A noite, que para os nervos da maioria
da gente é um clorofórmio, constitui para os meus, um tanto gastos já pela
clave das emoções, uma cafeína estonteante, que os elástica de tal modo que até
sinto pruridos estranhos em todo o enxadrezamento labiríntico das fibras mais
remotas do meu sistema vital.
Tenho pela noite um culto profundamente
religioso, tanto assim que às vezes, absorto num autoexame de introspecção,
chego a me convencer de que essa idolatria, confirmando um fenômeno de
atavismo, seja talvez herdada de um Mago errante ou de uma Pitonisa anônima,
que se perderam na penumbra longínqua da noite de minha gênese.
O seu poder edgardpoesco atua sobre
mim com todo o despotismo da sua sugestão!
Empolgam-se as suas trágicas criações
de funambúlica espectralidade; fascinam-me os serenos idílios obscuros, que sob
a sua colcha feita de todos os pecados encontram refúgio e proteção.
A noite é a confidente eleita de todas
as almas emocionais; com a mesma solicitude com que sigila um segredo, comete
uma dilação!
Os que a buscam por uma refinada
estesia, recebem a dádiva do seu ósculo; os que a procuram por um requinte de
vícios snobs, recebem a sua vingança
e o seu desprezo.
Todos os que tiveram por assistente,
na noite em que encetaram o seu Destino, ao lado do seu berço, Apolo, o
embaixador dos Deuses na Terra, são seres predestinados que sobre o delubro
alvar da rotina ambiente imolam em holocausto às suas sagradas emoções o
bezerro estúpido do convencionalismo. Esses buscam a noite contritos, cônscios
de que ela lhe guardará impassível, na sua esfingética taciturnidade, todos os segredos
aflorados do arcano iluminado das suas almas.
A noite é um poema elegíaco feito de
lausperenes dolentes e nênias saudades...
Em sua sombra amiga, erram silenciosos
os vultos de todos os que em vida lhe consagraram uma prece fervorosa.
Sabe as agonias das almas que se
torturaram para arrancar dos sarçais do sonho uma beleza inédita...
Guarda, com avarícia fanática, a
incontinência extática de Santa Tereza, a revolta surda contra o destino de
Beethoven, os desfalecimentos dessa alma de miserere
que foi a de Chopin, e as mágoas delicadas de Antonio Nobre, o derradeiro cisne da melancolia que nos seus
jardins do silêncio labializou o último canto da tristeza...
Noite! Alfobre místico onde
desabrocham flores que dos astros são repositórios de aromas, aromas que para
os fortes que trilham a senda azul da Quimera são o viático suave, e para os
débeis que deslizam pelo meandro do fosco do desalento — a extrema-unção!...
A noite trescala um esquisito e
amavioso perfume de mistério, que ressuscita nas almas visionárias ânsias
incoercíveis de noctambúlico nomadismo.
Unge interiormente todos os que com
ela têm afinidades, de um silêncio tão suave e harmonioso que lembra lascivas
carícias de luz, feitas por hieráticos dedos de alabastro, que se houvessem velutinizado
em essências de violetas...
Outras vezes, sugere visões de
abracadabra que desfilam siflando em magnéticas farândolas de curveteios pelo
fundo da retina, como corpos imprecisos de contornos esfumados, deixando-nos
nos nervos o ressaibo mole e pungente de frêmitos frufrulejantes de volúpia, e
no cérebro a impressão confusa de quem acorda após a leitura de um conto cujos
personagens fantasmagóricos rodopiassem musicalmente emburelados em clamídias
furta-cores, sobre um tablado imponderável.
Os viajores do Absoluto, os que sentem
a atração do infinito, encontram na noite, para o candil das suas esperanças,
um óleo milagroso.
É a noite que revela à terra todos os
segredos siderais, e é ela também que transmite à alma vidente dos maravilhosos
Orfeus do Sono os ritmos de todas as belezas eternas que ondulam nas esferas...
"A
Cigarra", 30 de abril de 1918.
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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