— Que
me importa que tenhas dado o coração?
Eu
amo o teu olhar ingenuamente escuro: a viveza desses olhos lindos que nos meus
se prendem. Eu amo o encanto dos teus lábios, vermelhos como sangue, de mobilidade
inefável. Eu amo a cor do teu rosto, níveo como a poeira das ondas. Eu amo a
tua alegria, a tua desenvoltura, a tua gentileza, — ó loira figurinha mimosa!
Eu
amo a graça do teu corpo, esbelto e artístico; eu amo a tua cabeça de criança
onde brilham como estrelas dois brincos pequeninhos...
— Que
me importa que tenhas dado o coração?
Demora-te
sob os meus olhos, nunca fartos de te ver! Dá-me a luz dos olhos teus, desfaze
a boca em sorrisos, — brinca, brinca... Pudera eu sonhar continuamente com a
tua graça, despreocupada e simples!
Quisera
cantar a teu lado a Verdade e o Bem, o Amor e a Beleza, para acordar teu
pensamento, para comover teu coração: quisera abalar a tua alma ainda moça,
para que ela, por si, por trabalho seu ora brando ora violento, voasse, voasse
cheia de luz — e pudesse ir ao encontro de outra alma irmã da tua e nela se
confundisse amoravelmente, como na macieza das rosas se confundem duas lágrimas
de orvalho que se encontram...
— Que
me importa que tenhas dado o coração?
Pudesse
eu no teu corpo delicado criar uma alma livre e bela, — sem tenção egoísta de a
lograr!
Eu
quero a tua felicidade, eu quero que a tua alma, divinizada pela Dor, encontre
uma alma divina.
Felicidade
é o ver chorar ess’outra alma a quem adoramos, quando a nossa própria chora.
Viver é sentir, e sentir é sofrer. A Dor é a coroa da Vida. Quem mais sofre é
quem mais vive. Feliz do que sabe sofrer — quando a sua alma tem par!
— Que
me importa que tenhas dado o coração, — se porventura o deste bem?
Eu
só quero sonhar, — e o que te admiro a mais ninguém pertence. A suavidade do
teu olhar, como eu a sinto ninguém mais a sente. A expressão da tua boca, só eu
a contemplo como eu a adoro. Da arte do teu corpo leve, só eu amo a impressão
que me provoca.
Na
água, sossegada e pura, claramente quieta, ou na água jaspeada pela aragem
mansa, — a luz, ao sol morrer, transforma-se, poetiza-se, espiritualiza-se, e
cada qual ali sente a grandiosidade da Natureza; mas não são iguais os aspectos
a todos os olhares: o que certos olhos alcançam, outros o nem sonham talvez.
E
a suavidade do teu olhar, a expressão da tua boca, a arte do teu corpo, tais
como eu as vejo, são minhas, só minhas. E eu não desejo mais nada para mim.
Guarda
o coração. Sabe guardá-lo. Aquela ventura me basta.
Não
tires, pois, ó loira figurinha mimosa, de meus olhos d’alma o estímulo
delicioso da minha ventura!
Deixa-me
sonhar. Deixa-me sentir a Natureza, grande, eterna, infinita, no teu melindre,
na tua graciosa delicadeza!
Porto, março de 1911.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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