20 de janeiro de 1847
Teatro de São Pedro de Alcântara
Lindíssimo fogo de vistas, em benefício do Sr. Marinangeli.
Benefício do Sr. Franchi. Algumas observações.
Lia-se, há dias, nos jornais da Corte, nos anúncios de espetáculos, o
seguinte: Lindíssimo divertimento da
companhia italiana, em benefício do primeiro tenor Marinangeli. Haverá o Barbeiro de Sevilha, com os competentes recheios para fazer o lindíssimo divertimento mais digno do
respeitável público, a quem se promete muito agradável noite com o concurso dos amadores; e fazendo
apêndice a tudo isto uma história de Columella
no meio dos doidos, que tocarão em instrumentos fingidos as melhores ouvertures dos grandes maestros, etc.
Ao depararmos com semelhante anúncio, veio-nos à lembrança os dos senhores
De-Vecchy e Yorck, quando dizem: haverá no Tivoly um lindíssimo fogo de vista. Nem outra ideia podíamos ter ao ler
semelhante destampatório. Pois, na verdade, o Sr. Marinangeli não teve uma
única pessoa a quem consultar sobre o anúncio do seu benefício antes de o
mandar publicar do modo por que estava redigido? E a pessoa no teatro a quem
estes anúncios são submetidos antes de publicados não o podia corrigir por
deferência à nossa pobre língua e bom senso público? Mas dizem os espertos na
matéria que os anúncios de benefícios devem ser esdrúxulos; que daí é que lhes vem o mérito e os cobres da récita.
Se tal foi o pensamento do Sr. Marinangeli, podemos lhe assegurar que andou
avisado no negócio e que sabe muito bem arranjar a sua vida; assim soubesse ele
não se deixar adivinhar como certo planeta do nosso conhecimento!
Não é nada: o lindíssimo fogo
de vistas e os doidos que fingiam, levaram uma torrente de povo ao teatro, que
o encheu de alto a baixo. Sinceramente damos os parabéns ao Sr. Marinangeli
pelo brilhante benefício que fez, assim como ao teatro, que foi de meias com
ele.
É coisa muito séria na época presente fazer
passar o dinheiro de tantas algibeiras para uma só, cujo dono ainda em cima é
aplaudido. Isto é milagre que fazem só as gargantas; porque, se outro tanto quisessem
fazer as mãos, chamar-lhe-iam ladroeira.
Vamos ao lindíssimo fogo. Deu
princípio a ele o Sr. Ribas e os seus ajudantes, atacando a ouverture;
levantou-se o pano, e foram aparecendo as diversas peças de que se compunha, por sua ordem e tempo. Em
primeiro lugar, viram-se alguns foguetes formando uma girândola ou coro
conduzido por um traque da China. Estas girândolas pegaram bem. O traque da
China esteve espertinho, tanto na qualidade de condutor de serenata como de
cabo da guarda. Veio depois uma grande roda-viva embrulhada em capa branca.
Esta roda ia falhando umas poucas de vezes; cremos que a pólvora estava molhada
ou que o estopim era de má qualidade. Foi milagre não gritarem os moleques:
“Fora o fogueteiro!” Em algumas ocasiões a roda-viva girou com rapidez, mas o
fogo era descorado e não fazia vista. Deve-se porém levar em conta a boa
vontade, figura e esforços que fez para brilhar. Teve suas palminhas, o que não
é de desprezar, principalmente por ser coisa com que muito poucas vezes se tem
benzido.
Depois desta roda, causa primordial de todo o fogo, apareceu o barbeiro,
o qual trazia, em vez do rebolo tradicional, um violão a tiracolo. Vinha
gamenho e folgazão, as pernas lhe não pesavam, e girando de um lado para outro,
preencheu muito bem a sua parte, com boa vista e soído. Algumas vezes desmentiu
o que dizia de si, que era um barbier di
qualità, espirituoso como ele dizia ser, não se
abaixa tanto a caricaturar o seu
papel para fazer efeito. O modo por que fez a barba e o tamanho da navalha são
mais próprios de figurar em fogo de aldeia do que diante do tão conspícuo
auditório da capital.
De todo o lindíssimo fogo, incontestavelmente a melhor coisa foi a boneca. Vestida com gosto e garridice,
viva, espirituosa e animada, com aqueles olhinhos a cintilarem, despertou as
simpatias e os aplausos. O seu primeiro rodar foi indeciso, como que receosa
por tantos olhares que nela se fitavam, e talvez duvidosa da substituição que
ia exercer de uma antiga boneca de fogo que já havia colhido grandes aplausos
deste mesmo público. Mas esta desconfiança foi desaparecendo pouco a pouco e a bonequinha fez prodígios. Com aquela
fisionomia viva em que se lia o ardil que o amor desperta até nas mais
ingênuas, corria com gentileza ora para o barbeiro,
a fim de que lhe desse este novas do amante, ora para o próprio amante, a
queimar-se no fogo, ainda que franco, de sua roda. Ou então, fugindo à bomba do Tutor, desaparecia, deixando a
todos com desejo de a tornar a ver. Em todos os fogos de artifício, desde tempo
imemorial, foram as bonecas as que mais mereceram do público e suscitaram
prolongados aplausos; ainda uma vez foi este costume observado, e com muito boa
razão. A pirotecnia teatral está aperfeiçoada, e um fim diverso e mais humano
deu à linda boneca. Todos sabem como costumam acabar estas no campo de Santana
e no Tivoly, arrebentadas e incendiadas. Esta cá não, e seria de lastimar se
assim fosse. Intacta ficou, e pronta para nos abrasar outra vez em suas chamas.
O contraste é um dos segredos da arte que mais fazem sobressair o belo.
O fogueteiro teve este preceito em vista quando colocou junto da gentil boneca, para a perseguir como um tutor
cioso, uma bomba impertinente. De
todos os fogos é este o mais incômodo ao ouvido e menos agradável à vista. Em
todas as rodas e mais artefatos da pirotecnia há sempre uma bomba final cujo
estouro faz piscar os olhos a todos; esta de que falamos não só causou isso,
como obrigou-nos a abanar a cabeça, assim como quem diria: isto não vai bem.
Alguns estouros estiveram sofríveis, e o modo por que atrapalhou a boneca e se deixou apagar pelo barbeiro
amolador não deixa de ter tal ou qual merecimento. De boa vontade preferimos o
ruído desta bomba ao zunido do vento
do Tirol.
Não deixaremos de mencionar uma longa pistola envolta em guita preta, que principiou piano-piano e acabou com un
colpo di canon. Esteve boa; gostamos da apropriada figura que fazia e do
descarnado do todo. Há bem tempo que não vemos pistola que excitasse mais hilaridade e deitasse menos lágrimas.
Seria injustiça se nos esquecêssemos da fragata, que fez tão bonito fogo. Não tinha castelo a combater, mas
salvou com primor. Fez a sua parte muito bem, e se não estivesse tão velha e
não metesse tanto de proa, arriscava-se a levar alguma abordagem; porém, graças
a Deus e às diligências que fazia para fugir ao perigo com panos largos, não
sofreu avaria. Ainda bem! Que esta fragata,
segundo nos dizem, tem sido maltratada pelos pilotos da costa, o que deu causa
a não ser vista há muito tempo por estas paragens. Damos-lhe de conselho que
para se vingar atire uma banda, que tem artilharia e força para isso.
Acabada a primeira parte do lindíssimo fogo, em que figuraram, em dois
diversos atos, as peças que deixamos mencionadas, ora sós, ora em diferentes
encontros, tivemos a terceira parte, na qual apareceram uma rodinha da sécia, um foguete do ar em forma de cartucho de
amêndoas, a bomba e as girândolas . Sem muito exigir, pode-se
dizer que a rodinha girou com
suavidade, que mereceu distinção pública, e que nas suas delicadas proporções
houve-se com graça. A bomba que a
acompanhou, cremos que estava desta vez carregada com algodão-pólvora; porque
não fez tanto fumo inútil, e melhor mostrou ao que tinha vindo. O foguete do ar... ah! que foi um gosto vê-lo na sua ascensão!... Enfeitado de
veludos e sedas vistosas, não quis
subir às nuvens sem levar flutuando ao lado as cores brasileiras em quatro
longas fitas, para assim mais merecer. Este foguete
teve, entre outras manias, a das cores nacionais. Já houve quem o visse
atravessar o céu do Tirol com as cores francesas, e agora aparece com as brasileiras.
A rapaziada patriótica ficou
entusiasmada com a lembrança, e querem ataca r o foguete para que ele suba até as nuvens, e de lá paire orgulhoso
sobre todos. O desejo é louvável, e a
ascensão, ainda que falhada, vai sendo brilhante; mas cuidado com a volta da flecha,
que descerá com mais rapidez do que subiu, para cair por aí algures, e sabe
Deus onde! Isto é uma moralidade em que os foguetes deviam meditar, se os
foguetes pudessem meditar. Querem subir sem se lembrarem da queda; mas lá vem
um dia que chove ou que acendedores não têm fogo, e adeus foguete!
A peça final é, como de costume, uma alegoria. Aparece em um quadro
iluminado, que mostra uma casa de doidos, um homem cantando: Femine! femine! femine! que quer dizer:
ó mulheres! mulheres! diabos!... Este homem representa a diretoria do teatro
arrepelando-se por causa das cantoras, e dando-as ao demo e suas pretensões.
Momentos depois uma súcia de doidos assaltam ao homem, tocando em instrumentos
fingidos as melhores ouvertures dos
mais acreditados maestros. Cada um dos doidos quer obter a atenção do pobre
homem, que, vendo-se atrapalhado e atormentado, quer deitar a fugir; mas não
foge por amor-próprio e presunção de ensinar a doidos, n o que muito se engana.
Estes doidos com seus instrumentos fingidos representam os cantores do teatro
com suas vozes fingidas ou engasgadas, executando as melhores óperas dos mais
acreditados maestros, e atropelando e atormentado a diretoria para os
contratar, a qual pretende às vezes fugir deles; mas certa ideia oculta a retém
no seu posto, apesar dos embates e descomposturas com que aguenta.
Com tão engenhoso transparente dá fim o lindíssimo fogo de vistas, que
custou a nós todos não sei quantos mil-réis, e que por algumas horas nos trouxe
entretidos.
A semana foi toda de beneficência. Depois do benefício do Sr.
Marinangeli, logo na noite seguinte tivemos o do Sr. Franchi. O anúncio deste
nada apresentava de notável, e por isso não lhe ocorreram tão bem os abençoados
cobres . Obsequiou-nos com a Lucrezia
pela décima ou duodécima vez, e mais alguns entremeios,de que iremos falando.
Da Lucrezia já muito se tem
dito, e voltar à carga seria fastidioso. Nela estreou a Sra. Lasagna, como
todos sabem, e desde então a sua reputação tem ido em aumento.
Cabe aqui uma observação digna de se fazer e ficar em memória. Nos
primeiros tempos da companhia italiana todos os elogios e aplausos eram poucos
para as tenutas e notas suaves e
amortecidas dos sopranos, ao mesmo tempo que se exigia dos tenores violência e
vibração de voz. Presentemente o caso é outro: quer-se que os sopranos tenham
força como a Sra. Lasagna, desprezando-se a voz da Sra. Candiani, dizendo-se
que só é própria para modinhas, e que os tenores cantem falsettino ou com surdina, e com tanta suavidade que só eles se ouçam a sim mesmos. Entendam essas
mudanças de gosto e digam se é isso negócio de fé ou de cisma.
De todas as músicas cantadas no teatro pela Sra. Lasagna, o rondó final da Lucrezia é sem dúvida nenhuma o em que ela emprega com mais
vantagem a sua voz vibrante e poderosa. Agrada-nos ouvi-la nesta e em outras
ocasiões análogas; mas como não somos amigos dos privilégios exclusivos,
dizemos que muitas vezes a aspereza da sua voz nos faz lembrar com saudades a Sra.
Candiani. Serve cada um para o que serve, e o mais são partidos.
O Sr. Sentati parece que só foi contratado para fazer de Gennaro. Julgamos
que a diretoria, em vista do seu físico, hesita em confiar-lhe outro papel. Não
sei quantas vezes tem morrido envenenado e ressuscitado qual outra Fênix,e para
dizer eternamente: son un Borgia!
Parece que o veneno da querida mãezinha, em vez de o matar, abre-lhe a voz cada
vez mais.
Veja se reparte um pouco do tal
veneno com os senhores Tati e Marinangeli, que será obra de caridade. Tínhamos
curiosidade de saber a como tem saído à empresa cada nota do Genaro. Ajuntar
dinheiro em santo ócio, e passar vida folga da e divertida como os cantores do
Rio de Janeiro, só no reino de Cocagne. Não há nada melhor: o exército cantante
é numeroso e as folgas extensas; só os miserandos coristas... Pobre gente!
Deixando de parte estas irregularidades de serviço que à diretoria
pertence equilibrar, e que só notamos de passagem, prosseguiremos na análise do
espetáculo.
A Sra. Barbieri vai se tornando uma potência no teatro; os seus
entusiastas, a quem se pode disputar bom ou mau gosto, por depender isso de
opiniões, são incontestavelmente os primeiros palmistas do mundo... Que palmas!... Este mérito ninguém lhes
rouba; assim escolhessem melhor as ocasiões. Porém a inveja, que se persegue sempre o mérito, responde com pateada às palmas do entusiasmo. É isto muito
malfeito, porque Deus, quando concedeu mãos a certos homens, foi para darem
palmas a torto e a direito. Lá se avenham; mas por caridade deixem que as
pessoas pacíficas que vão ao teatro gozem do espetáculo em paz e sem
perturbações extemporâneas.
Entendamo-nos: não pareça a alguém que temos a menor indisposição com a
Sra. Barbieri; não: nem com ela, nem com nenhum artista da companhia. Bem longe
está de nós a animosidade pessoal. Fazemos nossas observações par a o fim que
já deixamos apontado no folhetim transato. Seremos sempre os primeiros a fazer
elogios aos artistas que os merecem, sem distinção de pessoas, e teremos por
muito agradável esta ocupação.
Cantou o Sr. Tati a ária debaixo
da Parisina, e justos e merecidos
aplausos recebeu. O Sr. Tati parece que já vai compreendendo que não pode
sustentar a posição de tenor, que quis tomar no teatro. Se este cantor,
impelido pelo desejo de escriturar-se, não se tivesse dado como tenor e se contentasse em ser barítono, não passaria por tantos
embaraços e dissabores, e seria hoje o mais conceituado da companhia, porque
mérito, e muito tem ele. Na nossa humilde opinião julgamos que a diretoria dará
passo acertado escriturando-o como barítono; valiosos serviços pode prestar
nessa qualidade, e todos o ouvirão em cena com prazer.
Estamos convencidíssimos que o Sr. Tati pensa como nós, e, se o não
confessa, é por vexame.
Pois fará mal.
Quem viu o Sr. Franchi no Elixire
pode fazer ideia do que ele é em todas as óperas. Com aquelas pernas curvas e
andar trôpego, torna to das as personagens que representa como que semelhantes,
o que é grave defeito, principalmente em um cantor bufo. Com a boa pronúncia
que tem e voz sofrível, variando o jogo de cena, será cantor aproveitável.
Para finalizar, permita a Sra. Lasagna que lhe façamos uma censura. Foi
falta de delicadeza da sua parte cantar o dueto da Linda de Chamounix depois de ter sido ele cantado pela Sra. Meréa.
Uma prima-donna de reputação e mérito
foge de vexar a uma companheira que ocupa o modesto lugar de segunda dama e que
não tem pretensões. A ação não foi bonita.
Que o Sr. Franchi quisesse cantar o mesmo dueto que o Sr. Vento, bem:
estão em confrontação e tratam dos seus novos contratos; mas ela!... O Sr.
Franchi já teve o troco. Se cantou melhor que o Sr. Vento no dueto, três dias
depois o Sr. Fiorito, apesar de não ser baixo-cômico, cantou também muito
melhor a ária de D. Gherardo. Ninguém as faz que não as pague.
Até para a semana.
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Luís Carlos Martins Pena (1815-1848)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
Luís Carlos Martins Pena (1815-1848)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
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