É assim a história duma das
mulheres.
"Tive sempre frio. Esta
impressão de ter os ossos gelados vem de muito longe, de pequenina.
Nunca tive mãe, nem
ninguém. Fecho os olhos e só vejo o Asilo, os corredores úmidos, o dormitório,
o frio refeitório abobadado de granito. Toda aquela pedra parecia sepultar-nos.
Também guardo de pequenina
esta impressão: a vontade que tinha de beijar, sem ter ninguém a quem dar
beijos. Todos os que eu conhecia eram hirtos.
Vou ver se me lembro bem...
Primeiro é tudo confuso: depois vai-se espancando a névoa e eu recordo a triste
existência do Asilo.
Noite ainda nos erguíamos
para rezar. Tocava um sino. Mal sabíamos andar, trôpegas como velhinhas. A
algumas era preciso vesti-las. A Irmã ralhava se nos demorávamos. Aquele sono
da manhã de que nos arrancavam era como a cova e o esquecimento. Antes nos
deixassem dormir para sempre. Para que vem a gente ao mundo?
Todas, tão pequeninas,
tinham o ar de serem já crescidas. E não sei que de amargo, de refletido, de
sofrimento, de experiência da vida. Brincavam sem risos pelos cantos, com
bichos, com pedrinhas. Uma vez uma disse alto:
– Ó mamã!...
E foi um escândalo. Onde
aprendera ela, que não tinha mãe, a pronunciar aquela palavra?
Quereis crer? Só tenho esta
imagem: pareciam velhinhas recolhidas, tristes por não terem filhos.
E no entanto eu curto
saudades dessa negra existência do Asilo.
Na cerca havia um curral
com vacas, que nos davam um leite aguado. Duma vez uma, já eu era grande, toda
a noite gemeu. Por piedade perguntei ao hortelão o que ela tinha.
– Soidades por lhe levarem
o filho. E há mães que os deitam fora!
Havia as grandes, as médias
e as pequenas. As grandes eram desajeitadas, de mãos enormes, com vestidos
negros e grossos. E todas eram feias. Faltava-lhes não sei que graça, que só
existe nas que têm mãe, por mais feias que sejam: seres de abandono, plantas
que vivem estioladas...
Às vezes o senhor provedor
visitava-nos. Era um homem seco, ríspido, de cara rapada, que nos vinha lembrar
que vivíamos por esmola:
– É preciso que se recordem
disto: a sua vida devem-na aos benfeitores.
Ele próprio era um
benfeitor. O seu retrato lá estava colocado ao pé dos outros, com o mesmo
caixilho fúnebre. Era o último da sala enorme, gelada, onde os passos ecoavam,
toda cheia de retratos em torno. Os benfeitores!... – Dir-se-ia uma galeria de
afogados, todos solenes, secos, hirtos, de lábios finos e ar de cerimônia.
Todas as noites as Irmãs
nos faziam rezar por eles, a quem devíamos o pão e a vida.
Era proibido falar, a não
ser às horas do recreio, e isto explica talvez os vincos que todas tínhamos,
ainda as mais pequeninas, aos cantos da boca.
O melhor sítio do Asilo era
a enfermaria, por isto: era mais quentinho; dava-lhe o sol todo o dia e viam-se
as árvores da cerca; e por a Irmã enfermeira ser a única que
tinha coração e que gostava de nos beijar. Todas éramos amigas dela.
É curioso. Lembro-me das
grandes árvores que de lá se avistavam, mas só as recordo descarnadas e
despidas, num céu pálido. Sempre no inverno.
Tenho ainda a impressão de
ter os joelhos frios e doridos. Nunca mais consegui aquecê-los.
O pão do Asilo tinha um
sabor que nunca encontrei em outro pão, por mais desgraçados que fossem os meus
dias: um gosto amargo e requentado. E em todo o refeitório havia um cheiro idêntico.
Todo, até o Cristo, até o caldo aguado, a mesquinha ração que nos davam,
parecia dizer-nos: "Olhai que viveis por caridade! Habituai-vos à desgraça!"
Quereis crer? Muito mais
caridoso seria afogar as crianças que não têm mãe. Livrá-las-eis do Asilo, da
caridade, da vida.
No dormitório tudo era
regular, branco e monótono, e, apesar de branco, fúnebre. O sol, que entrava
pelas janelinhas, abertas numa muralha de prisão, era pálido e, mesmo de verão,
parecia um sol de inverno; as camas, todas de branco, alinhavam-se encostadas
às paredes caiadas e nuas; só no fundo, por cima da cama da Irmã, um Cristo de
louça azul manchava aquela brancura.
O recreio não era na cerca
do convento. Brincávamos sem barulho no claustro. Parece que tinham medo de nos
mostrar árvores e sombras. O claustro...
Por cima via-se sempre,
engastado no beiral, um retângulo do céu, e a sombra geométrica estendia-se cá
em baixo. Dum lado era sempre frio e úmido: as paredes tinham musgo. Ao meio do
claustro um golfinho de pedra deitava gota a gota, pelos dentes cariados, um
fio de água frígida. De tudo aquilo saía uma paz transida de sepulcro. Só
andorinhas cortavam em cima o céu, mas duma vez que em março vieram, afadigadas
e chilreando, fazer ninho no beiral, as religiosas deitaram-lhos abaixo.
Destruí-los por quê? Os restos, farrapos de penugem quente, ternos diríeis,
andaram por muito tempo no claustro. Passaram de mão em mão com alvoroço.
Algumas das asiladas cismavam, olhando-os: as mais pequeninas brincavam com
eles. Uma disse:
– É um berço...
Destruí-los por quê? Para
que não soubéssemos que as aves têm mãe e cuidam dos filhos? Para que não
tivéssemos saudades das nossas, que não conhecêramos? Para que ignorássemos?...
Mas que candura a das Irmãs se era por isto! Nós pressentíamos, adivinhávamos
tudo aquilo e quando uma das mais pequeninas explicou às que faziam roda: – É o
berço dos passarinhos... – quantas de nós já tinham cismado num berço assim
agasalhado e fofo!...
Daquela vida idêntica,
seca, dura, vinha um dia, quando éramos grandes, arrancar-nos o provedor.
Era um dia solene. Íamos
partir. Quem precisasse duma criada que comesse pouco procurava-a no Asilo. Uma
caderneta, papéis, alguns trapos, camisinhas curtas e o discurso do senhor
provedor:
– Sustentou-as este Asilo
por caridade. Se vivem, devem-no aos benfeitores. Ora agora lembrem-se sempre
nas suas orações do bem que lhe fizeram. E na casa que as recebe sejam
agradecidas. Tomam-nas por esmola...
E assim, com uma trouxa
debaixo do braço. partíamos para a vida.
Oh! minha mãezinha!"
---
Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...