― Xerez? Cock-tail?
― Madeira.
Eram 7 horas da noite. Na sala cheia de espelhos
da confeitaria, eu ouvia com prazer o Pessimista, esse encantador romântico, o último
cavalheiro que sinceramente odeia o ouro, acredita na honra, compara as virgens
aos lírios e está sempre de mal com a sociedade. O Pessimista falava com muito juízo
de várias coisas, o que quer dizer: falava contra várias coisas, e eu ria, ria desabaladamente,
porque as reflexões do Pessimista causavam-me a impressão dos humorismos de um clown americano. De repente, houve um movimento
dos criados, e entraram em pé de vento duas meninas, dois rapazes e uma senhora
gorda. A mais velha das meninas devia ter 14 anos. A outra teria 12 no máximo. Tinha
ainda vestido de saia entravada, presa às per nas, como uma bombacha. A cabeça de
ambas desaparecia sob enormes chapéus de palha com flores e frutas. Ambas mostravam
os braços desnudos, agitando as luvas nas mãos. Entraram rindo. A primeira atirou-se
a uma cadeira.
— Ufa! que já não posso!...
—
Mas que pândega!
— Não é, mamã?...
— Eu não sei, não. Se o seu pai souber...
— Que tem? Simples passeio de automóvel.
A menor, rindo,
aproximou-se do espelho.
— Mas que vento! Que vento! estou toda despenteada...
Mirou-se. Instintivamente olhamos para o espelho,
era uma carita de criança. Apenas estava muito bem pintada. As olheiras exageradas.
As sobrancelhas aumentadas. Os lábios avivados a carmim líquido faziam-lhe uma apimentada
máscara de vício. Era decerto do que gostava, porque sorriu à própria imagem, fez
uma caretinha, lambeu o lábio superior e veio sentar-se, mas à inglesa, trançando
a perna:
— Que toma?
— Um chope.
A outra exclamou logo:
— Eu não, tomo uísque, whisky and caxambu.
—
All right.
—
E a mamã?
— Eu, minha filha, tomaria um groselha. O senhor
tem?
— Esta mamã com os xaropes!
E voltou-se. Entrava um sujeito de cerca de 40 anos,
o olho vítreo, torcendo o bigode, nervoso. O sujeito sentou-se de frente, despachou
o criado, rápido, e sem tirar os olhos do grupo, em que só a pequena olhava para
ele, mostrou um envelope por baixo da mesa. A pequena deu uma gargalhada, fazendo
com a mão um sinal de assentimento. E emborcou com galhardia o copo de cerveja.
Nem a mim, nem ao Pessimista aquela cena podia causar
surpresa. Já a tínhamos visto várias vezes. Era mais um caso de precocidade mórbida,
em que entravam com partes iguais o calor dos trópicos, e a ânsia do luxo, e o desespero
de prazer da cidade ainda pobre. Aqueles dois rapazes, aliás inteiramente vulgares,
para apertar, palpar e debochar duas raparigas, tinham alugado um automóvel, mas
tendo nele a mãe como contrapeso. A boa senhora, esposa de um sujeito decerto sem
muito dinheiro, consentira pelo prazer de andar de automóvel, pelo desejo de casar
as filhas, por uma série de razões obscuras em que predominaria decerto o desejo
de gozar uma vida até então apenas invejada. O homem nervoso era um desses caçadores
urbanos. A me nina, a troco de vestidos e chapéus, iria com ele talvez...
— É a perdição! bradou o Pessimista.
— É a vida...
— Você é de um cinismo revoltante.
— E você?
Pessimista olhou-me:
―
Eu, revolto-me!
―
E o que adianta
com isso? ― Satisfaço a consciência...
―
Que é uma senhora
cada vez mais complacente.
O Pessimista enrouqueceu de raiva. Eu, com um gosto
familiar, tirei o chapéu às meninas — que imediatamente corresponderam ao cumprimento.
— Oh diabo! conhecei-as!
— Nunca as vi mais gordas.
— E cumprimenta-as ?
— Por isso mesmo: para as conhecer. É que essas duas
meninas são, meu caro Pessimista, um caso social — um expoente da vida nova, a vida
do automóvel e do velívolo. O homem brasileiro transforma-se, adaptando de bloco
à civilização; os costumes transformam-se; as mulheres transformam-se. A civilização
criou a suprema fúria das precocidades e dos apetites. Não há mais crianças. Há
homens. As meninas, que aliás sempre se fizeram mais depressa mulheres que os meninos
homens, seguem a vertigem. E o mal das civilizações, com o vício, o cansaço, o esgotamento,
dá como resultado as crianças pervertidas. Pervertidas em todas as classes; nos
pobres por miséria e fome; nos burgueses por ambição de luxo; nos ricos por vício
e degeneração. Certo, há muitíssimas raparigas puras. Mas estas, que se transformaram
com o Rio, estas que há 10 anos tomariam sorvete de olhos baixos e acanhadas, estas
são as modern girls.
— Um termo inglês...
— Diga antes americano — porque americano é tudo
que nos parece novo. Antigamente tremeríamos de horror. Hoje, essas duas pequenas
são quase nada de grave. Semivirgens? Contaminadas de flerte? Sei lá! É preciso
conhecer o Rio atual para apanhar o pavor imenso do que poderíamos denominar prostituição
infantil. Este é o caso bonito — não se aflija — bonito à vista dos outros, porque
os outros são sinistros. O que Paris e Lisboa e Londres, enfim, as cidades europeias
oferecem tão naturalmente, prolifera agora no Rio. A miséria desonesta manda as
meninas, as crianças, para a rua e explora-as. Há matronas que negociam com as filhas
de modo alarmante. Há cavalheiros que fazem de colecionar crianças um esporte tranquilo.
A cidade tem mesmo, não uma só, mas muitas casas publicamente secretas, frequentadas
por meninas dos 12 aos 16 anos. Ainda outro dia vi uma menina de madeixas caídas
e meia curta. Olhou-me com insolência e entrou numa casa secreta, que fica bem em frente ao ponto de
carros elétricos em que me achava. Estas talvez não façam isso ainda, estas são
as eternas pedidas.
— As eternas pedidas?
— Criaturinhas como o trópico, o vício das ruas,
o apetite do luxo que não podem ter, criaturinhas que desde o colégio, desde os
10 anos, se enfeitam, põem pó de arroz, carmim, e namoram. O lar está aberto aos
milhafres, como se diria antigamente nos dramalhões. Elas têm um noivo, quando deviam
estar a pular corda. É um rapaz alegre, que lhes ensina coisas, e pitorescamente
lhes dá o fora tempos depois, desaparecendo. Logo aparece outro. As meninas, por
vício e mesmo porque lhes pareceria deprimente não ter um apaixonado permanente,
recebem esse e com ele contratam casamento. Ao cabo de dois ou três meses a cena
repete-se e vem terceiro, de modo que é muito comum ouvir nas conversas das pobres
mamãs: — “A minha filha vai casar”. — “Ah, já sei, com aquele rapaz alto, louro?”
— “Não. Agora é com aquele baixo, moreno, que em tempos namorou a filha do Praxedes...”
— Você é imoral...
―
Estou a descrever-lhe
um mal social apenas. Não é assim? É. São as
modern girls. E o mesmo fenômeno se reproduz na alta sociedade, com mais elegância, sem a declaração de noivado
oficial, mas com um flerte tão íntimo que se teme pensar não ser muito mais... Quais
as ideias dessas pobres criaturinhas, meu caro Pessimista? Coitaditas! Ingenuidade,
a ingenuidade do mal espontâneo. Elas são antes vítimas do nome, da situação, do
momento, da sociedade. Nenhuma delas têm plena convicção do que pratica. E algum
de nós, neste instante vertiginoso da cidade, tem plena consciência, exata consciência
do que faz?
— Estamos todos malucos.
— Di-lo você! O fato é que de repente nos atacou
uma hiper-fúria de ação, um subitâneo desencadear de desejos, de apetites desaçaimados.
Não é vida, é a convulsão de um mundo social que se forma. O cinismo dos homens
é o cinismo das mulheres, seres um tanto inferiores, educados para agradar aos homens
— vendo os homens difíceis, os casamentos sérios, o futuro tenebroso. As modern girls! Não imagina você a minha pena
quando as vejo sorrindo com impudência, copiando o andar das cocotes, exagerando
o desembaraço, aceitando o primeiro chegado para o flerte, numa maluqueira de sentidos
só comparável às crises rituais do vício asiático!... Elas são modernas, elas são
coquetes, elas querem aparecer, brilhar, superar. Elas pedem o louvor, o olhar concupiscente,
como os artistas, os deputados, as cocotes; as palavras de desejo como os mais alucinados
títeres da luxúria. E tudo por imitação, porque o instante é esse, porque o momento
desvairante é de um galope desenfreado de excessos sem termo, porque já não há juízo...
— Virou moralista?
— Como Diógenes, caro amigo.
Entretanto, o grupo das meninas e dos rapazes acabara
as bebidas. Os rapazes estavam decerto com pressa de continuar os apertões nos automóveis.
— Vamos. Já 20 minutos.
— Não quer mais nada, mamã?
— Não, muito obrigada.
— Então, em marcha.
— Para a Beira-Mar!
— Nunca! interrompeu um dos rapazes. Vou mostrar-lhes
agora o ponto mais escuro da cidade: o Jardim Botânico. Faz-se tarde. Olha teu pai,
menina...
— Qual! Em 10 minutos estamos lá! É um automóvel
esplêndido.
— Partamos.
O bando ergueu-se. Houve um arrastar de cadeiras.
Saiu a senhora gorda à frente. A menina mais velha seguia com um dos rapazes, que
lhe segurava o braço. A menina menor também partia acompanhada do outro, que lhe
dizia coisas ao ouvido. Ficamos sós — eu, o Pessimista e o homem nervoso da outra
mesa, o tempo, aliás apenas para que o homem nervoso se levantasse, e, tomando de
um lenço que ficara esquecido na mesa alegre, o embrulhasse com a sua carta... A
menor das meninas voltava, rindo, a dizer alto para fora:
— Esperem, é um segundo...
Correu à mesa, apanhou o lenço com a carta, lançou
um olhar malicioso para o homem, e partiu lépida, sem se preocupar com o nosso juízo.
— Essas é que são as ingênuas? berrou o Pessimista.
— Há ingênuas e ingênuas. Ingênuas xarope de groselha...
—
E ingênuas whisky and caxambu?
Exatamente. Esta, porém, é menos que uísque, e mais
que xarope — é o comum das modern girls,
o que se pode chamar...
— Uma ingênua cock-tail?
— E com ovo, excelente amigo, e com ovo!”
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João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
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