(A
armando Navarro)
Era o jantar de despedida de Dowanov, que partia para o México,
promovido a ministro. Jantar de secretários de legação, que formam uma
confraria, para, na critica dos chefes, tirar uma consolação do exílio, correra
um pouco triste.
A minha intimidade com o novo plenipotenciário, que viera da comunidade
de vistas sobre a numismática bizantina, abrira em meu favor uma exceção.
No pequeno gabinete da Avenida Palace, a conversa versara sobre
diplomatas e postos. Dowanov, como todo o bom russo, suspirava por Paris, onde
estivera adido. Contava as suas tribulações junto do embaixador solene e
desdenhoso, que, sabendo-o apaixonado por corridas, nos dias de steeples e handicaps sensacionais, sob pretexto de serviço o mandava chamar
com urgência, mas realmente para o impedir de divertir-se em Auteil e
Longchamps. Apesar de tudo, porém,
sorriam-se-lhe os olhos ao lembrar-se das pequenas colhidas un peu
partout.
A minha presença não permitia as confidências sobre a monotonia da
pequena cidade da província que é Lisboa. Havia um constrangimento. Por isso
falaram de companheiros, indicaram silhuetas vistas um momento, logo
esquecidas.
— O que será feito desse roliço Kordst, que estava, no meu tempo,
encarregado de negócios em Bucareste? Nunca mais soube dele? Devia ter morrido
da falta de um bilhete. Lembro-me que ia provocando uma questão internacional,
porque o ministro da Áustria, ao apresentar-lhe o adido russo, disse primeiro o
nome de Kordst. Morávamos no mesmo hotel. Foi procurar-me apoplético:
— O que terá contra mim o ministro da Áustria? Não lhe fiz coisa
alguma!... Não me lembro. Ainda ontem, na recepção, lhe dei o meu lugar no
sofá!...
— Kordst? Com o amor que tinha aos bilhetes de visita, fez-se litógrafo,
provavelmente... Sabem de Camusot, o adido militar francês, que tinha uma
mulher que andava aos saltos, como uma pega? Não conheceram? Você, Poliano? Não
me disse que tinha estado com ele em Viena?...
— Não. Encontrei-o em Roma. A mulher realisava o tipo perfeito
da gaffeuse... Em que liquidou?
— Croupier de batota, em Spa... Tinha ar... Um dia, no Jóquei,
perceberam que corrigia a sorte, no bacará.
— E Blumen, o chanceler da embaixada alemã, que conheci, de relance, em
Madrid?
— Em missão junto de Menelick. Emborracha-se com o Negus,
formidavelmente, com cerveja de Munique. Tem a simpatia dos rás; ouvi que iam
criar em sua honra a ordem do Bock, na Abissínia...
— Era o íntimo do conde de Strifforth... Que é feito de Strifforth?
Herdou já o peerage? Diziam-o muito considerado no Foreign Office.
Pensou-se nele para subsecretário de Estado...
— Nunca lhes contei a morte de Strifforth?
— Morreu?
— Vi-o suicidar-se. Acompanhei o nos últimos dias. Foi em Sevilha.
Tinha-o conhecido em Londres, no seu último congé; quando fui
promovido para Madrid demo-nos muito ali. Morreu de uma maneira singular, numa
festa da marquesa de Carrillos, na sua quinta de Eritaña... A melhor festa de
Espanha... A mais elegante e romanesca; dava a sensação da embriaguez de uma
boneca de Saxe, num Walpurgis. Havia feiticeiras novas, ou melhor, ninfas. A
quinta é deliciosa, um pouco acima de Sevilha; o rio corta-a e para passar
de um lado a outro há pequenas gôndolas com câmaras para duas pessoas somente.
A Carrillos, um pouco artista, um quase nada doida, levou uma ranchada de gente
para o seu palácio, do tempo de Pedro, o Cru, para uma festa de mascaras pela
Piñata. Era tudo gente nova, salvo uma ou outra mãe que ia fazer a decência.
Mas achavam-se deslocadas no meio da nossa alegria e, inteligentemente,
retiravam-se para sensacionais partidas de bridge. Só nos víamos às refeições.
Uma party deliciosa, que acabou numa tragédia, um pouco
de guignol dernier bateau, entre músicas leves... É melhor contar
tudo, ab ovo...
— Sim... Desde o congresso de Viena. O pai foi secretario de um dos
plenipotenciários ingleses...
— Ainda de peito?
— Não. Strifforth era filho de velho... Isso explica muito o seu
temperamento.
— Vá, psicólogo!
— Este Mumm não me diz nada! Traga Montebelo! É um pouco da Carreira.
— Por afinidade?
— Então o antigo embaixador?
— En disgrace?
— Sim. Ao quarto filho da czarina ele criticou: — "Ce nest pas une
fenme — cest une pondeuse!"
— Conta a história trágica!
— A marquesa de Carrillos levara a sua filha, aquela inquieta Mathilde,
noiva por sport, tecendo e
desarranjando os casamentos, como Penélope a famosa teia. Para ela não havia flirts: tudo noivados. É possível que,
de a experimentar tanto, a grinalda nupcial estivesse já enxovalhada. Conheceu
a Carrillos? Você? Você? Ninguém? Fina como uma flûte de
cristal cheia de champagne mousseux, ondulosa, sempre pronta para o
ataque e para a resposta, fazia a chuva e o bom tempo na sociedade, e tinha um
dom especial para por alcunhas que logo faziam o giro de Madrid e crismavam as
criaturas. Num dos seus numerosos noivados a mãe, opondo-se, disse-lhe: —
"Que sogra vais ter!" A Mathilde, sem pestanejar: — "E ele,
mamã? E ele?" A marquesa ria-se perdidamente com os ditos da filha,
regozijando-se: — És digna de mim!
— E Strifforth?
— Lá vai. Ora fez-se a festa. O costume Luís XV era de rigor. Por uma
noite estrelada, espalhamo-nos pelo jardim. Pelas janelas do palácio corriam
grinaldas de fogo das bandes souples que as ligavam. Eram
tulipas de todos os cortes que dentre a folhagem se uniam, pondo um traço
florido entre o incêndio que vinha das múltiplas janelas abertas sobre o parque
e sobre o cais. Pelos troncos das árvores envolviam-se em espiras as
serpentes luminosas, marchetadas, e abriam-se em mil luzes nas copas, davam, ao
longe, o aspecto de uma joalheria que ardesse na noite quieta e calada, essas
noites amorosas da Andaluzia em que tudo parece estacar num beijo supremo...
Pela margem do rio a mesma florescência, mergulhando na água, dando ao rio a
aparência fantástica de um céu que se afundasse.
De repente músicas invisíveis tocaram as melodias leves, gavottes suspiradas,
em que há um pouco de amor, um pouco de dança, como num flirt. E do escuro de uma angra moveram-se gôndolas ligeiras, em
que ardiam e estremeciam largos balões venezianos.
Os remadores, ensaiados, iam quase ao compasso ligeiro das gavottes.
Tínhamos a impressão de uma dança de gôndolas, um sonho estranho de veneziano,
pelas horas misteriosas em que as coisas inanimadas tomam vida. Do levantar dos
remos das águas, saltavam cintilações de pedrarias. E a linha tortuosa de
balões aumentava o incêndio, na vibração de tantas reluzentes joias a
agitarem-se na água do rio... Fomo-nos metendo nas gôndolas. Os novios acolheram-se
prestes às gôndolas mais pequenas. Uma maior levou muitos de nós, descasalados,
a Mathilde Carrillos, Strifforth, a condessa de Valdelar...
— Conheci-a em Roma...
— O marido foi gentil-homem do Papa. Preciso falar dela. Foi a principal
figura deste drama. Tipo de espanhola? Não. Mais italiana do que espanhola, com
uns largos olhos pretos, cheios de doçura. O seu gesto era harmonioso e curvo,
sem uma aresta, sem um ângulo, uns nascendo dos outros sem solução, como as
frases de uma melodia. Tinha-se, ao vê-la, a sensação de que se ouvia uma
música dolente, vagarosa. E os próprios olhos moviam-se lentamente, como
pesados de tanta luz e tanta beleza...
Enigmática, guardando num jardim encantado a sua alma, ninguém prudente
ousara defini-la... Poética talvez, ou simplesmente aborrecida, fugia em San
Sebastian do Cassino e do Hotel du Palais e ia, à tarde, só, ver as crispações
do poente nas vagas que eriçam de espuma o mar azul.
Sentava-se num dos rochedos, às vezes desenhando, outras a cabeça a
descansar na mão, e ali se quedava a tarde inteira, alma talvez de sereia a
chorar pelo mar, a querer apreender no perfume da brisa, alguma palpitação do
oceano.
Nenhum de nós se atreveu nunca a interrompê-la, apesar da atração que
todos sentíamos pela sua figura grácil como uma ânfora, da sua toilette,
de toda a elegância pessoal e do mistério da alma avidamente guardada...
Strifforth apaixonou-se por ela. E, solitário, deixando as excursões amiudadas
que fazia ao Cassino de Biarritz, andava de barco para ver, isolada no rochedo,
sem uma tristeza na face, a condessa de Valdelar, certamente a mais formosa, a
mais perturbante das senhoras de Madrid.
O conde de Valdelar ficava no hotel, gotoso, na leitura de livros
licenciosos, que salpicava de casquinadas nervosas, irritantes, indiferente à
beleza e à alma da mulher. Strifforth conhecia-a e procurava todos os raros
momentos em que ela aparecia, de manhã na praia, à tarde no boulevard e, uma ou
outra vez, pelas grandes festas, no Cassino, que atravessava num andar leve,
dando-nos a sensação que tinha asas que a sustentavam. Nada lhe permitira ainda
uma declaração. A condessa falava-lhe, como a todos nós, em coisas
indiferentes, em festas, touradas, partidas de tênis, impressões rápidas de
viagem e deixava-o sem pressa, mas sem pesar, absolutamente correta. Ele
falava-lhe do mar, mas a condessa tinha uma frase banal, mudava de assunto,
como se tivesse pudor desse sentimento, que parecia absorver toda a sua vida.
Foi nesse tempo que Strifforth começou a picar-se com morfina dificilmente
adquirida, a beber perfumes, com horror aos conhaques, e a arrastar uma
vida de autômato, sempre com esperança de a ver, de lhe falar. E, em a
encontrando, pousava sobre ela os olhos tristes, largas horas,
inconvenientemente.
Em Madrid, todo o inverno foi assim, com menos ocasiões de a ver, porque
a condessa frequentava pouco o Retiro e a Castelana e raramente aparecia na
sociedade, demorando-se o bastante para não parecer aborrecida, mas saindo
logo, com um tato perfeito. À vida escondida da condessa correspondia uma outra
vida secreta de Strifforth, ébrio, em desesperos que o álcool longe de
adormecer intensificava, fugindo a tudo o que fora dantes o seu enlevo, até do
Museu do Prado, onde ia todas as manhãs — á minha missa, dizia ele — para ver
os Velásquez e os Grecos... Mas, quando tinha que ir a alguma parte com
esperança de encontrar a condessa, o meu amigo não bebia para poder gozar
inteiramente a presença e a voz daquela que amava. Depois a embriaguez
exagerava a impressão, dava-lhe, quase real, a presença da Valdelar. Meteu-se
no éter, além da morfina e dos frascos de perfume — Parece que como flores,
explicou-me — arruinando por completo a saúde, tornando mais agudas as crises
de desesperos, mais ásperas, pelo enigma que para todos nós era essa mulher
esplendidamente artificial, que trazia uma mascara na sua face calada. Coquete?
Decerto, mas igualmente para todos, porque os seus movimentos eram regrados
por uma música inefável. Mas talvez coquete só para si, porque nem um só olhar
ou palavra autorizou ninguém a dizer-lhe um galanteio atrevido.
Falou-se na festa da Carrillos, organizou-se a lista, e Strifforth, que
não tinha relações com a marquesa, logo que soube que a Valdeler era da
partida, solicitou, pondo de parte sem hesitação o seu orgulho exagerado, uma
apresentação e um convite, logo alcançados, não só por ser muito choié,
mas também porque transpirara a paixão e todos se interessavam pelo pobre rapaz,
havendo até censuras à Valdelar, que de nada era culpada.
Fomos num expresso vagaroso, atravessando desoladas paisagens, até
Sevilha. Não conhecem Sevilha? É a cidade mais feminina e voluptuosa que
conheço.
À tarde, vista da Giralda, ela se nos oferece, nua, ondulosa, apenas com
a cinta azul do seu rio e as joias das cúpulas e das janelas que cintilam ao
poente. Parece que estaca o movimento, e que, na alcova enorme que é a
planície, Sevilha se estende, com flores no cabelo e uma volúpia extrema em todo
o seu ser. Anda no ar um amavio. Tudo nos fala de amor sensual e quente, até os
olhos largos das sevilhanas, que parecem recortados nesses enormes amores
perfeitos de veludo.
Foi ali que tivemos a festa de que lhes falei. Imaginem que na margem
esquerda, a dois quilômetros da quinta da Carrillos, há uma venta,
cuja varanda se debruça entre trepadeiras, sobre o rio. A marquesa tomara-a sem
custo por sua conta e ali varias músicas nos tocaram, não gavottes leves,
mas doridas malagueñas em que se arrasta um langor, como um beijo em que toda a
alma sucumbe. Um jato de luz inundou a gôndola. A condessa levava as mãos
dentro de água, curvada ela própria para o rio. Strifforth ia sentado sobre a
borda. Deixou-se escoar vagarosamente.
— Caiu um!
— Strifforth!
Logo os braços se estenderam, um dos gondoleiros deitou-se à água e pode
tirar Strifforth, todo ensopado no seu fato de seda. — Borracho!
Borracho! Mais vous etez ivre! Dites! — Strifforth, não bebera uma
gota. Eu ficara próximo dele. Os músicos não tinham dado por nada. A música
continuava dolorosa e amorosa. A gôndola seguiu, deixando o traço de luz que
brilhava e se quebrava de encontro às leves vagas. Houve risos. Rodearam-o com
grinaldas. A Valdelar teve, como os outros um riso. — Escorreguei!... explicou
apenas o conde. Mais adiante, porém, já a música se ouvia em surdina, Strifforth
deixou-se cair outra vez. — É demais! Está bêbedo! gritaram. As cabeças
empoadas inclinaram-se novamente para a água. A Valdelar, que tornara a
mergulhar no rio os braços nus em que escorriam as rendas molhadas, ao sentir a
queda, agarrou-o por um braço, indiferente. Strifforth, porém, deu um vigoroso
impulso e desprendeu-se dela...
Houve um pânico. Foram buscar archotes. Não calculam o macabro das
nossas figuras de petits-abbés e gentis-homens procurando, nos
barcos, que de tanta luz pareciam incendiados, um homem que se queria suicidar.
Os gritos cruzavam. Das pequenas gôndolas surgiam vultos negros iluminados à
maneira de um Rembrandt que tivesse adivinhado Turner e Whistler, em chapadas
de luz multicor. Na nossa gôndola um burburinho correra. Alguém desmaiara, até.
As cabeças empoadas agitavam-se. Ao longe, as malagueñas continuavam num
suspiro lascivo e preguiçoso. A Valdelar voltara à sua primitiva posição:
brincava com a água, que lhe passava entre os dedos abertos, pondo-lhe anéis
que fugiam, logo substituídos. Não tornamos a saber de Strifforth. O cadáver
nunca apareceu.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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