Eça de Queirós Por José Veríssimo
A primeira vez que o vi foi em
Lisboa, há justamente vinte anos, no salão do Teatro da Trindade, onde se
realizava um sarau literário em proveito da família do escritor Santos Nazaré,
que, voltando do secretariado da Índia portuguesa, falecera em viagem, deixando
os seus em extrema pobreza. Apareceu-me ao lado de Ramalho Ortigão, como no
frontispício das Farpas, alto,
esguio, menos magro do que ficaria depois, apuradamente vestido à inglesa, o
seu monóculo fixo entre o nariz de águia e o olho bem aberto, penetrante,
impondo à minha juvenil admiração matuta, de provinciano brasileiro
recém-chegado. Reconheci-o, e ao seu fidus
Achates, através das caricaturas de Bordallo do Antônio Maria, e do Álbum das
Glórias... Ele e Ramalho estavam de pé, junto à parede lateral do salão, a
direita do estrado destinado aos atores daquela festa de beneficência
literária. Um com as suas grandes lunetas, outro com o seu amplo monóculo inspecionavam
a sala. Notei que a entrada de Eça despertara a atenção geral, e as mulheres,
que eram numerosas, e da alta roda lisboeta, o examinavam com uma curiosidade
especial. Decididamente o autor do Primo
Basílio excitava-lhes aquele sentimento bem feminino. Ao meu lado uma
senhora, abaixando de sobre ele o binóculo, disse à outra, naquela voz doce e
cantada das lisboetas: — Sabes? o Eça também fala. — E a outra, consultando o
programa, com leve comoção na voz, como que receosa da tese que ele haveria escolhido:
— Que irá ele dizer?... Mas Eça de Queirós não falou; seu nome no programa era
uma mentira piedosa dos organizadores da festa; um chamariz para ganhar aos
órfãos de Santos Nazaré mais algumas libras. Falaram ou recitaram versos
outros, entre os quais me lembram Pinheiro Chagas, Antônio Cândido. Fernando
Caldeira; Gonçalves Crespo arrebatou verdadeiramente a assembleia dizendo, como
nunca antes nem depois ouvi recitar, a Resposta
do Inquisidor e a Morte de D. Quixote.
Eça de Queirós observava apenas e guardava na sua retina a imagem daquele
sarau, que reproduzido pelo seu humour,
e enfeitado da sua ironia, havia de ser uma das páginas mais deliciosas dos Maias.
Vi-o depois muitas vezes, em
Lisboa mesmo, e, nove anos mais tarde, em Paris; já então mais magro, mais
ossudo, como que mais cansado, conservando, porém, a despeito de uma ligeira
curvatura, o aprumo da sua fronte inteligente e a fixidez penetrante do seu
olhar, que às vezes algum pensamento íntimo amortecia. Amando-o, não quis
jamais conhecê-lo pessoalmente, por essa espécie de pudor indefinível que nos
afasta de pessoas admiradas e queridas em silêncio. Não posso, pois, dar dele
senão as minhas impressões de seu leitor, e essas mesmas sinto que não têm a
precisão, que só uma leitura recente e repetida poderia ter...
Não lhe sei minuciosidades
biográficas, mas creio não errar dizendo que entrou na literatura com o Mistério da Estrada de Cintra e com as Farpas, feitas ambas de parceria com
Ortigão. O que distingue o Mistério,
na parte que sabidamente lho pertence, nem precisava que no-lo descobrisse a
vasta inteligência crítica de Moniz Barreto, era o "dom de efusão
lírica" desse poeta que fizera de um romance folhetim, de uma novela
romanesca, originada de uma brincadeira de rapazes, um doloroso e vivo poema de
amor.
É como um romântico que Eça de
Queirós começa, mas o poeta sentimental que havia nele — e que nunca de todo desapareceu
dele — o imaginoso evocador de formas e de emoções se transformaria, na função
crítica de colaborador das Farpas, no
analista fino, no observador perspicaz, no realista vigoroso do Crime do Padre Amaro e do Primo Basílio. Estes dois romances são
evidentemente o produto direto, quase podíamos dizer o reflexo do movimento
naturalista francês de Zola e de Flaubert, deste sobretudo, que será o
verdadeiro mestre, o iniciador de Eça no romance naturalista e lhe ocupará
sempre o espírito. Somente a intensidade do sentimento poético é talvez maior
no romancista português que no francês. Ambos eram dois românticos retardatários,
ambos procuraram intencionalmente libertar-se do romantismo, mas, como o
passado pesa sempre sobre nós e não podemos livrar-nos totalmente dele, ambos
conservaram, como de si mesmo reconhecia Flaubert, notável, sensível, o traço
da herança romântica. Em Eça de Queirós, porém, apesar da sua ironia, apesar da
preconcebida frieza que ele quisera dar à sua análise, da imparcialidade que
pretendia impor à sua observação, esse traço é mais fundo, mais aparente, como
o provam os mesmos livros citados, a Relíquia
e sobretudo os Maias. Podem-se dar do
fato duas explicações, uma etnográfica, outra psicológica, de modo algum entre
si opostas. Flaubert é um francês do norte, um normando, pouco sentimental,
apesar do que havia de afetuosidade profunda na sua alma : Eça de Queiroz é um
puro meridional, um Português, sentimental, amoroso, vagamente idealista e
imaginoso como os de sua gente; as partes de poesia em Flaubert são as do criador
poderoso, e só neste sentido o podemos chamar de poeta; Eça, ao contrario, é
verdadeiramente um poeta, um lírico, repito, um sentimental, um apaixonado,
embora sem vontade de o ser, um legítimo filho da terra dos poetas amorosos dos
Cancioneiros, dos cavaleiros namorados, dos líricos sentidos e chorosos, de
Bernardim Ribeiro, do Garrett das Folhas caídas
e do Camões dos sonetos e de Inês de Castro, dos solaus, das xácaras, do fado dolente
e amorosamente piegas. Pode ser que estas explicações, que são apenas duas
formas de uma mesma ideia, não sejam verdadeiras. Ninguém mais que eu desconfia
de tais generalizações. Mas, como quer que seja, a aproximação destes dois
nomes e da obra literária de cada um deles, produzem em mim esta impressão. O
naturalismo de Eça de Queirós, e é uma das suas superioridades, não tem a
insensibilidade rebuscada, a falta de simpatia humana, que se nota no
naturalismo de Flaubert, e no de Zola àquele tempo. O sentimento, a piedade
ainda se escondem, para seguir os preceitos da escola e o exemplo dos mestres,
mas não tanto que os não lobriguemos através da comoção das páginas como as do
infanticídio do Crime do Padre Amaro,
das desilusões, da doença e da morte de Luísa, no Primo Basílio. O que há de forte e intenso em Eça de Queirós vem
justamente dessa simpatia. Não havia nele talvez uma grande potência de invenção,
senão de criação, verdadeiramente original. Um estudo acurado e minucioso da
sua obra, comparada com outras das literaturas suas contemporâneas, mostraria
nela reminiscências, verdadeiros paralelismos, imitações se quiserem, influências
de outros livros, de outros autores. Mas não receio exagerar dizendo que, sob
este aspecto, Eça de Queirós era de família dos Shakespeare s e dos Molières. A
sua cópia, se cópia se pode chamar, era quase sempre superior, e jamais
inferior ao modelo apenas consultado, nunca reproduzido. Sinto neste ponto que
preciso explicar-me. Seria estultice negar ao magnífico criador de Juliana, do
Conselheiro Acácio, do Sebastião, do Cônego Dias, e de outros tipos que vivem
na nossa memória como indivíduos da vida real, o dom da criação. Toda a sua
obra desmentiria quem o fizesse. O que digo é que, na generalidade dessa obra,
quer no seu contexto, quer na sua trama, quer nas suas personagens, descobrimos
mais de uma parecença, às vezes frisante, com outras obras.
Quero significar que nele, como
em tantos grandes artistas, iguais ou superiores a ele, (e já citei Molière e Shakespeare)
a faculdade da criação sobreleva a da pura invenção. Isto me parece sobretudo
verdade na sua fase do naturalismo estreme. O Primo Basílio é um romance paralelo à Madame Bovary de Flaubert, mas profundamente diferente da obra-prima
do escritor francês e, talvez, de maior intensidade moral. Não duvido em
escrever moral, no sentido de social, segundo o conceito nestes ensaios mais de
uma vez expendido. Para mim a literatura, e a arte, só tem valor como um órgão
social, como expressão e definição da sociedade; fora disto os seus produtos
são apenas obras de curiosidade e paciência, mais ou menos bonitas, mais ou
menos bem trabalhadas, como japonices e chinezices preciosas, mas sem lucrar na
grande arte.
Quem pode lá imaginar
sinceramente que um verdadeiro poeta, um artista, faça uma obra de inspiração e
de amor somente para fotografar um aspecto social, uma simples vista do mundo e
da vida, despido de toda a comoção, estranho a toda a reflexão, inteiramente impassível
e indiferente a outro sentimento que a impressão material do fato reproduzido?
Não há um fim moral, certo, no Primo Basílio;
um artista credor não é um pregador, nem um moralista profissional. Mas no seu
ódio senil contra o naturalismo, Camilo não errou de todo chamando-lhe "o
romance mais doutrinal que já saiu dos prelos portugueses." E o reparo de
Camilo pode-se conciliar com a análise que do romance de seu amigo fez o Sr.
Ramalho Ortigão nas Farpas. Reprodução
admirável da vida portuguesa em um dos seus aspectos, o Primo Basílio é também a representação viva, exata até à crueldade,
do que é o adultério na burguesia, o adultério posto a nu, em toda a sua indecência
e pelintrice, despido da vistosa traparia romanesca com que o desfiguraram
durante anos o romance e o teatro românticos. A intenção social, e moral
portanto, é evidente, mesmo que se pudesse admitir que o autor lhe é pessoalmente
alheio. Em Flaubert, apesar das suas denegações, e do seu repúdio irracional,
por esnobismo de artista, da sua obra-prima, não é outra, senão a intenção, a significação
de Madame Bovary. A mim, porém, me parece mais forte a do Primo Basílio, mais trágico o drama,
mais simpáticas as suas vítimas. Fazendo de Carlos Bovary um bobo ridículo,
Flaubert seguiu mais estreitamente a sua estética nessa obra, mas falhou ao
mesmo efeito estético dela. Eça de Queirós aumentou a emoção da sua, dando a Luísa
um marido nulo é certo, mas não ridículo.
Nas duas há verdade absoluta, mas
na do português há talvez, com menos beleza de execução, com menor ciência da
expressão literária, mais intensidade, se se mede a intensidade na obra de arte
pela maior comoção que ela de si expande. Apesar dos senões que os preconceitos
da escola deixaram nesse livro e no Crime
do Padre Amaro são eles talvez os mais perfeitos, os mais belos, e
seguramente os mais característicos, os mais expressivos da obra de Eça de
Queirós e do seu lugar e influência na literatura da língua portuguesa. Porque
não só em Portugal, eminente foi o seu lugar e larga a sua influência, senão
também no Brasil, que principalmente dele aprendeu o naturalismo, sem
entretanto haver produzido nenhum naturalista que se lhe equipare. Faltava aos
seguidores do naturalismo aqui o que em Eça sobejava, a personalidade para
transformar em seu aquilo que acaso lhe não pertencia de próprio e a grande
capacidade de transposição para os tons mais originais e mais variados dos
temas que lhes ofereciam a literatura e a vida. E com isto, a aliança rara da análise
penetrante e pessimista, a ironia risonha e cética, com o lirismo e a tendência
romanesca da sua índole pessoal e literária. Ele tinha ao demais, — o possuiu
talvez como ninguém depois de Garrett, — o dom da língua, mesmo quando ainda
não a sabia perfeitamente, nem a empregava com a mestria com que acabou por
manejá-la. A vida portuguesa contemporânea sob o aspecto em que a viu Eça, não
deixará de si representações mais perfeitas, quadros mais verdadeiros e mais
vivos, e o romance realista, em todas as literaturas, não terá muitas obras
superiores a essas.
A fantasia romanesca, o lirismo congênito
de Eça de Queirós, porém, se não podia encarcerar para todo o sempre na fórmula
naturalista. O realismo fazia evidentemente parte integrante do seu
temperamento literário, casando-se harmoniosamente àquelas outras feições da
sua índole artística; o naturalismo segundo os seus mestres franceses, era a
parte adventícia dele. Com o Mandarim,
com a Relíquia e, sobretudo, com os Maias, ele o vai abandonando, e a fusão
entre o analista, o observador e o lírico, o romântico, que nele há, se
completa, e o desenvencilha do cânon propriamente naturalista. O drama e os
personagens burgueses da Relíquia,
por exemplo, são do mais acabado realismo, do que ele fez de melhor nessas
pinturas exatas e vivas da sociedade portuguesa, da qual nos deixou tantos
quadros superiores na sua obra. Mas esse drama, e essas personagens os envolveu
em uma ficção da mais alta e da mais bela fantasia, soltando à toda a rédea a
sua imaginação romanesca e lírica, e dando à língua portuguesa, no sonho de
Teodorico, um dos seus mais belos e mais perfeitos trechos de prosa. Aos que
malsinam a insuficiência da nossa língua, basta esse trecho para desmenti-los. Os Maias completam a sua deserção do
naturalismo à moda de Crime do Padre Amaro e do Primo Basílio. Com eles Eça de Queirós reintegra o romanesco na
arte naturalista, que o havia sistematicamente excluído e refugado. Um aspecto
da vida portuguesa fornece-lhe o assunto de um novo quadro em que se sente
pulsar a realidade, mas que uma luz de romance penetra de um ambiente
romanesco, não menos verdadeiro que a realidade da vida que nele se vive. Não
sei se esse livro com todos os senões que uma estética apurada lho poderia
notar, não será da obra de Eça de Queirós a mais representativa da sua
personalidade de artista, de poeta ao mesmo tempo sentimental e irônico,
nervoso e frio, homem de sensações e homem de análise, pintor exato de
realidades, e fantasista de alta imaginação. Mas raro é que um escritor se contenha
em uma só obra, porque nós não somos somente complexos e diversos no espaço,
senão também no tempo. Mudamos, variamos pelo menos, com os dias que passam,
trazendo ou levando, alterando, em suma, as circunstâncias da nossa vida.
O romanesco, o lirismo de Eça de
Queirós, o levaram insensivelmente à nova estética nascida da reação idealista
dos trinta últimos anos. Ele ficará, aliás, alheio às escolas que disputam a
representação dessa nova e larga e varia corrente artística. Não é dos que se
matriculam e estampilhem em escolas. No mesmo naturalismo, conserva a sua
independência, o seu temperamento, a sua personalidade. Mas a sua já indicada
índole literária, ou artística, se preferem, devia simpatizar com o que
porventura haja de verdadeiro ou pelo menos de belo no movimento simbolista. O
símbolo é o eterno elemento da poesia, talvez a sua mesma essência, e este
realista é também um poeta de alta fantasia. O lado místico, sentimental,
idealista e idealizador das novas formas literárias deviam seduzir a sua
fantasia, satisfazer o seu gosto de aliar o real ao imaginário, de recobrir
ávida do véu diáfano da sua imaginação criadora. Daí o Defunto, a Perfeição e
outros contos que ficarão como as suas obras mais acabadas de artista, ou antes
de artífice consumado na arte dos lavores sutis e delicados, mas que sabe pôr
inspiração e sentido nas mesmas obras secundárias de sua recreação espiritual,
como os que fizeram as figurinhas de Tanagra ou os cinzeladores a Benevenuto Cellini
ou os ceramistas das ninharias valiosas de Sèvres ou Saxe. Não que ele fosse de
nenhum modo um simbolista. Era bastante grande para não suportar uma etiqueta.
Mas o seu espírito largo, como o de um cético, impressionável como o dos
poetas, compreensivo como o de um analista, apanhava de cada corrente literária
o que nela havia de consoante ao seu gênio — que bastava para manter, na
variedade da sua inspiração e da sua forma, a unidade da sua obra.
Por mal da literatura portuguesa
e da nossa — é perante escritores do seu valor que compreendemos a
solidariedade que a mesma língua estabelece entre literaturas diferentes — essa
obra veio interromper a "colossal iniquidade da morte", quando
porventura novas inspirações pudessem mostrar outras feições do seu talento. Ele,
sabe-se pelos seus íntimos, sonhava ou imaginava romances de santos, aproveitar
para sua a arte as lendas hagiográficas de que estão cheias as poéticas
tradições da sua pátria, reunir em livro os seus contos e novelas,
sujeitando-os primeiro a uma escolha rigorosa e a uma revisão severa, dar a última
forma a Fradique Mendes, e publicar,
completamente refeito em um livro novo, a
Ilustre Casa de Ramires.
Destes projetos, nem todos
inutilizou a morte — mas desmanchou talvez os mais prometedores deles, parando
o movimento do cérebro onde eles se elaboravam e tomariam forma. A sua obra
publicada, porém, parece já bastante para justificar no futuro a estima e
admiração dos seus contemporâneos. Prova que havia nela, apesar das
reminiscências de que falei, uma grande e funda originalidade, e que, apesar de
numerosos imitadores, não pôde ser jamais imitada. Houve dela nas duas línguas
apenas arremedos desajeitados.
O que foi Garrett para a língua
portuguesa na primeira metade do século, foi Eça de Queirós na segunda. Os seus
últimos escritos, e as edições definitivas dos seus primeiros livros, são o
mais excelente exemplo de correção, unida à elegância, à beleza verdadeiramente
artística, de uma língua que, conservando a sua pureza, a sua índole, mostra-se
plástica bastante para exprimir nas suas mais delicadas e sutis gradações toda
a gama das ideias e sensações modernas.
---
JOSÉ VERÍSSIMO
"Homens e Coisas" (1899-1900)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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