título: "Entre melindres e espertezas: personagens malandras, nos contos de Lima Barreto e José da Silva Coelho". Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2016.
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