8 de junho de 1847.
O Conservatório Musical. As
senhoras Lasagna e Barbieri, e os mais cantores da "Lucrezia Borgia".
O Barbeiro de Sevilha e a censura à Sra. Mugnay. Um lembrete de amigo ao Sr.
inspetor de cena. Algumas reflexões.
Há oito meses que em um dos nossos folhetins, falando dos coros e
notando os seus defeitos e causas que para isso concorriam, dizíamos: “Como
remediar esse mal? Como colocar os espetáculos líricos no grau de perfeição que
nossas exigências e gosto requerem, pelo que diz respeito a essa parte?” Lembramos
então a criação do Conservatório de Música, para cuja manutenção o corpo
legislativo havia concedido loterias; lastimamos a indolência que paralisava as
pessoas mais interessadas neste negócio; apontamos as suas conveniências, e
concluímos: “Quem sabe que resultado poderemos ainda colher? Com menos de dois
anos teremos um corpo de coristas de ambos os sexos, com as habilitações
necessárias, e digno de se fazer ouvir em cena; e alguns filhos do país terão
com isso lucrado; circunstância esta que não é de desprezar. Ainda mais: dentre
os discípulos, um ou outro haverá que, dotado pela natureza de talento e boa
voz, possa ainda um dia subir a grande altura e medir-se com vantagem com
qualquer artista estrangeiro. Outra vantagem se colherá do estabelecimento do
mencionado Conservatório, e é esta a criação da ópera brasileira.”
Se nossas observações e desejos serviram para despertar o adormecido
ânimo das pessoas que deviam figurar à frente deste estabelecimento, não
sabemos; mas quer-nos parecer que para isso alguma coisa contribuíram. Na
conformidade do decreto de 21 de janeiro do corrente ano, e do art. 9º do plano
que o acompanhou, contendo as bases segundo as quais se deve estabelecer o
Conservatório, foi nomeada pelo governo a comissão diretora que deve zelar e
fazer progredir o estabelecimento. Esta comissão é composta dos senhores Francisco
Manuel da Silva, diretor interino; padre Manuel Alves Carneiro, tesoureiro, e
Francisco da Mota, secretário. Por aviso da Secretaria do Império, de 15 de
maio próximo passado, foi concedida uma das salas do Museu para nela se
estabelecerem as aulas primárias do Conservatório; e ao Sr. J. P. da Veiga
baixou um a portaria ordenando a extração das loterias concedidas por decreto
de 27 de novembro de 1841 à Sociedade de Música desta corte.
Em breve pois abrir-se-á nova e honrosa carreira para muitos de nossos
patrícios; vê-los-emos em pouco tempo com uma profissão independente; e o
caminho do bem-estar, e para alguns o da fortuna, se patenteará diante deles.
Coragem! Se a natureza não foi igual na distribuição de seus dons, se não é
dado a todos sair da mediocridade e distinguir-se, o estudo regular sempre faz
do homem alguma coisa e o torna mais ou menos útil. Aqueles dos discípulos do
Conservatório a quem a inteligência for escassa não brilharão na primeira
plana, mas terão adquirido, à força de estudo e de aplicação, uma profissão
livre; porém aqueles com quem foi liberal a mão de Deus e cujo gênio adormecido
só espera o despertar, poderão ter ainda distinto lugar na sociedade. Não há
nações privilegiadas; o talento foi por Deus espalhado por toda a terra; e se
alguns povos mais se distinguem em certas artes, é pelo desenvolvimento e
animação que se lhes dá, e bom método que seguem no seu ensino. É preciso que
desapareça entre nó o preconceito de que só italianos podem cantar e compor
óperas italianas. O exemplo em toda a Europa tem mostrado o contrário. Porque
haveria uma exceção pra os brasileiros? Ninguém conhece os recursos que em si
tem; o estudo é que o desenvolve e lhe dá a medida do seu valor; estudem pois
os nossos patrícios, tenham coragem e perseverança, que ainda algum dia estas
nossas palavras serão lembradas com agradecimento.
Sabemos que são raros esses compositores e cantores de grande nomeada, e
que dos conservatórios da Europa poucos são os que adquirem subida fama; mas
não é esta consideração de desanimar; antes pelo contrário deve ela despertar a
nossa emulação, para merecermos também os favores da distinção e da fortuna.
Quase todas as nações europeias possuem teatro de canto nacional. E por
que não o teremos nós? Será o nosso idioma impróprio aos acentos musicais?
Todos concordam que depois do italiano é ele o mais próprio para o canto. O que
nos falta pois? Cantores, e unicamente cantores. Temos visto alguns dramas e
comédias de produção brasileira, e eles nos dizem o que podem fazer seus
autores a bem da ó pera-cômica. Entre nós existem compositores que só esperam o
momento e animação para nos oferecerem seus trabalhos; o público, que corre ansioso
ao teatro da ópera-cômica francesa, para ver um drama que muitas vezes não
entende e ouvir música bem diversa da do estilo e gosto nacional, não deixará
de sustentar com empenho e aplaudir a ópera-cômica brasileira, que para ele
será escrita. Longe não está talvez a realização desta ideia.
Expormos os relevantes serviços que pode prestar o Conservatório às
orquestras, dando-nos bons instrumentistas,
é inútil, por serem de fácil compreensão. Temos presentemente muitos músicos
para bandas militares, mas não assim para orquestra de um teatro de canto, por
isso que lhes faltam estudos especiais e sistemáticos. A esta falta só pode
para o futuro remediar o Conservatório.
Apelamos para os bons desejos do Sr. Francisco Manuel da Silva, que sem
dúvida, compreendendo os resultados da missão de que se acha encarregado, lhe
prestará todos os desvelos. Consta-nos que este senhor pretende adotar para os
exercícios práticos o método que de Wilhem, aprovado pelo Conselho Real de
Instrução Pública de França, e adotado pela Comissão Central de instrução
Primária de Paris. Louvamos tão acertada escolha, da qual se colherão sem
dúvida imensas e rápidas vantagens. Quanto à parte teórica da arte, ocupa-se o
Sr. Francisco Manuel em organizar um compêndio, que será de grande proveito
para os discípulos. Para não tornar longo este artigo, o finalizaremos pedindo
ao governo que continue a proteger eficazmente o
Conservatório Musical Brasileiro, que pode ainda ser muito útil e vantajoso à
nação. Pelas artes civilizam-se os povos.
Depois de tratarmos do objeto que fica acima exarado, principiaremos a
nossa tarefa semanal dizendo algumas palavras sobre a última representação da
ópera Lucrezia Borgia. Vai pela
décima ou vigésima vez que ocupamos a atenção do leitor com a análise,
apreciação, facécias e motejos da dita ópera, e tanto que já tememos ser
fastidiosos; mas o público é bom, muito bom, e assim como atura e paga as sempiternas
reformas, ressurreições, enxertos e espeques, e perdoa com magnanimidade à
governança teatral que lhas impinge, esperamos que relevará também as nossas repetições. E demais,somos como o
satélite que acompanha o planeta em sua rotação: se este toma errada via, forçoso
nos é acompanhá-lo, até o dia em que benéfico cometa, abalroando-o, atire-o por
esses ares e nos faça gravitar para melhor centro. Assim como há portugueses
que esperam por D. Sebastião, ingleses por Artur, crentes pelo Messias, renegados
pelo Anticristo, nós também esperamos pelo reformador do nosso teatro. São
crenças, e com ela morreremos, legando-a a nossos filhos. Deixemo-nos porém de
metáforas, e falemos dos cantores e cantoras em frases comezinhas.
Lucrezia Borgia é a ópera por excelência da Sra. Lasagna,
e na verdade faz nela bela figura.
Muitas vezes o temos dito e ainda o repetiremos: se tivessem conhecido a
especialidade desta cantora, se ela mesma se conhecesse a si, mais conceituada
estaria a esta hora. Se depois da Lucrezia
tivesse cantado óperas como Nabucodonosor,
Gemma de Vergi, Maria de Rudenz e outras do mesmo estilo e força, muito teria ela
ganho em sua reputação artística,
assim como o teatro nos seus interesses. Com as mil dificuldades que existem
para termos cantores de subido merecimento, é necessário que a direção do
teatro empenhe todas as suas forças pra acreditar aqueles que o acaso traz às
nossas praias, confiando-lhes óperas em que possam ser ouvidos com prazer, e
evitando confrontações desairosas; porque do contrário, expondo-os ao desagrado
ao público, os compromete e dá provas de incapacidade.
A Sra. Lasagna é sempre ouvida com prazer desempenhando o papel da
terrível Bórgia, e ainda nesta última representação, em que muito bem se houve,
recebeu justos e merecidos aplausos. Compare-se esta última recepção pública
com a que tem tido na Straniera, e
ultimamente em Anna Bolena e digam os
seus mais fervorosos defensores se temos ou não razão de assim falar. Sabemos
que estas nossas palavras vão perdidas; mas perguntaremos: “Quem lucra com o
crédito dos artistas, nós ou o teatro?” A resposta é óbvia.
Hoje estamos muito sérios, e falando do Maffio Orsini, não diremos se
esteve gamenho e dengoso, se cantou bem ou mal, e se merecia palmas ou pateada;
outro é nosso intento: queremos provar que a oposição manifestada pelo público
e pela imprensa contra a Sra. Barbieri é toda devida à diretoria. A Sra. Maria
Amália Monteiro é atriz de reputação e bem conhecida pelo bom desempenho dos
papéis jocoso nas farsas e entremezes; mas se um dia quiser ombrear com a Sra. Ludovina,
representando Inês de Castro, Fayelou
outra qualquer tragédia, esse mesmo público, de quem é hoje tão querida e
aplaudida, seria o primeiro em desfeiteá-la em cena. É esta exatamente a
situação da Sra. Barbieri. A diretoria, por proteção, simpatia, acinte ou o
quer que seja, elevou esta cantora a uma posição no teatro que não podia
ocupar, e concedeu-lhe ordenado quase igual aos das primeiras cantoras; mas o
público, que presenciou este disparate, disse mentalmente à diretoria: “Tu
podes celebrar com qualquer cantora o contrato que bem te parecer, e
conceder-lhe o ordenado que tua afeição marcar; porém, por mais que queiras,
não lhe poderás dar um só átomo de merecimento artístico. Iguala na tua
fantasia a Barbieri à Candiani e à Lasagna, que nós cá estamos para protestar
porque o bom senso ainda nos não abandono u, e nem será dito que ouvimos com
teus ouvidos e julgamos segundo tuas afeições.” Assim falou o público, e
constante tem sido o seu proceder de desaprovação. Agora acrescentarem os nós:
se a Sra. Barbieri se tivesse encarregado somente de segundas partes, as quais
podia satisfatoriamente desempenhar, ou ainda mesmo dos primeiros papéis em
alguma burleta, porque para isso tem ela graça e gentileza, e que
sobretudo se ignorasse a proteção que ela goza e o não proporcionado ordenado
que percebe, outra seria a sua posição no teatro, e o público teria tido
ocasiões de a aplaudir sinceramente, e nós de a elogiar. “Admira-me, dizia
certo acionista, que o público goste mais da Meréa do que da Barbieri, sabendo
que esta tem maior ordenado.” Esta brilhante e comercial sentença, que já
tivemos o gosto de publicar, confirma o que acabamos de dizer, e dá ideia do
apreço universal e onipotente em que algumas pessoas têm o ouro. Responderemos
humildemente aos que assim pensam que o ouro dará tudo, menos voz e talento.
Disse.
Os demais cantores na ópera de que tratamos fizeram por agradar, e
alguma coisa conseguiram, exceto o Sr. Theolier na sua ária. A voz deste cantor
é sonora e agradável quando ele não a força demasiado para produzir efeito,
porque então perde de seu timbre e fica como embaçada. Esperamos que esta
observação será acolhida pelo Sr. Theolier com a mesma sinceridade com que é
feita; se, à semelhança porém de alguns de seus companheiros cabeçudos e
teimosos, não quiser atender a esta nossa reflexão, só nos restará o
sentimento que não possa ele ouvir-se a si mesmo da plateia para convencer-se
de uma triste verdade. No terceto canta bem e compreende o papel que
representa.
Gennaro, com o andar dos anos e depois que cresceu, está melhor, e
ocupa-se agora muito em fazer um estudo profundo sobre o gosto dos brasileiros
pelas modinhas, a fim de enternecer todo o seu canto, qualquer que seja o
sentido das letras. Com vagar voltaremos a este assunto, agradecendo ao cantor
a honra que quer fazer à nossa música nacional.
O Sr. Eckerlin continua a vestir-se bem, e vai tendo mais cuidado no
estudar seus papéis. Andar assim! Quando não, lembraremos de novo o Bitu.
Coitatinho! Coitadinho!... Tínhamo-nos até hoje esquecido que havia na
companhia italiana um mocinho chamado Tati. Ora, que esquecimento! Estimamos
que tenha passado muito bem; e se quer que nos ocupemos com
sua pessoa cante mais alto; quando não, silêncio por silêncio.
O Sr. Sicuro continua a representar bem no papel de segundo tenor. Ganhe
por aí reputação e dinheiro, que já não é mau.
Como não falta mais ninguém à chamada, damos a ópera como concluída, e
passaremos a tratar do espetáculo de sexta-feira, que constou do Barbeiro de Sevilha, de dois espeques e
do mais que diremos.
Rosina-Mugnay esteve feiticeira, e interessante na cavatina, no duetto, no...
o melhor dizer em tudo, para encurtar a relação. Temos uma censura que lhe
fazer, e muito violenta. Diga-nos por que razão, em vez de fazer arremedos e
caretas ao seu tutor, que estava cantando tão bem a ária, não as fez, e bem
feias, ao Fígaro por trazer a barba tão crescida, e ao conde d’Alma-viva por
vestir ainda a ridícula farda de ordenanças? Bem sabemos a razão. É porque um
era o seu Mercúrio e outro o seu amante. Está bem servida! Que desgraça para
tão gentil pupila!... Falemos sem figura, o Sr. Sicuro cantou muito melhor
nesta última representação do que nas primeiras; não esteve tão exagerado nos
papéis de soldado bêbado e de mestre de música, e por isso mais agradou. É de
lastimar que trouxesse a mesma farda, cujo disparate notamos. Já fizemos a
devida censura ao ator, e agora nos voltaremos para o senhor inspetor de cena,
ao qual diremos: quando qualquer escritor crítico teatral diz que um artista
cantou e representou bem ou mal, pode-se deixar muitas vezes de seguir a sua
opinião, por isso que reputa-se esta apreciação negócio de gosto; mas quando
ele nota o erro de aparecer em uma mesma ópera atores com vestimentas
disparatadas e ridículas, e cuja censura não pode ser contestada, é do rigoroso
dever de vossa senhoria, como encarregado da inspeção da cena, o corrigir
semelhantes erros, que tanto rebaixam o nosso teatro à vista dos estrangeiros
que o frequentam. Tão imperdoáveis descuidos é que dão causa que a nossa cena
seja constantemente menosprezada e ridicularizada nas viagens publicadas na
Europa por esses estrangeiros que por vergonha nossa presenciam seus desmazelos.
Pedimos-lhe que tenha mais atenção com a dignidade da cena, como lhe
cumpre, e com a reputação do primeiro teatro da Corte, e que se não deixe levar
por caprichos que de nada servem. Por muitas vezes temos deixado de falar dos
anacronismos acerca das vestimentas teatrais, por conhecer as circunstância s
do nosso teatro; mas tudo tem limites, e não queira o Sr. Romeiro, que aliás é
uma pessoa em quem reconhecemos merecimento, que o tempo de sua inspeção cênica
passe em provérbio como a do célebre Manuel Luís do Jacaré. Desculpe-nos estas
observações. Como é conveniente não perder a ocasião, chamaremos do mesmo modo
a sua atenção sobre a palhaçaria do Sr. Massiani com o navalhão. Fique sua
senhoria na certeza que, se deixar os atores em cena fazerem o que bem lhes
parecer, os de má índole, quando supuserem que fazem pirraça a alguém dando
coices, botarão as mãos no chão com todo o desembaraço e atirarão com os pés
melhor do que qualquer asno.
Forma os dois espeques a ária da Scaramuccia pela Sra. Canonero, e a do Burgomaestro pela Sra. Barbieri. A primeira foi-se para dentro,
correndo com medo de que o silêncio
do público degenerasse em pateada; e a segunda recebeu algumas palmas, que na
verdade conquistou.
Quando qualquer banqueiro possui um peixe grande e não lhe acha
comprador posteja-o e assim o vende. O teatro conta no seu repertório algumas
grandes óperas, e como não as possa vender por inteiro, fá-las em postas e
assim as impinge aos compradores. Fizemos esta reflexão ouvindo cantar nesta
mesma noite o duetto da Straniera e o terzetto de Anna Bolena,
e achamos o sistema engenhosíssimo.
A cobrecolite continua a fazer
estragos no teatro.
O apito do Sr. Pessina vai perdendo a voz; parece-se nisso com certa
pessoa que não nomearemos.
---
Luís Carlos Martins Pena (1815-1848)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
Luís Carlos Martins Pena (1815-1848)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
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