Natal dos pobres
Natal...
Está um dia fosco de
neblina incerta e tristeza. Para lá as árvores despidas não bolem. A vida
parou. As nuvens andam a esta hora a rastro pelas encostas pedregosas dos
montes. Não se ouve um grito. Tudo na natureza se concentra e sonha. Há entanto
um grande rio envolto que nunca cessa de correr...
Longe pelos caminhos,
através de pinheirais cismáticos e calados, vão velhinhas tristes, de saia
pelos ombros, para consoar nessa noite com os filhos. Andam trôpegas léguas e
léguas. As suas mãos calosas, as caras enrugadas, onde as lágrimas abriram
sulcos, os olhos tristes, contam o que elas têm passado na vida, dias sem pão,
suor de aflições, desamparos, maus tratos...
Os cavadores deixaram os
arados mortos nos campos, que a chuva alaga. Que tudo repouse. O vinho de hoje
conforta, como as lágrimas choradas pelas nossas desgraças, o lume de hoje
aquece como o amor de nossas mães.
Nos soutos, sob a chuva que
cai mansa e continua, andam pobres que não têm lenha, a arrancar uma raiz esquecida, para se aquecerem. Deus os tenha na sua mão de pai.
Partem, chegam, vêm muito longe, para verem os seus meninos, matando saudades.
Quase não comem e sustentam filhos, sustentam netos. Os velhos, que tem atrás
de si uma vida de martírio e fomes, dizem:
– É hoje o maior dia do
ano...
Na lareira arde um canhoto.
Cai o nevão. A cozinha é negra, de telha vá, é negro o frio, mas as almas
sentem-se agasalhadas. Por um buraco avistam-se as estrelas e uma pedra serve
de lar. Ao estalido das pinhas, abafadas na cinza, repartem um pão que é o suor
do seu rosto, bebem o vinho aquecido em árvores que as suas mãos cortaram...
Sentados ao lume não falam.
As brasas vão-se extinguindo como um poente, ou como uma alma que vai
deixar-nos. A Morte passa. No buraco do telhado a estrela reluz, o nevão cai
com um ruído das flores desfolhadas, e cada um cisma em alguma coisa de
indeterminado e vago, de longínquo; em certa hora da vida, na mãe, num filho
ausente, naquela morta que passou seus dias a sacrificar-se por nós...
– O lume apaga-se...
– Deitai-lhe canhotos.
O lume apaga-se e as
sombras da noite, em re-voadas, vêm escutar-nos atentas.
Os pobres são como os rios.
Estancam a sede da terra, fazem inchar as raízes e crescer as árvores; acarretam; moem o pão nos moinhos. Ei-la a vida da terra.
Todas as catedrais se construíram da sua dor; sem eles a vida pararia.
Natal dos pobres! natal dos
pobres!... Porque é que criaturas misérrimas encontram ainda na sua gélida
nudez horas para recordar e amar? Pobres repartem o seu pão; espezinhados
dão-nos das suas lágrimas. Vinho quente! vinho quente e amargo, que sabe a
aflição! Chegam-se uns aos outros para se aquecerem. Nas enfermarias, nos
sítios onde se sofre, os míseros e os doentes quedam-se muito tempo a cismar. Os
pobres pensam que existem seres ainda mais pobres, lares desamparados, onde nem
o lume se acende; cuidam numa velhinha, que, a essa mesma hora, cisma,
abandonada, e sozinha, ao pé de brasas extintas no filho doente, no filho
ausente... Há cabanas nuas, lares rotos, almas mais gélidas que o nevão.
As lágrimas que se choram e
se não vêem são as melhores: caem sobre a alma.
Sofia sobe as escadas com
uma caneca de vinho quente, para repartir com o Gebo. Na sua fisionomia há um
cansaço enorme.
A chorar, misturando-lhe
lágrimas, o velho, mais gordo e todo branco, bebe o azedo vinho quente das
prostitutas. Depois abraçados soluçam na trapeira fria. Fora não se ouve rumor:
as coisas ingeridas escutam.
Põem-se a cismar na mãe que
descansa na terra encharcada. Tudo tão triste, dias sem pão, e o amor a
prendê-los, a uni-los, mais forte que a desgraça. Não protestam, não têm forças
para gritar. Baixinho o velho Gebo e a filha choram aquela que a terra primeiro
tragou.
– Se o Senhor também nos
levasse...
E Sofia bebendo do mesmo
copo:
– Tenha paciência, tenha
paciência...
– Se o Senhor nos levasse
juntos, na mesma hora...
Cuido que não tinha tanto
frio.
– Aí tem pão.
– Sabes? Eu tenho medo de
morrer. Se morresse contigo, minha filha, não tinha tanto medo.
– A mãe lá nos espera. Na
cova acabam-se as precisões e as lágrimas...
– Tudo se acaba na cova.
Chegada a nossa hora, acaba-se também a desgraça.
– Aqui tem o vinho.
Natal dos pobres, noite de
comunhão, noite de lágrimas e saudades! Não é chuva que cai sem ruído, são
lágrimas. O Gebo abre a janela e põe-se a falar para a escuridão com palavras
que a noite escuta, com palavras que a noite leva.
Em torno da mesa de pinho
ceiam as mulheres. Com os cotovelos fincados nas tábuas, olham o vinho quente e
cismam... Ceia de natal! Ceia de natal!... Até as prostitutas se querem
lembrar... Moídas de pancadas, têm más palavras, gritos, e
um sorriso humilde. Fazem-se pequeninas para que lhes perdoem uma vida infame.
Falam! falam!... Parece que
a mesma primavera negra fez dar emoção a estas criaturas exploradas e servidas.
Lembram-se da sua vida, sempre lágrimas, risos sem piedade... Uma começa:
– Ninguém canta?
E logo outra, como se as
palavras lhe saíssem de golfão:
– Eu cá foi por fome que me
desfrutaram. Ninguém queria saber de mim e a minha madrasta calcava-me aos pés.
– Eu não sei como foi...
– E eu então – continua –
foi por fome. O pai estava escarangado e a minha madrasta era tão má, que, por
eu me demorar num recado, partiu-me um braço.
– Pois eu foi assim de
repente... – diz outra.
– Ia pela rua fora. Vinha
da fábrica, começou a chover e uma lama!... Tinha frio e um homem pôs-se a
falar-me ao ouvido e a levar-me. Eu nem sei como aquilo foi... E a falar, a
falar, até me doía o coração! E nunca mais o vi. Se o vir acho que nem o
conheço.
– Enganam e nunca mais
querem saber.
– A mim minha mãe bem me
pregava mas a gente que há de fazer?
– Ontem os soldados
puseram-me o corpo negro – diz uma.
– Quando eu morrer... oh
quando eu morrer!...
– Tola!
– Que tem? Tenho ali a
roupa apartada.
– A mim, enganaram-me,
levaram-me... Eu não sabia nada. Depois comecei a servir. Enganavam-me e
punham-me fora... Depois não tinha mais para onde ir...
– Eu cá tive um filho...
Uma que estava calada
soluçou no escuro. E como todas se voltassem pôs-se a rir e a ajeitar os
cabelos.
– Eu tive um filho e pus-me
a criá-lo. Depois disso o meu amigo nunca mais quis saber. Quando eu o
procurava ria-se. Mostrava-lhe o inocente e ele punha-se a rir. – Mulheres não
faltam, dizia-me. Vai-te! – E a gente fica feia. Vai um dia e disse-me: – Se cá
tornas chamo a polícia.
– Eu chorei até não ter
mais lágrimas e acabou-se tudo. São todos o mesmo. Noutro dia vi-o, mas ele
fingiu que não me conheceu.
– E o teu filho era bonito?
– Era um anjinho do céu.
Tanto chorei que secou-se-me o leite de chorar. A gente sempre e mais tola!...
Pôs-se muito chupadinho e
morreu.
– A Maria já deitou um à
roda.
– Eu cá se tivesse um
filhinho acho que morria por ele. Não tinha coração para o dar a criar.
– A gente não podemos ter
filhos.
– Eu cá era uma inocente.
Até me dá riso! Tinha treze anos e foi logo ao entrar para
a fábrica. O mestre foi quem me desfrutou. Agarrou-me, mas eu não sabia e
pus-me a chorar. – Cala-te! se dizes, vais para a rua! – Abandonou-me, outros
vieram... A gente há de cumprir o seu fado.
– Eu cá fui um miminho. Meu
pai tinha de seu...
Depois tudo esqueci, porque
senão a gente morria. Meu pai era muito meu amigo. Era preciso não ter coração
para o enganar. Nem ele podia supor mal de mim, nem do outro que entrava na
nossa casa. Meu pai era também muito amigo dele e tinha-lhe valido sempre.
Ainda me lembro, quando meu pai comigo no colo me dizia: – Tu és o meu
coraçãozinho... – Eu sempre tive um colo! Olhai: embalava-me como às crianças.
– Falta-te a tua mãe, mas eu sou a tua mãe, queres? – Era uma dor do coração
enganá-lo e nós enganamo-lo ambos. E eu bem sabia que ele era casado, mas
mentia-me...
– Por que será que os
homens mentem sempre?
– Mentia-me sempre, e eu
era inocente. Mentiu-me e mentia a meu pai. O pior é que um dia fiquei grávida.
Começou o meu castigo. – Vou-lhe dizer tudo.
– Diz – disse ele. Matá-lo.
Se queres diz... – Eu calei-me. – E agora? – Agora... – Eu já lhe não queria,
acho mesmo que nunca lhe quis deveras. Foi uma desgraça.
Já estava escrito que fosse
desgraçada, acabou-se!...
Depois não podia esconder o
meu erro. Só meu pai não reparava... E ele que me imaginava uma inocente!...
Esperai... – E agora?
agora?... – perguntei-lhe. Então arranjei com que meu pai
me deixasse ir com ele e a mulher para uma quinta. Se vós vísseis! A pobre da
mulher! Batia-lhe sempre, tratava-a pior que a um cão.
– Cala-te! e ela calava-se,
a pobre. – Fala! – e ela falava.
– O estupor, tu não te
calarás! – Ela tinha os cabelos todos brancos e vai eu um dia perguntei-lhe
quantos anos tinha. – Trinta – respondeu-me, e calou-se. Fiquei passada. O homem
diante dela dava-me beijos para a ver chorar. Dizia-lhe: – Vou dormir com ela,
ouves, velha? – E dormia comigo. A senhora não dizia palavra. Chorava e punha
em mim uns olhos tão tristes, que faziam aflição. Um dia que ficamos sozinhas,
ela disse-me: – A menina há de ser uma infeliz. – Eu chorei; e ela com a mão
nos meus cabelos, a fazer-me festas! – Coitada! coitada, que sorte a sua tão
negra!... Ainda eu...
– Por que não o deixa? –
perguntei-lhe. – Já me tinha deitado ao rio se não fossem os meus filhos.
– Ele sempre há desgraças!
Às vezes mais vale ser mulher da vida.
– Esperai pelo resto. Tive
as dores uma noite no verão, em a gosto, e a pobre da senhora é que me tratou.
Ele levou-me logo o filho. Na outra sala ouvi gritos. Vai e atirei-me pela cama
fora, sem saber o que fazia. – Onde está o meu filho? – Fui mesmo de rastos e
pus-me à porta a escutar. Eles berravam. – Se falas esgano-te! – dizia o
malvado à mulher. – Mata-me! – tornava ela. – Tu queres a minha desgraça?
Estorcego-te! – Depois ouvi um grande grito e fiquei como morta. – O nosso
filho? o meu filho? – Nasceu morto. – A mulher a um canto
chorou. Chorou sempre depois.
– Tinha-o matado, o
malvado?...
– Tinha. Afogou-o na
latrina. Depois veio a polícia. Esperai... A criada ouvira os gritos. Sabe-se
sempre tudo, o diabo tapa dum lado e descobre do outro. Ele fugiu para o
Brasil, eu fui presa, e meu pai diante duma ingratidão tão negra – quereis
crer? – estalou-lhe o coração. Depois... depois... A gente quando nasce já tem
a sua sina escrita.
– E a ti?... Não falas? –
perguntam a uma sumida no escuro.
– A mim enganaram-me. Foi
há tanto tempo que já me não lembra. Tudo perdi.
– E a tua família?
– A gente não tem família.
Na noite, a um canto do
Hospital o velho banco de tábuas puídas, dá-lhe também para cismar. A
ventania parou. Duma fresta tomba luar. A treva amontoa-se ao fundo, e, para
além, nos corredores abobadados, arde um lampião. Direis que o negrume remexe:
pedaços de escuridão destacam-se, escoam-se sem ruído pelas muralhas úmidas e
espessas. Mais para o fundo há como um abismo, vala comum de treva empastada.
Os gritos redobram; depois, por momentos o silêncio sufoca, como o dum
sepulcro.
– Se é luar que cai daquela
fresta... – cuida o banco.
– Se fosse luar!
Pela escada vê-se a
enfermaria onde os lampiões em fila dão uma claridade triste, que mostra os
corpos moldados em branco, caídos nos leitos: parece uma necrópole subterrânea
e imensa.
– Se fosse luar... – Há que
tempos que não sinto o luar. Era como um ruído branco que me envolvia outrora
na floresta. Neva às vezes luar. E havia ainda outras vozes... Sempre se sonha,
quando certas noites nascem! Era diferente... Havia rumor nas folhas e o vento
dizia aos ramos histórias acontecidas noutros montes. Há épocas em que o vento
traz noivados, ais de sapos, frangalhos arrancados às flores... Se aquela
poeira fosse luar... E se o luar se pusesse a correr sobre mim, aquecendo-me
como outrora, quando em mim subia não sei o quê de misterioso e forte?
Redobram os gemidos, os estertores,
os gritos. Os últimos lampiões apagam-se um a um, como se alguém lhe soprasse.
É a Morte seguindo o seu caminho. Sombras esvoaçam. E a cova, negra, toma
corpo, vive, mais calada, maior, vala infinita, a que uma luzinha dá alma. E o banco
cisma:
– Há que tempos que não
sinto em mim a luz da manhã, que traz consigo a vida de tudo o que existe, dos
rios, das outras árvores, nem o sol a crescer em vagas de ouro, nem a água
verde, melancólica, e tão mansa entre os choupos que parece ir vogando já morta...
Sinto-me transido... Transido? Isto é corno fogo, mas trespassa-me de frio. E não há nevão, mas ouço sempre gritos, ais,
dores... Oh se fosse luar!... Destas enfermarias corre também um sonho parecido
com luar... Será uma fonte?...
As fontes! nem te lembres
das fontes!... Aqui parece que as minhas fibras mergulham num mar revolvido,
que eu ignoro, mas que é feito de gritos.
Baixo a pedra começa também
a lembrar-se e àquela hora perdida da noite toda a alma inconsciente do
Hospital estremece. Quer recordar, palpita e logo esquece... Os sonhos dos
doentes, dos pobres, dos tristes, materializam-se e são como nuvens: são de
fogo, são de luar. Sombras aos bandos dissolvem-se, para outra vez se criarem.
– Acho que sempre é luar...
E quando havia sol? Torrentes corriam pelo meu tronco, inundavam a minha roupa
cascosa e em volta numa poeira azul andava um turbilhão de bichos. Outras
árvores flutuavam na mesma poalha e as suas folhas ou eram de sol ou todas de
prata. Longe – e que encanto aquela companhia sempre presente e amiga! – o fio
do rio chalrava. Folhas caíam e iam devagarinho viajar sobre a água verde. Para
onde?...
Debaixo de mim, até ao mais
fundo das minhas raízes quantas vidas protegi e defendi!... As minhas raízes
tocavam na vida!... Às vezes caia um pé de água, mas depois vinham sempre teias
de sol, fios de sol, para me enredar – e o sol traz consigo um cheiro a terra e
renovo que consola, o hálito dos montes e dos pinheiros meus amigos.
Nas temporadas fúnebres em
que a água cai a golfões, a gente concentra-se e fica meio adormecida. Os
montes envolvem-se em nuvens, os bichos na terra tremem de frio sob as raízes e
as folhas secas estalam e gemem com saudades ao deixarem-nos. Se por instantes
se descerra a névoa, os montes são mendigos, com um grande manto remendado. Ao
fim da tarde levanta-se dos campos um lindo luar azulado que sobe e se
dispersa.
É a névoa. Baba de ouro luz
na água e os choupos são sombras. Ao longe havia um biombo verde de pinheiros,
depois montes, e depois poentes doirados... Por que é que me ponho a pensar e a
cismar? Há tanto tempo que dormia! As minhas fibras esta noite estremecem. Há
de ser do luar... Oh se ainda houvesse luar!
As mulheres calaram-se. Não
há ruído. Elas próprias sonham. Em torno da mesa, na cozinha saqueada, bebem
sem palavra o vinho quente. Algumas pensam decerto num lar e bebem as lágrimas
que caem no vinho e o gelam.
– A esta hora a minha
mãezinha há de por força pensar em mim... – começa uma.
– E tu por que não foste
consoar com ela?
– Punham-me fora!
queriam-me lá!... Meu pai, meus irmãos...
– Em minha casa faz-se uma
consoada muito grande. Assam-se pinhas no lar, e minhas irmãs pequeninas... oh
minhas irmãs pequeninas!...
E sufocada desata de
repente a chorar. As outras não se riem como de costume. Só uma, sentindo que
iam todas chorar, canta:
Se vires a mulher
perdida...
– Raparigas, é o fado... De
que serve agora chorar? Ninguém foge ao seu fado.
– À noite a minha mãe
aquecia vinho e dava-mo na cama. Sempre a gente é criada para uma vida! Quem
adivinha?
– Cala-te!
– Eu era o miminho de
todos, eu...
– Só eu nunca tive mãe, de
mim ninguém se importa! Acabou-se! Cala-te! cala-te!...
Na escuridão as cinzas que
restam num lar fazem tristeza e saudade. Brilham, esmorecem, vão-se apagar: são
vidas que se extinguem, a alma da treva que em redor sufoca. Assim o Prédio ao
abandono, sob a enxurrada, parecia cismar, como um rescaldo coberto de cinzas.
Parara trágico defronte do Hospital, e cansado, tal como um pobre ao fim da
vida, contempla o seu destino.
Natal dos pobres! Natal
amargo dos que não têm pão e se juntam friorentos em torno dum lume que não
aquece; natal dos seres que a desgraça usou... O vinho enregela, o pão é duro,
mas resta ainda este lume, que jamais se apaga: – Amanhã! amanhã!...
Que poesia tão triste não
vai caindo como um choro sobre aquelas almas de misérrimos, de gebos, de
prostitutas, de desgraçados!
Numa trapeira o
gato-pingado quer dizer: – Amo-te! – mas foi sempre tão nu que não sabe
exprimir o que sente.
Na alma daquela criatura
humilde, despida e escarnecida, que tinha medo de sonhar e até de chorar,
fizera-se um clarão. Tal o espanto enternecido duma pedra a que uma raiz se
apega e que a olha deitar flor na primeira primavera. – Fui eu, apesar da minha
secura, pensa o calhau, que a trouxe no ventre.
Sem falar, bebem juntos,
ele e a pobre, o mesmo vinho. Ele diz:
– Ambos somos desgraçados e
sozinhos.
O vinho que havia aquecido
dá-lho com um pedaço de pão. Ela olha-o, tendo sempre crescido por acaso e
piedade, rota e triste. Havia pois alguém que a amasse?...
– Bebe.
– É tão bom a gente estar
junta.
– Não se tem frio.
– Esta noite, sabes?...
Lembro-me de minha mãe...
Por que seria que ela me
enjeitou?
Fora choram. Ela ergue-se e
vê no corredor uma rapariguinha que a mãe pôs fora da porta e que chora e
pensa.
– E se eu me deitasse a
afogar?
Dá-lhe do seu pão, reparte
do seu vinho e, mísera, rota, ressequida, diz, pondo-lhe a mão na cabeça:
– Deus te crie para boa
sorte...
Na terra só os pobres sabem
ser desgraçados.
Meia-noite! meia-noite!...
Para que tudo se crie, para que o pó se transforme em vida, que é necessário?
Torrentes de chuva, oceanos de água. Eis a vida... Para que do que é matéria
algo de radioso irrompa, que é preciso? Um atlântico de lágrimas.
Da matéria tem nascido à
custa de gritos, de fibras torcidas, o imorredouro espírito. Através das idades
ele se criou, através da dor veio surgindo. O mundo espiritual é já hoje mais
vasto que o mundo material. A dor é a primavera da vida. Para se entrar na vida
ou para se entrar na morte há sempre gritos. A dor ara o céu cheio de estrelas
e os seres humildes.
Que se cria de tudo isto?
que é que se alimenta no infinito? Destes pobres espezinhados, revolvidos,
nascem as coisas eternas – húmus, amálgama, protoplasma, espírito lácteo, com
que se constroem os mundos. Na vala comum os seus corpos, cansados de sofrer,
são a vida da terra: as arvores, o pão, as formas, a seiva esplendente. No
infinito é da sua dor que se sustenta Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...