Monumentos
pátrios
Diz-se que uma das mais belas missões da imprensa é
defender a boa razão, a arte, e a honra e glória da Pátria. Imagina-se ampla
colheita de renome, de bênçãos, de vantagens de toda a espécie para o escritor
que alevanta a voz a favor do bom, do justo e do belo, se a voz do que escreve
é assaz poderosa para se esperar que mova os ânimos dos seus concidadãos. E com
efeito, indicar a estes o reto caminho, quando transviados; tentar afeiçoá-los
a nobres e puros sentimentos; fazê-los amar o solo natal; despertar-lhes afetos
pelo que foi grande e nobre na história do país, parece que deveria produzir
frutos de bênção para o escritor que o tentasse. Não é, todavia, assim. Há para
isso um obstáculo quase insuperável; a superstição pelas ideias e tendências do
presente, mais cega que a superstição pelas crenças do passado. As paixões são
mais enérgicas do que as reminiscências, as aspirações que as saudades. Glória,
lucro, respeito, bênçãos são para aquele que afaga com palavras mentidas as
preocupações populares; para aquele que, sem discrime, louva, adorna ou repete
como eco as opiniões que ao redor dele, talvez por cima dele, esmagando-lhe a
consciência, passam como torrente. Tumultua o gênero humano correndo ao longo
dos séculos: o louvador, às vezes o promotor do tumulto, se a natureza lhe
concedeu imaginação e talento, vai adiante como capitão e guia da geração que
corre ébria: incita-a, arrasta-a, deslumbra-a. As coroas voam-lhe do meio do
tropel sobre a cabeça. Verdade é que ao cabo do tanto lidar ele se despenhará
com essa geração no abismo do passado; verdade é que o abismo se fechará para
ele com o selo da reprovação de cima, e que, porventura, não tardará que o
futuro passe por aí a sorrir, ou se afaste com tédio do sepulcro dealbado do
erro ou da vilania. Mais isso que importa? O homem que vendeu ao século a consciência
e o engenho, que Deus não lhe deu para mercadejar com ele, foi benquisto e
glorificado enquanto vivo; foi antessignano do progresso, embora este seja
avaliado algum dia como progresso fatal!
Mas que pode esperar aquele que, nessa longa e ampla
estrada do tempo, por onde o gênero humano corre desordenado, quiser vir, do
lado do futuro e em nome do futuro, dizer à geração a que pertence: — parai
lá? — Embora a sua voz troveje: embora as suas palavras devam fazer vibrar todas
as cordas do coração e despertar todas as convicções da alma: não espere ser
ouvido. As multidões continuarão a passar desatentas. Escarnecido, amaldiçoado
talvez, dormirá esquecido na morte, e os sábios e prudentes cultores de uma
filosofia corrompida e egoísta dirão, com insultuosa compaixão, ao passar pelo
que jaz no pó: — Pobre louco, recebeste o prêmio de querer contrastar o século!
O que havemos dito é crua verdade; mas é a verdade. Há
nesta época dois caminhos a seguir; um, estrada larga, batida, plana, sem precipícios,
mas que conduz à prostituição da inteligência; outro, vereda estreita,
tortuosa, malgradada, mas que se dirige ao aplauso da própria consciência.
Aqueles cujas esperanças não vão além dos umbrais do cemitério e que aí veem,
não o termo da sua peregrinação na terra, mas o remate da existência, que sigam
a fácil estrada. Nós, porém, que guardamos para além da vida as nossas melhores
esperanças, tomaremos o bordão do romeiro e iremos rasgar os pés pela vereda de
espinhos. Resignar-nos-emos nos desprezes e, como os soldados do eremita Pedro,
que, pondo a cruz vermelha no ombro para irem morrer na Palestina,
clamavam—"Deus assim o quer! Deus assim o quer!"— diremos também:
—"soframos o menoscabo e o vilipendio: soframos que assim o quer
Deus."
É contra a índole destruidora dos homens de hoje que a
razão e a consciência nos forçam a erguer a voz e a chamar, como o antigo
eremita, todos os ânimos capazes de nobre esforço para nova cruzada. Ergueremos
um brado a favor dos monumentos da história, da arte, da glória nacional, que
todos os dias vemos desabar em ruínas. Esses que julgam progresso apagar ou
transfigurar os vestígios venerandos da antiguidade que sorriam das nossas
crenças supersticiosas; nós sorriremos também, mas de lástima, e as gerações
mais ilustradas que hão de vir decidirão qual destes sorrisos significava a
ignorância e a barbaridade, e se não existe uma superstição do presente como há
a superstição do passado.
A mais recente quadra de destruição para os
monumentos, tanto artísticos como históricos, de Portugal, pode dividir-se em
duas épocas bem distintas. Acabou uma: a outra é aquela em que vivemos.
A última metade do século XVIII e os anos já
decorridos deste século tem sido um período de reforma ou antes de revolução. A
revolução não é de ontem. Quase sempre as manifestações ruidosas e, digamos
assim, externas das épocas de grandes transformações vem muito depois de
iniciadas estas. No seio da fórmula social que vai fenecer há a gestação da
fórmula social que surge. Quando as labaredas rompem pelas janelas do edifício,
há muito que o incêndio lavra pelo interior dos aposentos.
Entre nós, as reformas começou-as um homem grande, mas
que era homem do seu tempo. Gênio positivo e mui pouco especulativo, ministro
de um rei absoluto, e sabendo que, se não caminhasse depressa, ficaria no
caminho, o marquês de Pombal fez ressurgir de salto ciência, artes, indústria e
administração. A maioria do país obedecia às reformas, mas sem as compreender.
O círculo dos indivíduos que alcançavam o valor delas e o influxo que deviam
ter no futuro, era assaz limitado. A iniciação estava feita, mas o fogo tinha
de lavrar muito tempo debaixo da cinzas. Exteriormente, a maior parte das
reformas, destoando de hábitos inveterados, repugnando não raro a opiniões
vulgares, devendo ter resultados remotos, que o comum dos espíritos não sabiam
antever, nem podiam apreciar, definharam-se ou morreram logo que se quebrou o
braço de ferro que as realizara e mantivera, sorte ordinária de todos os
cometimentos sociais que antecedem a difusão das ideias que representam. O
conde de Oeiras, pondo os estudos ao nível dos do resto da Europa, fez aceitar
o movimento científico desta; mas as inteligências reconduzidas de salto ao bom
caminho, sem transições graduais, aceitaram mais as formas do que compreenderam
o espírito.
O que sucedeu na ciência sucedeu na literatura.
Acabaram os acrósticos, os restos do gongorismo, os sermões de antíteses e
argucias, os elogios e conferências palavrosas e retumbantes da Academia da
História, onde o próprio reformador também pecara: ficamos, porém, com a
literatura à Luís XIV, cuja influência em Portugal começara a despontar no
horizonte desde o começo daquele século e que, depois, os nossos inocentes Árcades
aceitaram como emanação legítima da arte grega e romana. Pior do que na
ciência, a regeneração literária, desprovida de nacionalidade, alheia às
tradições portuguesas, nascia, digamos assim, morta. O mau gosto desaparecera,
mas em lugar dele ficava coisa que pouco mais valia; a inspiração pautada, o
estro convencional e a vacuidade da ideia escondida debaixo da opulência da
forma.
Se, em parte, as ciências e a indústria foram
introduzidas, ou como inventadas, no reinado do marquês de Pombal, as artes plásticas,
e principalmente a arquitetura, cuja história, mais do que a de nenhuma arte,
neste momento nos importa, já anteriormente existiam. A época de D. João V foi
uma época de luxo e riqueza lançados sobre um país miserável, como alfombra
preciosa em pavimento carunchoso e podre. Esse luxo e riqueza, que brotavam das
minas da América, foram favoráveis aos artistas. As obras magníficas do nosso
Luís XIV, ou antes do símia de Luís XIV, e mais que tudo a edificação do
fradesco palácio de Mafra fizeram aparecer estatuários, escultores, arquitetos.
Achou-os o conde de Oeiras, e deu aos seus talentos nova aplicação. Ao gosto
corrompido da arquitetura italiana, que era a seguida em Portugal, fez
substituir um gosto mais severo, mais útil e mais mesquinho. Era o homem
Político, o homem da vida prática dirigindo as artes: eram as artes reduzidas
pura e simplesmente a um ramo de administração. Compare-se o caráter geral do
convento de Mafra com o das grandes obras do marquês de Pombal, o plano da nova
Lisboa, o Terreiro do Paço, a Alfandega, o Arsenal da Marinha, a parte moderna dos
edifícios da Universidade de Coimbra. Em Mafra, achar-se-ão a exageração de
ornatos e os primores do cinzel, mas nenhuma inspiração verdadeiramente nobre e
grande; achar-se-á o desmesurado suprindo o sublime: nas obras do marquês, só
se encontram largas moles desadornadas, edifícios monótonos, posto que úteis ou
necessários, uma praça magnífica, onde campeiam monólitos enormes e que seriam
admiráveis se não estivessem cobertos de remendos e parches, e cujas paredes se
pintaram de ocre para poupar alguns palmos de silharia, alguns palmos de
mármore numa colina de mármore. O plano de qualquer obra pública desta época
dir-se-ia sempre traçado na mente de um negociante holandês. O despotismo
ignorante e presumido estragara a arte com a puerilidade; o despotismo
ilustrado estragou-a com a razão. Mafra é um poema da Fênix Renascida: a Lisboa
do marquês de Pombal um soneto de Diniz ou uma ode de Garção. A cidade depois
do convento é o Novo-método do padre Pereira expulsando das escolas latinas a
gramatica do padre Álvares.
Morreu D. José I, fato insignificante em si, mas grave
pelas suas consequências. Com a morte desse homem desapareceu da cena política
o forte espírito que reinara em vez dele. Portugal soçobrou então; apenas sobre
o seu vórtice de perdição boiaram por algum tempo as letras e a ciência
sustentadas ao de cima pelo braço do duque de Lafões. A arquitetura, que num
país pequeno e pobre, como o nosso, depende quase exclusivamente do governo
para existir, não descaiu porque estava já decadente: o que fez foi retroceder
das formas mesquinhas, mas graves e simples, que adotara, para os fogaréus e
burriés e repolhos e espirais e grinaldas da época anterior. Quereis saber o
que ela foi daí avante? Olhai para o mais notável edifício do subsequente
reinado, para o convento do Coração de Jesus. Como o pensamento único do
governo era desmentir o bom, o mau, o indiferente, tudo, em suma, quanto se
fizera no antecedente reinado, buscou-se restaurar a arquitetura de Mafra,
menos a vastidão, menos a opulência. Caricatura de caricatura. Aqueles portais microscópicos,
aquelas colunas disformes e deformes, encostadas à portada da igreja, espécie
de pólipos de pedra, guardados ali para servirem de pilares em outro monumento
que deles viesse a carecer; aquele átrio que recorda o vomitorium dos
anfiteatros romanos; aquelas torres onde não se pouparam nem colunemos inúteis,
nem franjas e avelórios de mármore; tudo isso é amostra do gosto da época,
gosto que tem durado e que ainda campeia nas fachadas de vários armazéns ao
divino construídos nos últimos sessenta anos e batizados com a pomposa
denominação de templos.
Tal foi em Portugal a arquitetura durante século e
meio. O renascimento, que condenou em peso, como bárbaras, as origens das
nações modernas e especialmente o que desdizia das diversas manifestações da
civilização grega e romana, envolveu nesta condenação, em muitos casos injusta
ou inepta, os admiráveis monumentos de arte que a Idade Média legara aos tempos
modernos. As gerações subsequentes, educadas numa adoração irreflexiva de tudo
quanto viera da Grécia e de Roma pagãs, não podiam compreender a sublime
majestade e, digamos assim, o espiritualismo da arte cristã. Os paços, os
castelos, as pontes, os cruzeiros, as galilés das praças, as portas, as torres,
os pelourinhos das cidades e vilas, construídos desde o XI até o XV século
quase que desapareceram. Conservaram-se alguns mosteiros e santuários, algumas
catedrais e paróquias, não por serem obras da arte, mas por serem lugares
consagrados a instituições religiosas, e talvez por terem faltado os recursos
para os substituir por novas edificações.
Ainda assim, restar-nos-iam hoje em mosteiros, em
catedrais e em outros edifícios consagrados ao culto inestimáveis monumentos,
se nesta terra, desamparada de Deus e da arte, tivesse havido sequer um
vislumbre de gosto e de veneração pelo passado, e não fosse justamente entre o
clero, isto é, entre os guardadores naturais desses mesmos monumentos, que
surgissem os seus mais funestos adversários. Porém os bispos sabiam teologia e
direito canônico; os cônegos e párocos, alguns sabiam latim; os frades, pelo
menos os membros das antigas ordens monacais, eram eruditos e homens de letras;
mas nem os bispos, nem os cônegos e curas d'almas, nem os frades entendiam de
arquitetura. Entregaram tudo aos arquitetos e mestres de obras, que estragaram
tudo. Quase que escasseava a pedra para se converter em cal. Os bate-folhas não
tinham mãos a medir. Colunas, capiteis, abóbadas, torres, portais, arcarias,
claustros, tudo foi caiado, dourado, enfeitado, estragado. Procurai na maior
parte das nossas sés, das nossas colegiadas, das nossas velhas paróquias, um
desses pilares polistilos, desses capiteis e cimalhas rendadas, desses bocetes
e pendurões variados, dessas gárgulas às vezes insolentes, às vezes terríficas,
às vezes finamente epigramáticas, e nada achareis do que foi. Aqueles livros de
pedra, complexos como os poemas de cavalaria, ingênuos como os poemas do Cid ou
dos Nibelungen, converteram-se em palimpsestos donde se raspou a história das crenças,
dos costumes, dos trajos, das alfaias de antigas eras; onde se apagaram os
vestígios de sucessos notáveis, de dramas populares, de lendas Poéticas, e até
retratos únicos de varões singulares. Nesses livros preciosos, em vez do seu
primitivo conteúdo, só achareis as rasuras que mãos ineptas aí fizeram e os
caracteres que sobre essas páginas, outrora eloquentes, traçou a pior das
barbarias, a barbaria pretensiosa e civilizada. Passou por lá o picão do
reformador, a colher do estucador, o mordente do dourador. Paredes, pilares,
capiteis, laçarias, ogivas estão rebocados, alvos, polidos, dourados. A luz do
sol já não bate no pavimento do templo convertida em luz baça e saudosa pelos
vidros corados das frestas esguias, dos espelhos circulares: agora alaga em
torrentes essas paredes brancas e lisas, que fingem às vezes absurdamente
pedras impossíveis estendidas pela colher do alveneu sobre a face rugosa, mas
secular e veneranda, da verdadeira pedra. O templo de Deus é como a sala do
baile, como a sala dos legisladores, como a sala do teatro, como a praça
pública, sem mistérios, sem tradições, sem saudades.
Mas se a culta barbaria dos nossos avós e de nossos
pais forcejou por cobrir com remendado véu os monumentos dos primeiros séculos
da monarquia, deixou em muitos deles ao menos, os seus formosos e ideais
perfis, as suas linhas arquitetônicas. O pensamento que inspirou essas
concepções grandiosas como que se alevanta dentre as devastações perpetradas
pelo camartelo, pela picareta e pelos boiões de cal delida, e apesar de se
haverem dirigido sem tino, sem gosto, sem harmonia as restaurações dos
edifícios que as injúrias do tempo em parte haviam arruinado, resta ainda muito
que estudar e admirar nesses monstros. Até, em alguns deles, é possível
suprimir, pela imaginação, o moderno e pôr em lugar deste o antigo. A poesia
ainda não desamparou de todo o mutilado monumento.
Mas durarão por muito tempo esses restos da mais
formosa e magnífica de todas as artes? Não o esperamos; mas lavraremos aqui, ao
menos, um protesto contra o vandalismo atual. Nossos pais destruíram por
ignorância e ainda mais desleixo: destruíram, digamos assim, negativamente: nós
destruímos por ideias ou falsas ou exageradas; destruímos ativamente;
destruímos, porque a destruição é uma vertigem desta época. Feliz quem isto
escreve, se pudesse curar alguém da febre demolidora; salvar uma pedra, só que
fosse, das mãos dos modernos hunos!
***
Falamos da decadência da arquitetura durante século e
meio; porque as manifestações dessa decadência foram sempre as mesmas em tão
largo período. Vê-se a arte na sua lenta agonia rodeada de curandeiros que se
propõem sará-la, mas que a transfiguram, sem alcançarem qual é o achaque íntimo que a devora: vemos acumular colunas a propósito e
desprositadamente: vemos gesso, ouro e talha: vemos converter os velhos
monumentos em monstros de Horácio; por ao lado da torre ou do coruchéu gótico zimbórios
à Buonaroti ou portadas à Barrósio; enxertar a capela do século XVIII na parede
de nave do século XIV semelhante a um viveiro de cogumelos, nascidos por entre
as fisgas úmidas da pedraria, a favor da meia obscuridade daquelas profundas
arcadas: vemos altear edifícios que representam o gosto arquitetônicos do
mercador de retalho, e erguer templos cujo indecente e ridículo elogio é o de
serem bonitos: vemos as grandes praças de Lisboa, bem esquadriadas,
bem simétricas, bem prosaicas: vemos igrejas, como a da Encarnação ou a dos Mártires,
caiadas, polidas, alindadas, onde não mora um só pensamento de Deus. A arte
entendeu-se assim por largos dias. Ao passo que se imprimia a Poética do padre
Freire, que se coroava a Osmia, e que se publicavam por ordem superior as
poesias, assim chamadas, de Ribeiro dos Santos, encostavam-se colunas disformes
pelas paredes de um pio armazém, conhecido vulgarmente pelo nome de igreja de
São Domingos, ladeavam-se com elas os portais dos edifícios públicos e as
frestas do átrio tisico do convento do Coração de Jesus. No meio daquelas sensaborias
arquitetônicas parecia sentir-se uma tendência instintiva para a regeneração;
mas essa tendência, que buscava uma solução ao problema nas tradições da arte
romana ou antes grega, não podia lá encontrá-la. Fora o renascimento; fora a
admiração dessas tradições, até certo ponto justa, mas exagerada depois, que dentro
de pouco mais de cem anos chegara, de modificação em modificação, até a
arquitetura do século XVII, à arquitetura da Sé nova de Coimbra, do Seminário
de Santarém, à arquitetura jesuíta. Não só a regeneração literária e a
política, mas também a da arte devia consistir em considerar o renascimento,
não como fase, mas como lacuna na vida das nações cristãs, das sociedades
novas; em descer logicamente do crer e sentir da sua idade viril. Embora a arte
seja uma só; embora seja sempre e em toda a parte a expressão sensível do
ideal, tanto este como as suas manifestações é que são diversos nas diversas
épocas e em sociedades diferentes. Naquele dilatado período de decadência o que
sobretudo faltava à arquitetura era a luz, o horizonte, a atmosfera respirável,
em que pudesse viver e produzir.
A decadência, porém, na época em que vivemos é outra,
e mais profunda. Já não há a corrupção do gosto, o inaplicável das teorias, o
erro do entendimento. Agora é o instinto bárbaro, a malevolência selvagem, a
filosofia da brutalidade. Dura há poucos anos; mas esses poucos anos darão
maior número de páginas negras à história da arte do que lhe deu século e meio.
O picão e o camartelo só há bem pouco tempo que podem dizer — triunfamos. Até
então escaliçavam-se paredes, roçavam-se esculturas, faziam-se embrechados; mas
agora derribam-se coruchéus, partem-se colunas, derrocam-se muralhas,
quebram-se lousas de sepulturas, e vão-se apagando todas as provas da história.
Faz-se o palimpsesto do passado. Corre despeado o vandalismo de um a outro
extremo do reino, desbaratando e assolando tudo. Cômico perfeito, desempenha
todos os papéis, veste todos os trajos. Aqui é vereador, ali administrador de
concelho: ora é ministro, logo deputado: hoje é escritor, amanhã funcionário.
Corre na carruagem do fidalgo, faz assentos de debito e crédito no escritório
do mercador, dá silabadas em latim de missais, prega nos botequins sermões de
economia política e do direito público, capitaneia soldados, vende bens
nacionais, ensina ciências; em suma, é tudo e mora por toda a parte. Atento ao
menor murmúrio dos tempos que foram, indignado pela mais fugitiva lembrança das
gerações extintas, irrita-se com tudo que possa significar uma recordação.
Assim excitado, argumenta, ora, esbraveja, esfalfa-se. O eretismo dos nervos só
pode afrouxar-lho, como as harmonias melancólicas de harpa eólia, o ruído de
algum monumento que desabe.
Apesar da ferocidade nervosa do vandalismo, não se
creia, todavia, que ele é desalinhado no vestuário, carrancudo na catadura,
descomposto nos meneios. Nada disso. O vandalismo é aprimorado no trajo, lhano
e grave a um tempo no porte, pontual na cortesia. Encontrá-lo-eis nas salas
requebrando as damas, dançando, tomando chá; no teatro palmeando com luvas
brancas os lances dramáticos. Entende francês e leu já Voltaire, Pigault-Lebrun
e os melhores tratados do wist: quase
que sabe ler e escrever português. O vandalismo é culto, instruído, civil,
afável. Tirem-lhe de diante os monumentos; será o epílogo de todos os dotes e
boas qualidades; será a mansidão incarnada.
Mas, infelizmente para ele, o velho Portugal estava
coberto de recordações do passado. Cada fato histórico tinha uma igreja, uma
casa, um mosteiro, um castelo, uma muralha, um sepulcro, que eram os documentos
perenes desse fato e da existência dos indivíduos que nele haviam intervindo.
Encontrando tantas injúrias mudas à decadência presente, o vandalismo
irritou-se, ergueu-se e falou em feudos, em dízimos, em corrupções fradescas,
em maninhádegos, em servos de gleba, em direitos de osas, em superstições;
catou, em suma, todas as vergonhas e desonras do passado que pode e soube,
entressachando-as com sentenças e lugares comuns do catecismo Político de Ramon
Salas e, por uma lógica incompreensível, por uma lógica sua, chamou os homens
do alvião e da picareta e começou a derribar, vitoriado pelo povo. Só ele,
imóvel no meio da mobilidade do nosso tempo, no meio das opiniões encontradas,
das lutas, das comoções, tem apontado constante ao seu alvo, a demolição
indiscriminada do passado. Assim, pertence a todos os bandos Políticos, aceita
todos os princípios, curva-se a todos os jugos, contanto que o deixem roer os
testemunhos da história e da arte; que o deixem fazer-nos esquecer da glória
nacional e de que somos um povo de ilustre ascendência. Este pensamento é o seu
pensamento único, perpétuo, inabalável.
Há pouco que que da vila de Peniche nos escreviam o
seguinte: "Tendo havido quem ousasse revolver e desfazer o túmulo em que
jazia o cadáver de D. Luís de Ataíde, na igreja do extinto convento do
Bom-Jesus desta vila, o fato excitou nos que concorreram a observar os despojos
mortais daquele herói vivos desejos de ouvirem falar da sua vida e
feitos." Não nos falecem cartas em que se contenham notícias de análogas
profanações. De todos os ângulos do reino se alevantam brados de homens
generosos, que lamentam a ruína dos velhos edifícios, a profanação das
sepulturas, a destruição de todas as memórias da arte e da história. Quem hoje
quisesse escrever as biografias dos nossos homens ilustres, talvez já não
pudesse dizer onde atualmente jazem os restos da maior parte deles. O braço
onipotente do vandalismo estendeu-se para os sepulcros; as campas estalaram e
os ossos de nossos avós lançaram-se aos cães e rolam pelo pó das estradas e
pelas imundícies das ruas. As inscrições lapidares vão-se enterrando por
alicerces e paredes, não à face destas, porque aí alguém ainda poderia lê-las;
mas no fundo dos cavoucos ou no âmago dos muros. Sem isso, não nos
vangloriaríamos com inteira justiça de ter completamente renegado de nossos
maiores.
Referiu-nos um respeitável viajante espanhol que,
entre os entulhos do convento de São Domingos de Lisboa, vira uma lájea onde se
lia o epitáfio de Fr. Luís de Granada. Solicitou dos demolidores que a tirassem
do meio das ruínas, porque essa pedra era valiosa memória. Provavelmente os
economistas da alavanca, os filósofos da picareta riram a bom rir do desvario
daquele espanhol fanático. A lápide sepulcral de um dos homens mais sábios e
eloquentes que a Península gerou lá jazerá a estas horas nos fundamentos de
algum edifício, cujo rendimento, abatidos décima e concertos, o vandalismo e o
dono acharão decerto preferível à glória de Fr. Luís de Granada.
Oh, civilização!
Levaram-nos a Coimbra em 1834 obrigações de serviço público.
Residíamos aí quando foi suprimido o mosteiro de Santa-Cruz. Correu então a
notícia de que se pretendia pedir ao governo que esse belo edifício fosse doado
ao município. Mas, para quê? Para a câmara o arrasar e fazer uma praça. Não se
realizou o nefando alvitre; mas os bons desejos não faltaram. Uma praça no
lugar onde estivera Santa-Cruz; uma praça calçada com os fragmentos dos
rendados umbrais do velho templo, com as lájeas quebradas dos túmulos de Afonso
Henriques e de Sancho I e dos demais varões ilustres que ali repousam! Há aí,
porventura, quem avalie a sublimidade de tal pensamento e meça a incomensurável
distância que vai dum edifício monumento, onde apenas há história, arte,
poesia, religião, a um terreiro amplo, bem amplo, onde a vadiagem possa
estirar-se regaladamente ao sol? Infelizmente; a cidade literária, a alma
mater, ficou privada deste documento inelutável da sua ilustração.
Pelas largas que tem tomado o vandalismo, podemos
assegurar que dentro deste século não haverá em Portugal um monumento. O México
ufanar-se-á do seu templo de Palenque, da sua pirâmide de Tehuantepec; a Índia
dos subterrâneos de Elora e de Elefanta, e até, os habitantes bárbaros da Austrália
terão que mostrar aos estrangeiros os morais dos seus antigos
deuses. Só nós os portugueses não lhes poderemos dizer: —"eis os
testemunhos indubitáveis de que fomos uma nação antiga e gloriosa".
Correi as principais cidades do reino; buscai os mais
veneráveis edifícios. Ou jazem por terra ou foram aplicados a usos que lhes estão
produzindo a ruína. A bela e grandiosa igreja de São Francisco do Porto, único
monumento importante do século XV que possuía aquela cidade, foi consagrada a
armazém da alfandega. O mosteiro dos Jerônimos em Belém, obra prima da
arquitetura média entre ao neogótica e a da chamada do renascimento, edifício
magnífico de uma época de transição na arte, como Santa Sofia de Constantinopla
o é de uma época análoga, foi deturpada, não nos importa por quem, e o seu
maravilhoso claustro ludibriado com tapumes caiados e convertido em dormitórios
forçamente úmidos e malsões. A Batalha, Alcobaça, o convento da ordem de Cristo
em Tomar caem em ruínas, e diz-se —"que importa?" Bárbaros! Importa a
arte, as recordações, a memória de nossos pais, a conservação de coisas cuja
perda é irremediável, a glória nacional, o passado e o futuro, as obras mais
admiráveis do engenho humano, a história, a religião. Vós, homens da
destruição, dos alinhamentos, dos terreiros, da civilização vandálica, é que
importais bem pouco; porque, semelhantes a vermes, roeis e não edificais;
porque não deixareis rasto no mundo depois de apagar tantos vestígios alheios;
porque nada valendo, menoscabais os que valeram muito; porque se um templo, um
mosteiro, um castelo duraram seis ou oito séculos e durariam, sem vós, outros
tantos, as vossas picaretas, as vossas alavancas, os vossos camartelos estarão
comidos de ferrugem e informes antes de vinte anos, e são essas as únicas e
tristes memórias da vossa ominosa passagem na terra.
Desprezar os monumentos é brutal; persegui-los é ímpio
e sacrílego. Os que os desprezam fazem o que faziam os lombardos, apoderando-se
da Itália, às formosas obras da arquitetura greco-romana. Deixavam-nas perecer;
porém não as destruíam. Os que as arrasam ou mutilam são adeptos de uma velha
heresia que ressurge; são iconoclastas redivivos.
Procurai hoje, por exemplo, em Lisboa as antiquíssimas
igrejas paroquiais de Santa Marinha e de São Martinho: achareis os lugares onde
estiveram, e achá-los-eis, porque aos hunos encapados em lemiste não é dado
suprimir um fragmento do orbe terráqueo. Os homens desta Liliput da
inteligência estão desentulhando aqueles terrenos para fazerem casas. Onde
haviam eles de morar, senão fizessem ali mais umas casas? Santa Marinha
encerrava memórias anteriores à monarquia, e a paróquia de São Martinho
prendia-se com a história da grande crise por que Portugal passou nos fins do
XIV século. Mas de que momento é essa consideração, se atendermos a que lá,
onde estiveram os dois templos ricos de idade e de tradições, se podem
construir duas moradas bem pintadas, bem alvas exteriormente, com sua beirada
vermelha e seu rodapé amarelo? Que importa que se dispersem os ossos do conde
Andeiro ou se desfaça a sepultura do conde de Alvor? As cinzas dos mortos podem
jazer tão tranquilas debaixo do balcão de uma taberna, como aos pés de um
altar, à sombra da eterna cruz. Bendita sejas tu, geração filosófica, geração
arrasadora, geração camarteladora! O futuro, está certa disso, há de fazer-te
justiça.
Uma das mais notáveis obras do século XIV foi, sem
dúvida, a muralha com que el-rei D. Fernando cingiu Lisboa. Todos julgavam
impossível a sua edificação, dizem os cronistas, porque supunham que levaria
cem anos a construir: aquele príncipe soube, porém, acabá-la em dois. Os povos
foram chamados de grandes distâncias a trabalhar nela, fazendo-se aliás, todas
as prevenções para suavizar aquela espécie de anuduva extraordinária. A esta
muralha deve hoje Portugal não ser uma província de Espanha, porque salvou
Lisboa de cair nas mãos del-rei de Castela. Se isto se tivesse realizado, o
reino estava perdido. Considerada a semelhante luz, a muralha de D. Fernando
era, talvez, o nosso mais importante monumento histórico. O progressivo
acréscimo da capital tinha-a em grande parte destruído; mas restava ainda, além
de outros, um lanço importantíssimo. Era o ângulo que fechava a cidade pelo
lado do bairro dos judeus. Por este ângulo, onde houvera uma porta e onde ainda
restavam os vestígios de uma torre que a defendia, a torre de Álvaro Pais, se
podia delinear quase exatamente a direção que seguiam os dois lanços de norte e
de oeste. Era, assim, uma espécie de padrão que indicava os limites setentrionais e ocidentais da povoação, e uma relíquia que demonstrava a
grossura e solidez da antiga muralha, mui superior à de outras posteriormente
construídas em épocas mais ricas e mais civilizadas.
Este ângulo, este fragmento, testemunha do período
mais glorioso da nossa história, lá se está derribando para se fazer uma praça
quanto possível ampla. Homens gigantes, como nós, não cabem onde couberam
nossos avós, pigmeus conquistadores da África e da Índia. Far-se-á pois uma
praça, que, se não prestar para mais nada, poderá servir de mercado de
hortaliça. Uma pirâmide de repolhos substituirá o adarve, por onde, em noite
sem lua, se viam a espaços cintilar as armaduras dos escudeiros ou cavaleiros
idos em sobrerrolda a vigiar as roldas dos besteiros do conto da cidade, quando
pela terceira vez no reinado de D. Fernando os castelhanos a acometiam com grande
poder. Ali, no sítio daquela porta, por onde o, depois tão célebre, Nuno
Álvares sairia muitas vezes nessa conjuntura a espalhar o terror e a morte
entre os homens de armas inimigos, venha a lide incruenta sobre o preço da
couve, sobre o viçoso ou murcho das favas, substituir o grito clamoroso de São
Jorge, que chamava nossos avós, os rudes burgueses do século XIV, aos combates
em defesa da Pátria.
O que estes netos de Átila, de colarinhos e peitilhos
engomados, são, sobretudo, ridículos.
Vergonha é confessá-lo: os estrangeiros têm mostrado
maior veneração pelas antiguidades do nosso país do que os portugueses. Um
estrangeiro salvou no convento dominicano de Benfica a antiga capela de D. João
de Castro. Há pouco ouvimos outro, em cujos olhos chamejava a indignação,
clamar altamente contra a barbaria com que se deixavam estragar no mosteiro de
Belém vários quadros magníficos de escola portuguesa, nos quais os pássaros,
entrando pelas frestas mal reparadas do edifício, vão amontoando as imundícies.
Mas estes estrangeiros são homens que sabem qual seja o valor dos monumentos da
arte e da história. Nós é que temos perdido o sentimento e a inteligência para
apreciar essas coisas.
Se com a nossa incúria agressiva e com a nossa raiva
assoladora desmentimos o passado, para darmos em tudo documento de insipiência
desmentimos, até, essas mesmas opiniões e tendências do presente, a que
recorremos para condenar em nome do progresso, sem distinção nem juízo, o mau e
o bom de eras antigas. É a economia política a ciência do nosso tempo: todos
falam em capitais, em indústria, em riquezas sociais, em valores. Mas que serão
os monumentos? Que serão essas admiráveis agregações de mármore ou de granito?
São o resultado ou produto da concepção, da aplicação e da
execução: vem a ser, portanto, uma riqueza social. E por quê e para quê anulais
vós essa riqueza? Dado que representasse um capital improdutivo, com que
intuito o deitais fora? Não o são, porém, na sua máxima parte, os monumentos.
Quando a arte ou os fatos históricos os tornam recomendáveis, convertem-se em
capital produtivo. Calculai quantos viajantes terão atravessado Portugal neste
século. Decerto que não vieram cá para correrem nas nossas cômodas diligências
pelas nossas belas estradas, ou navegarem nos nossos rápidos vapores pelos
nossos amplos canais; decerto que não vieram para aprenderem a agricultar com
os nossos agricultores, nem a fabricar com os nossos fabricantes; mas para
admirarem os mosteiros da Batalha, de Alcobaça e de Belém, a sé velha Coimbra,
a catedral, a igreja de São Francisco e o templo romano de Évora, a matriz de
Caminha e a colegiada de Guimarães, os castelos da Feira e de Almourol, e
enfim, tantas obras primas de arquitetura que encerra este cantinho do mundo.
Credes que esses romeiros da arte voltam da romagem aos seus lares sem
dispender muito ouro, e esqueceis que esse ouro ficou por mãos portuguesas? E
falais de economia política, e aniquilais o capital dos monumentos? Adoradores
do camartelo, por qualquer lado que se observe a vossa obra, não se descobre
senão o absurdo.
Quiséramos que os homens deste país que tem coração
português fizessem uma associação, cujo trabalho de patriotismo ligasse os seus
membros dispersos por todo o reino; que os residentes em Lisboa constituíssem
uma espécie de junta, à qual os das províncias, logo que à sua notícia chegasse
a demolição de algum monumento da história ou da arte, remetessem uma breve
nota, individuando as circunstâncias do edifício destruído e o nome do
arrasador, quer este fosse magistrado ou funcionário público ou municipal, quer
fosse indivíduo particular. Quiséramos depois que essa breve nota, sem
reflexões, sem afrontas, estampada em todos os jornais, se legasse à
posteridade. Nenhuma lei proíbe que se narre, singelamente e sem o qualificar,
um fato que o século julga indiferente. Ninguém, por certo, teria a queixar-se
de semelhante publicação. Eram simplesmente fatos que se transmitiam à
apreciação da posteridade; era apenas um trabalho histórico.
"Mas isso provocava as maldições dos vindouros. —
E que importam as maldições dos vindouros ao que não cura nem da arte, nem do
passado, nem do futuro, nem da glória nacional, nem da memória de seus avós,
nem dos sepulcros, nem das tradições, nem sequer, enfim, dos interesses
materiais que resultam e hão de resultar da conservação dos monumentos? Que
importa isso àqueles para quem os horizontes da vida são exclusivamente os
horizontes da terra? Nada. Ririam desse corpo de delido de terrível processo.
Mas, talvez, seus filhos e netos não rissem, vendo-se obrigados a renegar de um
nome, no qual gerações mais alumiadas e mais nobres haviam forçosamente de
imprimir o ferrete de perpétua desonra.
***
Os xeques da tribo árabe de Bka estavam um dia, pela
volta da tarde, assentados junto das colunas de um templo, na extremidade
oriental da acrópole de Balbek.
Daqui, pondo a mão sobre os olhos para os resguardarem
do sol que os deslumbrava, os chefes da tribo de Bka alongavam a vista para a
banda do poente.
E o sol, que descia rápido, mandava a sua luz suave através
daquelas arcarias gigantes e imensas; daquelas colunas monolitas, a menor das
quais os braços de dez mil árabes não valeriam a erguer.
A hora era de meditação e de melancolia, e os xeques
olhavam com aspecto carregado para a ossada grandiosa da erma cidade, que é
como um olhar de desdém com que o mundo antigo contempla o mundo moderno, e é
ao mesmo tempo demonstração solene da vaidade disso a que se chama poderio e
glória, cuja duração se confunde na eternidade com a duração de um dia.
E por entre aquelas rumas de mármores e de sienites
viam-se passar, buscando as suas leves e móveis habitações, dispersas entre as
ruínas, os árabes do deserto, semelhantes aos gusanos que refervem no cadáver
meio apodrecido do elefante abandonado pelos caçadores nas margens solitárias
do Zambeze.
E depois de largo silêncio, um dos xeques abaixou os
olhos e, com voz presa de furor íntimo, disse
para os companheiros:
"Por que consentiremos nós, os filhos do Profeta,
que estes gigantes de pedra estejam continuamente assoberbando a tenda humilde
do árabe, que passa livre no mundo?
Se a nossa vida é um instante, o homem não deve
construir edifícios destinados a transpor séculos. É quase blasfêmia revestir o
transitório com o trajo da eternidade. A eternidade não é da terra; é do
paraíso. Por que haviam de querer os que já não são imobilizar no deserto para
os seus últimos netos esse arraial quase interminável de tendas de pedra?
Para que semearam as gerações passadas uma seara
imensa de abismos pelos pendores do Ante-Líbano, arrancando dele pedreiras
maciças, como se fossem os grãos de areia, com que ergue colinas movediças o
sopro do Simum quando varre o deserto?
Que temos nós com os tempos que já passaram, para que
eles venham increpar-nos com a muda insolência dos monumentos o nosso livre e
solto viver, e instituir paralelos ofensivos entre a decadência atual e o
esplendor das artes e a magnificência laboriosa e incômoda daquelas eras de
grandeza e poderio?
Que importa que então saíssem da Assíria os
conquistadores da Ásia e as frotas que descobriam novos céus e novos mares, ou
que os poetas de então tivessem para cantar lendas de façanhas quase incríveis?
Em vez das conquistas, a liberdade. Hoje não há ato
que seja defeso ao árabe do deserto. Corremos livres por livres descampados.
Embora o reluzir do sabre de um spai de Ibrahim faça fugir aterrados cem
cavaleiros nossos, e o frangue do ocidente nos despreze como bárbaros.
Saboreamos quietamente o pão esmolado ou arrebatado ao que o cultivou para nós.
Da bolsa do viandante o ouro cai-nos aos pés com seu dono. O nosso trabalho é
apenas erguer aquele quando este cai. Depois de uma vida sem sacrifício, sem
amarguras, que nenhum monumento contará aos vindouros, dormiremos na paz do
esquecimento, porque não deixaremos vestígios da nossa jazida. Não se revolvem
os ossos dos mortos, quando o seu último abrigo é a amplidão do nosso oceano de
areias, que não consente nem lápides, nem inscrições, nem edifícios na sua face
tristemente pálida.
Porque, pois, continuarão eternamente erguidos estes
templos, estes palácios, estas muralhas, repreensão ou antes injúria perpétua
ao nosso viver?
Que se ajuntem os filhos das profundas solidões do
deserto, e que, dia a dia, vão esboroando uma parte, mínima que seja, desses
panos de muros de cem côvados, formados de poucas pedras; dessas colunatas,
sobre cujos frisos e arestas pousa à noite o abutre, como costuma pousar sobre
a cumeada de longa serrania, a que essa obra de homens se assemelha."
Calou-se o xeque. Os outros abaixaram as cabeças com
lento meneio, como quem aprovava o dito.
Se eu, se vós, chegássemos neste momento ao pé do
velho templo de Balbek e ouvíssemos o discursar do beduíno, o que diríamos no
primeiro ímpeto de justíssima indignação?
Diríamos que o xeque era uma víbora, que, esmagada
debaixo de vinte séculos, queria voltar contra a história os dentes
envenenados, como se a peçonha da sua cólera pudesse aniquilar a história.
E antes que a nefanda obra que ele traçava e os demais
aplaudiam começasse a ser executada, falaríamos assim àqueles loucos:
"Vós outros quereis derribar a memória das
gerações que foram, porque a majestade do passado pesa mais sobre a vossa
consciência do que pesam sobre esse chão que parece acurvar-se e gemer debaixo
de tantas grandezas, os pilones maciços, as esfinges gigantes, as arcarias
profundas, as pedras de dez côvados inseridas em muralhas indestrutíveis.
Melhor fora que forcejásseis por ser também grandes, convertendo-vos à virtude
antiga, e que, em vez de constituir um bando de miseráveis, vos tornásseis numa
nação ilustrada e forte, capaz de legar à posteridade monumentos como estes,
quando lhe chegasse a sua última hora; porque a morte abrange todas as
sociedades, todas as civilizações, como abrange todos os indivíduos.
Credes que a luz do sol ocidental, batendo nas colunas
avermelhadas do velho templo, vos reflete nas faces envilecidas o rubor que as
tinge? Não sentis o sangue que estas palavras vos fazem subir do coração ao
gesto? É o sangue e não o mármore; é que, malgrado vosso, elas foram despertar uma
voz que não podeis sufocar, a da consciência, que vos repreende da atual
decadência. A vermelhidão que surgiu nessas faces crestadas não reflete da
pedra lisa; reflete-se das almas que se rebelam contra si mesmas."
Ousaríamos nós, em verdade, dizer isto aos beduínos,
sem que também o rubor viesse tingir-nos as faces?
Não; porque somos como eles; porque, bem como eles,
nos persuadimos de que, varrendo todos os vestígios do Portugal antigo,
poderemos esconder aos estranhos a nossa decadência atual; porque, além disso,
cremos que para ser deste século, é preciso renegar dos antepassados.
Todavia, ainda há quem deplore a destruição das
memórias venerandas de melhores tempos; ainda há quem lute contra a torrente de
barbaria que alaga este país tão rico de recordações, recordações que tantos
ânimos envilecidos pretendem fazer esquecer. Sabemos que os nossos brados de
indignação acham eco em muitos corações. Temos visto e recebido cartas acerca
deste assunto escritas com a eloquência da convicção e de profundo despeito.
São protestos solenes de que nem todos os filhos desta terra venderam a alma ao
demônio da devastação. Provam elas que o ruído dos alviões e picaretas não
basta para afogar os brados da razão, da consciência e do amor pátrio.
Lendo-as, o sangue referve nas veias contra essa ideia fatal que entrou na
maioria dos espíritos, de que tudo quanto é antigo é mau ou insignificante,
quando a pior coisa que há é essa ideia, a mais insignificante a cabeça onde se
aninha, a mais detestável a mão que a traduz em obras, estampando sobre a terra
da sua infância a inscrição que o ateísmo decreta para os sepulcros: — aqui é a
jazida do nada.
É singular, por exemplo, a história das recentes
vicissitudes por que tem passado a colegiada de Santa Maria da Oliveira em Guimarães.
Guimarães parece fadada para vítima desta espécie de escândalos. A igreja da
colegiada de Guimarães era um dos mais belos monumentos de arquitetura ogival.
O seu teto de grossas vigas primorosamente lavradas constituía com o da sé do
Funchal e poucas mais toda a riqueza de Portugal neste gênero, porque, durante
a idade média, empregava-se geralmente a abóbada de pedra nas edificações
suntuosas. Além disso, as bem proporcionadas arcarias, os capiteis adornados de
esculturas variadas e subtis, as três naves majestosas divididas por elegantes
colunas, inspiravam em subido grau aquele respeito melancólico e saudoso que é
um segredo das igrejas chamadas góticas. Os anos não tinham deslizado em vão
por cima do monumento: arruinado em partes, carecia de reparos. O cabido
ajuntou para isso grossas somas. Chamaram-se obreiros, e há sete ou oito anos
que estes lidam por apagar todos os vestígios da antiga arte. Quebraram-se os
lavores dos capiteis e cornijas: substituíram-se com pedras lisas: estas pedras
cobriram-se de madeira: esta madeira dourou-se, pintou-se, caiou-se. O templo
do Mestre de Aviz lá está alindado; lá está coberto de arrebiques. Os que deviam
manter-lhe a majestade das cãs; os que deviam dispender seus tesouros
acumulados, não em remoçá-lo, mas em conservar-lhe o venerando aspecto e as
rugas dos séculos, fizeram da casa do Senhor uma velha prostituta que esconde
debaixo do caio e do carmim a flacidez do gesto. Blasfemaram de Deus, não com
blasfêmias de palavras, mas com a blasfêmia das obras. Deram enfim documento
indubitável de que não havia ali quem soubesse a harmonia que existe entre a
arquitetura e a religião; que se lembrasse de que o livro da lei e o templo são
dois tipos sensíveis, dois verbos que inspiram, um diretamente ao espírito,
outro simbolicamente aos olhos, as relações entre o homem e Deus, e de que não
só é impiedade negar ouvidos ao verbo escrito, mas que também é ímpio rasgar o
livro de pedra.
E que disseram os habitantes de Guimarães durante oito
anos em que os vermes andaram a roer naquele cadáver?
Louvaram o bonito da obra. O longo
tasquinhar do cabido despertou-lhes, até, o apetite. Alguns lembram-se já de
demolir as muralhas da vila reconstruídas por D. Diniz. Talham ainda banquete
mais lauto. Tentam arrasar as paredes que restam dos paços do conde Henrique;
dos paços onde Afonso I nasceu. A glória dos cônegos de Santa Maria da
Oliveira, tão dispendiosamente conquistada, ofuscar-se-ia, assim, por pouco
dinheiro, como a luz pálida da lua nos esplendores do surgir do sol.
Arrasados, pois, os muros reconstruídos pelo rei
lavrador, apagados os últimos vestígios dos paços dos nossos primeiros
monarcas, raspado e sarapintado o interior da igreja de Santa Maria, Guimarães,
em vez de ficar antiga, ficará velha garrida. Unicamente, para a trair, lhe
restará uma ruga na face: o frontispício da colegiada. Mas se a picareta do
município pretender humilhar, como sacrilegamente se cogita, o colherim, as
tigelas de ocre e vermelhão e as broxas canonicais, vingue-se o ilustríssimo
cabido arranjando mais alguns vinténs, e mandando à custa deles picar e caiar
aquele frontispício. Depois, para esmagar de todo as audazes emulações
burguesas, enfeite triunfantemente a frontaria da sua igreja com um rodapé
encarnado.
Mas haverá um governo que tolere tantos desvarios,
tantas devastações brutais? Pode haver, e ha. Não seria difícil encontrar
ministros e administradores gerais, que, se não fora o defeito de lerem sem
soletrar, sintoma altamente suspeito para os eleitores, dariam excelentes
vereações aos concelhos desta terra, onde o sangue dos conquistadores suevos
parece ter ficado predominando nas veias dos seus habitantes. Mais de um
governo tem disputado às câmaras municipais primores de barbaridade. Já
aludimos à igreja de São Francisco do Porto convertida em armazém da alfandega;
ao claustro de Belém convertido em dormitório; ao abandono dos conventos de
Tomar, da Batalha e de Alcobaça. Há, porém, mais. Vede essa igreja de São
Domingos de Santarém. As suas velhas e grossas portas estão fechadas e o
convento está vazio dos seus antigos habitadores. Não é, todavia, provável que
o templo mandado edificar pelo malfadado Sancho II e de cuja primitiva fábrica
ainda resta inteira a capela mor, ficasse deserto de culto, como o convento
ficou ermo de frade. A supressão das ordens monásticas não foi a abolição das
solenidades religiosas. Vede, pois, o templo, que, se agora está fechado, não
tardará a ecoar com orações e salmos. Transportai-vos pela imaginação para o
interior da igreja na hora em que os cânticos e o incenso se alevantam ante o
altar; em que o órgão solta a sua voz melancólica; em que a nave está cheia de
povo e o sacerdote ora por ele e com ele; na hora em que o sol coado através
das esguias janelas reflete pelas pedras que o tempo amareleceu uma luz
suavemente pálida; imaginai essa hora, e vereis que, se o convento se
despovoou, nem por isso ficou despovoado o templo. A oração do dominicano não é
necessária nas solenidades da igreja. Não o abandonou à solidade a pia
solicitude dos fiéis. De noite, as lâmpadas, penduradas ao longo da nave, ou
brilhando na escuridão das capelas, como estrelas engastadas em céu profundo,
despedem frouxos raios que vão quebrar-se por cima de campas onde se divisam,
em caracteres confusos e gastos nomes de varões ilustres que ali vieram
repousar das lidas da vida à sombra da cruz. Lá estão os sepulcros de Gil e de
Martim de Océm, cuja voz exprimia a suma razão e a suma ciência nos conselhos
dos reis; lá alveja o jazigo do infante D. Afonso, filho de Afonso IV, e o de
Fernando Sanches, a quem Fr. Luís de Sousa chama bastardo querido de
D. Dinis. Por aí dormem muitos pobres frades, cuja vida obscura, mas cuja morte
foi invejada. Misturam-se ali os ossos dos que foram grandes na terra com os
dos que reputamos grandes no céu; e uns e outros são como testemunhas que
tornam mais solene o culto, esse laço que liga ao céu a terra. Mas as portas do
edifício sagrado rangem nos quícios de ferro, para se abrirem de par em par.
Ondas de povo vão precipitar-se pelo estreito adito e espraiar-se até junto do
altar. O sacerdote vai começar o sacrifício incruento, e o órgão acompanhar as
orações com as suas harmonias. Entremos.
Não! Refuljamos! Orações, salmos, harmonias, luzes,
incenso, sacerdotes, povo, nada disso há aí. Há só as trevas da nave pesando
sobre as trevas dos sepulcros. O velho templo é um palheiro do Comissariado...
E quem fez isso? Foi o vereador boçal de um concelho
obscuro? Não. Foi o governo de uma nação que se diz civilizada, ou que pelo
menos toma assento no convívio das nações da Europa.
Quase contíguo à igreja palheiro existe outra, modelo
em muitas coisas da mais elegante arquitetura ogival. É a do extinto convento
de São Francisco. Lá, na parte da nave sobposta ao coro, o túmulo da infanta D.
Constança, cujos lavores se vão diariamente quebrando e obliterando, serve de
cabide a selins e arreios de cavalaria. Aplicação igual e igual fim vai tendo o
del-rei D. Fernando, que anteriormente os frades tinham transferido da nave
para o coro.
Com estes exemplos do governo não é de admirar que aí
mesmo em Santarém se derribem as portas das velhas muralhas para calçar as
ruas, ou que na antiga vila da Torre de-Moncorvo, hoje Moncorvo só, a antiquíssima
torre que dera origem e nome à povoação, fosse deitada por terra com o mesmo
intuito; que, enfim, se trate de dar às muralhas da Guarda idêntico destino.
Aqui o vandalismo confunde-se com a demência. Na Guarda, ninho d'águias,
colocado no cimo de um cerro de granito, a pedra vai calçar a pedra. Dantes, no
inverno, o viver ali era bem duro, quando os edifícios estavam abrigados atrás
da sólida cerca. Agora, o vento gelado que passa pelas cumeadas da serra da
Estrela virá precipitar-se rugindo por aquelas ruas meio desertas e tornar inabitável
a povoação. A Guarda, que em si própria é um monumento, e que encerra uma
catedral magnífica, estará no decurso, talvez, de poucas décadas convertida num
covil de feras.
Dos males que os séculos passados legaram ao presente
nenhum foi tal fatal como a ignorância em que deliberadamente se conservavam as
multidões. Essa ignorância que há de levar anos, talvez séculos, a dissipar,
era incomparavelmente menos nociva em épocas de servidão, quando o poder
absoluto, concentrado em poucas mãos, podia facilmente reunir num foco as luzes
intelectuais do país e aproveitá-las desassombradamente na solução das questões
de administração. Hoje que o vassalo se converteu em cidadão; hoje que os erros
e preocupações das inteligências incultas se despenham de todos os lados na
torrente da opinião pública e se confundem de modo inextricável com as ideias
sensatas; hoje, finalmente, que é necessário não afrontar essa torrente, nem
querer fazê-la refluir à força, os resultados fatais da ignorância são
incomparavelmente mais difíceis de evitar e remediar. Se as portas dos ministérios
estivessem fechadas para os arrasadores professos, e fosse exigível dos
pretendentes a pastas uma justificação de que, nem pelo lado paterno, nem pelo
materno, descendiam de algum soldado de Gensérico, ainda assim, dada a competência
dos magistrados municipais, e o valor moral que resulta para os seus atos da
sua origem eletiva, um governo ilustrado, mas que não quisesse ultrapassar os
limites da própria autoridade, não poderia talvez reduzir completamente ao
silêncio o fragor das demolições que reboa por todos os ângulos do reino. O
camartelo é o enlevo, o bezerro d'ouro, o Moloque, o Baal da nossa burguesia.
Um camartelão deitado sobre uma ara de pedra em frente dos paços do concelho
deveria substituir os seculares pelourinhos (também já, em parte, roídos ou
despedaçados), como símbolo do poder municipal.
Imaginemos, de feito, cinco, seis, ou mais figurões
assentados ao redor duma banca, falando sem juízo, às vezes sem decência,
sempre sem gramatica, sobre a administração do município, e ponderando os
proveitos e aformoseamentos que para este hão de resultar da destruição de um
monumento da arte ou da história. Lá pede a palavra um deles, lojista gordo,
ensebado, vermelho, quase-virtuoso, e cujas unhas e cuja barba estão acusando a
tesoura e a navalha de vergonhoso desleixo no desempenho das respectivas
funções. É o Demóstenes do conciliábulo. Aprendeu a ler pela História de Carlos
Magno e dos Doze Pares, e é assinante das traduções de Paul de Kock, para se
exercitar. Um palácio, um muro, uma igreja de eras remotas fazem-no estremecer
de horror. Ao lado de cada ameia do castelo ermo lhe parece enxergar um
cavaleiro coberto de armas ferrugentas; em cada torre crê ouvir soar as
badaladas da campa feudal. Escutam com assombro os outros cidadãos vereadores o
Mirabeau lojista. Os ânimos comovem-se: os cabelos arrepiam-se. A sentença
contra o monumento vai ser fulminada. Há um instante de terrível silêncio. O
presidente pede votos. —"A terra": — diz o homem gordo. —"A
terra": —vão repetindo com voz solene os outros membros do Sanedrim. Então
o secretário lavra o fatal acordam. Por entre aquelas letras, logo à nascença
amarelas, e escritas com pena de duvidosa classificação ornitológica, surge majestosa
no meio de cada palavra uma letra capital, como que protegendo as que a
precedem e seguem. Acabou-se enfim a magistral composição: o erudito secretário
estende o papel ao presidente, que, enlevado na voz melodiosa da consciência a
asseverar-lhe que fez desmarcado serviço à Pátria, o recebe às avessas, e lhe
lança no topo, com ademã desdenhoso, a cruz de seu sinal. Passa aos outros
juízes a ata fulminante. O lojista que, por incessantes exercícios ginásticos
nas páginas de Paul de Kock, já soletra com rapidez vertiginosa, e conhece num
relance o erro do presidente, cujo pundonor literário não ousa, aliás, ferir
advertindo-o do lapso, escreve o próprio nome, em menos de dez minutos, no seu
devido lugar, e debaixo da garatuja do Mirabeau burguês, os outros magistrados
municipais vão plantando as respectivas cruzes num devoto calvário. Enfim, o
secretário assina, e o crime está consumado.
Torre, muro, paço, ou o que quer que sejas, cuja ruína
foi decretada, para ti já não há salvação. Amanhã, nos teus lanços
desconjuntados, no teu cimento desfeito, nas tuas pedras estouradas, nos teus
fundamentos revoltos, estará escrito à ponta de picareta e de alavanca a
palavra fatal —"a terra!"— extraída do calvário municipal.
Mas — dir-se-á — que quereis que se faça acerca dos
monumentos? Que queremos que se faça?! Que se deixem em paz. Não pedimos
museus; porque estes não são, digamos assim, senão necrópoles, em relação à
arquitetura. Depois, em muitos casos, os monumentos não se transportam, nem
cabem lá. Os fragmentos de um edifício, tirados do seu lugar, sem destino, sem
união, são mortos; são cinza e pó de cadáveres. Reúnam-se em bibliotecas e em
galerias os livros e os quadros que não foram roubados, estragados ou
abandonados por ignorância crassíssima; mas as pedras só pedem repouso. Que os
representantes do país lhe salvem os seus títulos mais nobres. Haja no seio do
parlamento uma voz que se alevante enérgica a favor do passado. Essa voz achará
eco em todos os distritos do reino, porque em todos eles há homens sisudos e
peitos generosos. Apareça uma lei acerca do assunto, eficaz pela sanção do
castigo, já que, num século corrompido e de decadência, as palavras — pundonor
e glória —vão insensivelmente passando para o glossário dos arcaísmos.
Entenda-se, enfim, que nenhum monumento histórico pertence propriamente ao
município em cujo âmbito jaz, mas sim à nação toda. Por via de regra, nem a mão
poderosa que o ergueu regia só esse município, nem as somas que aí se
despenderam saíram dele só, nem a história que transforma o monumento em
documento é a história de uma vila ou cidade, mas sim a de um povo inteiro. Se,
por exemplo, aos habitantes de Guimarães, de Coimbra, do Porto ou de Lisboa não
importa que desapareçam as mudas testemunhas dos fatos que aí se deram, dos
homens que aí passaram; se não lhes importa que o viajante vá examinar os
monumentos que os livros dizem existir aí, e que, achando-os convertidos em
pavimentos das ruas, fuja espavorido temendo alguma frechada ou azagaiada,
supondo-se, por ilusão momentânea, nos sertões ínvios da Cafraria; se não curam
da própria reputação, consentindo que os seus eleitos vão assentar praça póstuma
nas extintas legiões de Átila, e que o seu clero se filie na seita dos modernos
iconoclastas, ao menos que o governo e o parlamento não deem ao mundo documento
de igual ignorância e barbaria, mas acudam ao que ainda resta. Que uma lei
salvadora aposente de vez os picões e alviões e alavancas que tantas esculturas
tem roçado, tantas campas profanado, tantas colunas quebrado e tantas torres,
muros, ameias, campanários, arcarias, galilés derribado e desfeito.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1838, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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