Meu Fantasma
Fantasma
cruel, que me não deixas! Ora te sinto no cérebro desordenado, neste meu
cérebro esbordante de confusos retalhos de ideias, ora te sinto fremente no
sussurro intérmino do meu sangue a arder ou no intérmino zunido de meus nervos
a vibrar! E, se de mim sais, por um momento, agora, logo, — enxergo-te, sem te
ver, nas sombras bailantes do meu quarto, e sempre cruel, sempre com teus
dardos inquietadores empeçonhados de imaginação —, cravados e rebulidos na
minha alma hiperestesiada!
Fantasma
cruel, que me não deixas! vai-te!
Que
mal estranho me aflige e me apavora? Que mal é este que te consente a sanha
enraivecida e te amplia soturnamente a maldição das garras, ó Fantasma atroz?
É
a soledade apreensiva, eu bem no sei. É de abandono que eu estou doente.
Se
nesta indecisa treva, feita de oscilantes manchas negras, tão só riscada por um
traço de luar, que fosforeja de través na minha cama, num fio de luz funérea, —
se neste silêncio, que apenas o meu zumbido interior enche pavorosamente, eu
tivera junto de mim a mão da ternura que me afagara o coração e o cérebro, —
adeus, Fantasma cruel, maldito Fantasma, que no teu rasto levarias o meu
sobressaltado tormento, a minha febre de solidão!
Tu
para que vens atulhar a minha vida interior — de pedaços incongruentes,
inurdíveis, de ideias, que se entrechocam informes, num fervente turbilhão
enublado, sem que eu as possa reproduzir, nem sequer apreender? Para que me
levas, como num vendaval de febre, por imaginárias paragens, entre sons, cores,
formas, ritmos, perfumes, luares inéditos, que só dentro em mim se sucedem numa
desfilada louca, numa ordem louca, mas numa “ordem”, e que na minha consciência
não deixam qualquer imagem, qualquer impressão, qualquer vestígio, quanto mais
um fio coordenador?
Quero
ver esses ineditismos, quero vê-los interiormente embora, senti-los, registrá-los,
e não os encontro sequer! Esvoaçam como aromas vagos, como sombras do
crepúsculo, como exalações estonteantes de carnes virginais...
Que
amnésia singular é esta?! Por que me laceras, Fantasma cruel e maldito, neste
suplício de Tântalo?
E
tu falas-me, tu pensas, tu raciocinas, tu mostras-me as tintas, as linhas, os
acordes para descrever; mas não decifro a tua voz, não decifro o teu
pensamento, não suspeito do teu raciocínio, não posso perceber o que mostras:
tudo que vem de ti, Fantasma enigmático, reboa inapreensível dentro de mim, no
âmago da minha própria alma que te gerou! Que tu, Demônio que me não deixas, és
filho da minha alma, filho de mim mesmo! És como a vaporação que da terra sai
ao sol da manhã, e que na terra só deixa uma sombra vaga e fugaz! És filho de
mim mesmo e, como um doido, não te conheço nem entendo!
Queria
repousar. Esta ebulição mental escalda-me a cabeça. A loucura, por certo,
agarra-me o cérebro nas suas candentes unhas de ferro.
E
estendo-me no leito; amorteço os músculos; regulo a respiração num ritmo
vagaroso, de sono; cerro os olhos brandamente; disperso apreensões; arranco, autossugestionado,
os cravos que me rasgam o cérebro; alheio-me do murmúrio do meu sangue e dos
meus nervos; digo a mim mesmo que o dia não tarda, que não tarda a luz, a boa companheira
que me curará desta doença de abandono...
E
como o pensamento e o sentimento determinam posturas e gestos orgânicos,
simultâneos, correlacionados, — a minha atitude em repouso determinará a paz da
minha alma.
Já
não quero saber de ti, Fantasma endemoninhado! Já me não remexo inquieto.
Esqueci os males, esqueci tudo. Vou-me submergindo conscientemente num
profundo, vitorioso esquecimento. Esta onda avassalante de agonia que por mim
sobe agora — não é nada. Já te não sinto, Fantasma! Esta lava que jorrou agora
tumultuante dentro do meu crânio, em furioso remoinho de áscuas, não é nada,
não é nada! Mas abafo. Respiro fundo, sôfrego, desordenadamente. Abro os olhos.
Na cama fosforeja o traço de luar. A escuridão é feita de placas, nódoas
trementes, como um xisto macabro. As paredes, julgo que se aproximam num baile
hediondo. Sinto-me na estreiteza gelada e negra de um túmulo. Respiro mais
fundo, mais sôfrego, mais desordenadamente. De fora nem um ruído, nem um sinal
de vida. Tudo trescala a morte. Falo. A minha voz soa-me cavamente, como da
boca de um sepulcro. Não me posso erguer. Tenho o corpo chumbado ao leito úmido. Se eu me levantasse! Erguer-me-ia, abriria as janelas, sondaria a noite
iluminada, reanimar-me-ia com a lua já perto do horizonte, com o luar inundando
o meu quarto... E faço em espírito o que penso. Levanto-me, abro as janelas às
escâncaras, sinto a frescura da noite cheia de luar, vejo a lua já perto do
horizonte, ondas de claridade engolfam-se no meu quarto... Estou porém chumbado
ao leito. A minha vontade não se completa: falta-lhe a execução.
Eu
quero todavia repousar. Este sobressalto agudo que tive, ao cabo, foi o
estremeção último de quem vai enfim repousar, como a crise revolta de um
epiléptico antes da paz de um adormecimento.
Tomo
a atitude física e fisiológica do sono. Cerro os olhos; amorteço o corpo;
desanuvio o cérebro; respiro pausado... — Assim quedo, imóvel, lasso, absorto
numa atmosfera tranquila à força de vontade, embalado muito embora num zunir
sem fim...
Abro
os olhos. Atento na alcova. A luz de alva já se entorna subtilmente na
escuridão.
É
uma aguada de luz, desigual e baça, que se dissolve
nas manchas negras que dançam no quarto. Já tremem as paredes quando as
lobrigo, olhadas com fixidez, e, sujamente enevoada, já lhes adivinho a
brancura.
Bem-vinda
luz, companheira amiga! Esvai-se-me pouco e pouco o mal do abandono.
Bem-vinda
luz, terna companheira amiga! Retomo a posição do descanso, e outra vez, com a
tranquilidade do corpo, eu provoco a tranquilidade da alma: agora sem esforço,
naturalmente, esperançado na luz que chega, — e fico-me em sossego, arrojando o
sangue do cérebro, projetando-o por autossugestão, por vontade, para os pés. Não
quero cismar, não quero sentir, não quero entender mais contigo, Fantasma!
Vai-te! Já perdes a força progressivamente, — escorraçado, batido, desfeito por
esta gloriosa luz!
Não
te vás, não! Anda cá, Fantasma! Agora que estás enfraquecido, que retraíste as
garras empeçonhadas de imaginação, agora vem cá! Na minha calma, posso
ouvir-te, posso já entender-te. Vem embalar-me neste doce caminho para o sono.
Percebo-te já, Fantasma! Atendo à tua voz, ao teu pensamento, ao teu
raciocínio, à tua expressão. Estamos na normalidade, na vulgaridade, — e sei
reproduzir-te, pobre de mim!
Ris-te?
Tu, diabólico, maldito, cruel, só na minha solidão doente me estonteias com o
que nunca foi ouvido, nem visto, nem sonhado. Procuro então, sedento, ansioso,
ir contigo, fixar as originalidades que me entremostras em velados relâmpagos
de arte inédita, e não as topo, não lhes encontro sequer o rasto, a sombra,
porque então, Fantasma, andas de camarada com o Pavor, com a Asfixia e com a
Loucura, e é aterrado, tresvariado, com uma pedra de túmulo a esmagar-me o coração,
com um capacete em brasa a espremer-me o cérebro, que eu te acompanho num
deslumbramento. E levas-me a alturas, a profundidades, para que não tenho
sentidos. Arrastas-me, numa vertigem delirante, para fora do campo da minha sensibilidade.
Pobre de mim! pobre de mim sempre! E aí, Fantasma, nesse mundo informe que eu
não sei adivinhar, deve ocultar-se a Beleza a que aspiro, o Novo, o Inaudito,
qualquer coisa que esmague e assombre!
Ah,
não me deixes, Fantasma! Não me deixes nunca! Nunca!
Descansa
agora, marasmado por esta luz que eu, cobardemente, almejei! Descansa, para à
noite redobrares de fúria e me arrebatares nos teus voos ferozes pelas doidas
esferas da Imaginação!
Quero-te
sempre comigo! Quero a doença do abandono, o terror da morte, a loucura
satânica; quero que me vertas no coração o fel das piores ansiedades, — porque,
Fantasma, quero entender a estesia que se esconde no teu delírio noturno, quero
ir contigo, voando, voando, cada vez mais alto, cada vez mais longe, a ver se
num instante supremo, numa fulguração reveladora, inesperadamente se rasga o
mistério do Ignorado, e à minha consciência ele surge afinal capaz de fixação!
Quero ir logo, amanhã, depois, sempre, nas tuas garras peçonhentas de fantasia,
em formidáveis desfiladas tenazes, arrostando os dragões raivosos da Asfixia,
da Loucura e do Pavor, a ver se, enfim! num ímpeto de raio, alcanço a torre encantada
onde sonha a princesa Inédita!
Fantasma,
Fantasma bendito, nunca me deixes!
Viana-do-Castelo, dezembro de 1916.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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