7/04/2019

Manhã de Novembro (Crítica), de Cláudio Basto


Manhã de Novembro

Parece outro, o gabinete querido onde me recolho com prazer sempre que posso. Ornou-o carinhosamente a minha arte, guiada e inspirada pelo meu amor por ti.

A mesa onde escrevo é agora um mimo. Numa aparência de ingênuo desleixo, ali se encontra tudo em gentil combinação. E, caídas num molho a emurchecer, rosas de outono, grandes e pálidas, exibem a sua palidez macia, dengosamente, sobre o negro luzidio da mesa.

São uma nota suave e fina estas rosas de outono desterradas entre livros e papéis, — estas flores idosas cor de marfim antigo, requintando cada vez mais a sua distinção, a sua galantaria conforme vão murchando, como se fossem mulheres garridas a envelhecer...

Pus outra mão-cheia delas em uma estante baixa, de forma inglesa, como esquecidas, deliciosamente abandonadas no meio de gráceis bugigangas.

E num solitário esbelto, mais rosas ainda, muito brancas estas, vaidosas nos seus longos pés delgados, — como jatos finos que dele saíssem para logo espumejarem em corolas a sorrir...

Parece outro, não há dúvida, o meu gabinete! Por diante dos livros dispostos em assimetria calculada, a seda rubra das cortinas cai em fartas pregas, a toda a altura das esguias estantes, imponentemente, num franzido cuja desigualdade a minha inspiração compôs ora à direita, ora à esquerda.

A chaise-longue, as cadeiras, as poltronas, as colunetas... todos estes companheiros fiéis que mudamente me rodeiam e comigo vivem, estão nos postos que a estratégia da arte marcou, num desalinho genialmente habilidoso que me satisfaz e me seduz.
Como este meu gabinete vai agradar-te, Else! Como vou ser venturoso sentindo quanto admirarás, através do engenho deste refúgio de enlevo, a alma branda que o adornou!

A minha alegria parece contagiar tudo isto. Tudo isto que me cerca parece, na verdade, haver-se integrado na minha existência vária como complemento inseparável do meu ser. Tudo isto ressuma contentamento, porque estou eu contente. Tudo isto se me afigura que sabe, como eu, que tu vens aí, que não tardas, que pela primeira vez entrarás aqui, harmoniosa e amante, qual fada celeste de arroubador influxo, a embelezar-me a vida, — e tudo isto pulsa de felicidade comigo, numa simpatia enternecedora!

Até esta manhã de outono é formosa como nenhuma! O sol baixo, trespassando o folhedo enferrujado dos plátanos, emornece e aclara docemente a minha casa. O alento da atmosfera límpida, lavada há pouco das chuvas, entra pelas janelas escancaradas, em ondas puras e tépidas, como a bafagem de uma linda boca sadia de mulher.

Tudo está alegre, — tudo te espera, Else!...

Ah, chegas enfim!

A tua cabeça, — que uma golfada de sol, abrindo caminho por entre as rareadas folhas de um plátano, veio saudar triunfalmente, — apareceu à entrada, de súbito, saída de uma voluta do reposteiro carmesim que repuxavas por sob o mento.

Travessa, radiante, cantarolaste:

Si può, si può...

Assim, sob a explosão de luz que fagulhava no vermelho do pano e te purpureava a formosura do rosto florescido em riso, parecia que eras a própria aurora que entrava, numa poalha de auripurpúreo arrebol...

Entraste e, curiosa, antes de mais nada, tudo miraste, num vivo relancear de olhos.

A minha alma perseguiu ansiada esse curioso olhar por sobre a mesa, as paredes, as estantes, os móveis, as flores...

Os homens! oh, os homens! — disseste a rir, cristalinamente, saindo-te as palavras dos lábios brilhantes, como indizíveis notas musicais, que reboaram comoventes no mais fundo da minha alma.

Os homens! oh, os homens! — e foste às cadeiras e alinhaste-as junto a uma parede como soldados em sentido; a chaise-longue colaste-a a outra parede, com todo o cuidado, não fosse deixar de lhe ser bem paralela, ou o tapete de Esmirna ficar com a menor ruga ou um quase-nada de esguelha; na mesa, na estantezinha britânica, por toda a parte, os objetos, em uma rápida manobra, tomaram posições da mais feroz simetria; os livros perfilaram-se, hirtos, unidos, e desapareceram por trás das cortinas rigorosamente corridas...

Os homens! oh, os homens! — ias dizendo, com ar de riso, muito desembaraçada, com a suprema satisfação de uma dona-de-casa a ordenar, a arrumar...

E rindo mais, muito mais de eu ser um descuidado, deitaste a mão pequenina às belas rosas outoniças, grandes e pálidas, e, acordando-as do seu tranquilo sono de garrido envelhecimento, atiraste-as à rua...

Viana do Castelo
Novembro de 1914.

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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