Minha
imagem longínqua...
Hoje, não podendo mais suportar a
suave e pungente tortura da saudade, fui, como beneditino que, na penumbra da
sua cela, adora fervorosamente o santo escolhido para as suas íntimas devoções,
ler, no silêncio do jardim, à sombra daquela mesma árvore que guarda, na
esperança das suas folhas, todo o verdor do nosso afeto — a tua última carta.
A tua alma, por certo, sentia o êxtase
profundo e emotivo com que o amor — dádiva celestial — inebria, nesses
instantes, as almas como a tua.
A tristeza do ambiente que me
envolvia, conjugando-se com a ternura da tua carta, evocava-me a tua sonhadora
figura. Oh! Tu não podes imaginar quantos suspiros ansiosos subiram ao céu,
confundidos com os meus, vindos da alma de todas as coisas que assistiram,
serenas, ao desabrochar do nosso idílio! Lá, aonde eu ia, todas as tardes, na
comunhão das rosas, do silêncio e das águas, receber a hóstia luminosa do teu
beijo, lá ainda perduram a sombra da tua graça, o ritmo dos teus passos, a aura
da tua beleza, e todas as coisas, por isso, quando me vêm, comunicam-me ao
coração restos da harmonia da tua voz, que guardaram avaramente... E eu,
enlevado, ouço o teu nome sonoro proferido pela boca invisível das coisas
circunstantes. Ah! Só então me acudiu à memória que duas almas, impelidas por
uma força misteriosa, caminham uma para a outra como dois perfumes diferentes
que vão noivar numa mesma corola, e que o lugar que assiste a esse ato se
diviniza... Ah! Fosse dado ao que ama perpetuar todos os momentos excelsos de
su’alma, e eu arrancaria, por certo, a tua imagem do meu coração, para, à luz
branda de um crepúsculo outonal, que desce como uma eucaristia de púrpura sobre
o jardim silente, colocá-la sobre a mais alta das árvores que te ouviram!...
A distância que nos separa mais
revigora o nosso afeto.
Nas noites em que nem a
imponderabilidade do silêncio consegue penetrar no meu ser, desolado, como um
viajor perdido que tentasse decifrar o enigma de uma encruzilhada, interrogo,
na expectativa de que de ti me venha uma boa nova, — a estrela que no céu mais
brilho expande.
Quando, nas minhas solitudes, penso em
ti, ateia-se em meu peito a chama de uma esperança nova. És a minha Ânsia que
se fez Mulher, o meu sonho de artista animado e tangível. Esse teu sorriso que
Da Vinci imortalizou nos lábios da sua inatingível Gioconda, esse teu olhar que
é o mesmo que Rafael furtava à sua Fornarina para as santas, sinto-os, qual
mensagem longínqua da tua beleza, pousarem sobre mim nas horas de mesto
solilóquio e, como um bálsamo diáfano, acariciarem-me interiormente.
Todos os pensamentos bons, que em meu
cérebro se anicham, não são meus: és tu que, transfigurada em prece, mos envias
como um ex-voto de candura. Meu triste coração de sonhador, que fechado esteve
durante toda uma longa e dolorosa estação invernal, abre-se agora, festivo,
para receber a primavera exultante do teu amor.
No fundo escuro das minhas cogitações,
passas, branca e suave, como um floco de arminho perdido, adejando numa
penumbra, levado pela brisa... Nas horas de angústia, quando a realidade pesada
e indistinta, tentando encarcerar-me, levanta, em torno de mim, uma muralha de
tédio, a minha alma, de joelhos, implora ardentemente a proteção da tua: quedo,
então, estático e deslumbrado, ante a docilidade solícita do teu socorro! E,
num amplexo veemente, efusivo, as nossas almas, triunfando sobre os instintos
comuns que escravizam a matéria, alam-se, em hosanas de júbilo, para as esferas
radiantes, onde a dulia dos anjos, em louvor ao nosso glorioso esponsalício, se
transforma num epitalâmio de luz!
Revista
"A Cigarra", 16 de abril de 1918.
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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