Parece outro, o gabinete querido
onde me recolho com prazer sempre que posso. Ornou-o carinhosamente a minha
arte, guiada e inspirada pelo meu amor por ti.
A mesa onde escrevo é agora um
mimo. Numa aparência de ingênuo desleixo, ali se encontra tudo em gentil
combinação. E, caídas num molho a emurchecer, rosas de outono, grandes e pálidas,
exibem a sua palidez macia, dengosamente, sobre o negro luzidio da mesa.
São uma nota suave e fina estas
rosas de outono desterradas entre livros e papéis, — estas flores idosas cor de
marfim antigo, requintando cada vez mais a sua distinção, a sua galantaria conforme
vão murchando, como se fossem mulheres garridas a envelhecer...
Pus outra mão-cheia delas em uma
estante baixa, de forma inglesa, como esquecidas, deliciosamente abandonadas no
meio de gráceis bugigangas.
E num solitário esbelto, mais
rosas ainda, muito brancas estas, vaidosas nos seus longos pés delgados, — como
jatos finos que dele saíssem para logo espumejarem em corolas a sorrir...
Parece outro, não há dúvida, o
meu gabinete! Por diante dos livros dispostos em assimetria calculada, a seda rubra
das cortinas cai em fartas pregas, a toda a altura das esguias estantes, imponentemente,
num franzido cuja desigualdade a minha inspiração compôs ora à direita, ora à
esquerda.
A chaise-longue, as cadeiras, as poltronas, as colunetas... todos estes
companheiros fiéis que mudamente me rodeiam e comigo vivem, estão nos postos
que a estratégia da arte marcou, num desalinho genialmente habilidoso que me
satisfaz e me seduz.
Como este meu gabinete vai
agradar-te, Else! Como vou ser venturoso sentindo quanto admirarás, através do
engenho deste refúgio de enlevo, a alma branda que o adornou!
A minha alegria parece contagiar
tudo isto. Tudo isto que me cerca parece, na verdade, haver-se integrado na
minha existência vária como complemento inseparável do meu ser. Tudo isto ressuma
contentamento, porque estou eu contente. Tudo isto se me afigura que sabe, como
eu, que tu vens aí, que não tardas, que pela primeira vez entrarás aqui,
harmoniosa e amante, qual fada celeste de arroubador influxo, a embelezar-me a
vida, — e tudo isto pulsa de felicidade comigo, numa simpatia enternecedora!
Até esta manhã de outono é
formosa como nenhuma! O sol baixo, trespassando o folhedo enferrujado dos
plátanos, emornece e aclara docemente a minha casa. O alento da atmosfera límpida,
lavada há pouco das chuvas, entra pelas janelas escancaradas, em ondas puras e
tépidas, como a bafagem de uma linda boca sadia de mulher.
Tudo está alegre, — tudo te
espera, Else!...
Ah, chegas enfim!
A tua cabeça, — que uma golfada
de sol, abrindo caminho por entre as rareadas folhas de um plátano, veio saudar
triunfalmente, — apareceu à entrada, de súbito, saída de uma voluta do
reposteiro carmesim que repuxavas por sob o mento.
Travessa, radiante, cantarolaste:
Si può, si può...
Assim, sob a explosão de luz que
fagulhava no vermelho do pano e te purpureava a formosura do rosto florescido
em riso, parecia que eras a própria aurora que entrava, numa poalha de auripurpúreo
arrebol...
Entraste e, curiosa, antes de
mais nada, tudo miraste, num vivo relancear de olhos.
A minha alma perseguiu ansiada esse
curioso olhar por sobre a mesa, as paredes, as estantes, os móveis, as
flores...
— Os homens! oh, os homens! — disseste a rir, cristalinamente, saindo-te
as palavras dos lábios brilhantes, como indizíveis notas musicais, que reboaram
comoventes no mais fundo da minha alma.
— Os homens! oh, os homens! — e foste às cadeiras e alinhaste-as
junto a uma parede como soldados em sentido; a chaise-longue colaste-a a outra parede, com todo o cuidado, não fosse
deixar de lhe ser bem paralela, ou o tapete de Esmirna ficar com a menor ruga
ou um quase-nada de esguelha; na mesa, na estantezinha britânica, por toda a
parte, os objetos, em uma rápida manobra, tomaram posições da mais feroz
simetria; os livros perfilaram-se, hirtos, unidos, e desapareceram por trás das
cortinas rigorosamente corridas...
— Os homens! oh, os homens! — ias
dizendo, com ar de riso, muito desembaraçada, com a suprema satisfação de uma
dona-de-casa a ordenar, a arrumar...
E rindo mais, muito mais de eu
ser um descuidado, deitaste a mão pequenina às belas rosas outoniças, grandes e
pálidas, e, acordando-as do seu tranquilo sono de garrido envelhecimento, atiraste-as
à rua...
Viana do Castelo
Novembro de 1914.
Novembro de 1914.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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