7/15/2019

Jornada de purificação (Crônica), de Sylvio Floreal


Jornada de purificação
(Para os humildes e os iluminados — este poema de ternura)

A beleza que fascina eternamente a alma dos sonhadores é a que jaz embuçada na névoa translúcida do além das miragens.

Dentro do vago, do incerto e do esquivo é que germinam todas as emoções maravilhosas que constituem o noivado perene das almas profundas dos semeadores de esperanças e ritmos.

do casulo quimérico da Distância que sai a falena de uma nova Beleza. A Beleza é uma parábola divina escrita na Bíblia do Infinito.

Assim pensava eu, naquela tarde em que o tédio, achando as portas da minha alma abertas, nela entrou silenciosamente. Mas não era esse tédio banal que sói acometer os inócuos, amalgamado nos baixios de todas as torpezas da vida, não. Era o que se urde nos planos superiores da mesma, oriundo do cansaço excruciante dos lugares comuns, das ideias estranguladas no nascedouro, pela rotina das emoções, enquanto iam a caminho de uma meta. E o meu mundo interior, donde às vezes, para contemplar e sentir o exterior, eu me refugio, decrescia, à carência do perfume vital das seivas inéditas.

Nisto lampejou desse mundo, onde as últimas esperanças jaziam sepultas, a flama de um fogo-fátuo, que iluminou a ressurreição de uma ideia salvadora. Delineei, mestamente, o almo cilício de uma peregrinação.

E num gesto que traduzia um grande desafio aos caminhos virgens, preparei então o meu viático espiritual.

E por entre o silêncio de paisagem, nimbada pelos derradeiros laivos tremulantes do crepúsculo, que, como o sumo emoliente da romã, sobre ela se expandia, emprestando-lhe assim estranha sonoridade diáfana, encetei a jornada gloriosa da Esperança.

Caminhei, caminhei sem encontrar nesse novo caminho de Damasco o brilho benfazejo de um raio redentor.

Ia com o peito cheio desse misterioso encanto que o Infinito tamisa misteriosamente na alma, produzindo um êxtase interior, todo feito de salmos suaves como o eco dulcíssimo de um canto de rouxinol, que subindo da quietude da noite, lentamente fosse morrer entre o silêncio dos astros.

Esta embriaguez psíquica alheava-me tanto das coisas terrenas, que nem mesmo as sensações que atuam sobre a visualidade eu percebia.

A noite fazia a sua descensão do céu, envolvendo tudo no seu pálio consolador, onde há um bálsamo que transfigura, e parecia murmurar à alma de toda a natureza que chorava a orfandade da luz, uma prece ungida de conforto e resignação. Parei. Fitei melancolicamente a estrada que se alongava silente como uma tentação à voragem da minha ânsia.

Um lusco-fusco de renúncia parecia entrar o âmago das coisas.

Abatida e atônita, a Natureza ia como que contrariada receber despoticamente a imobilidade.

A mudez absoluta do ambiente tinha qualquer coisa de pressago.

Condenava-se misteriosamente naquela tristeza, que era um misto de revolta e submissão, um acontecimento inesperado.

Ereta, como um repto à cólera dos elementos se eleva ao meu lado uma árvore matusalém.

Esquadrilhei-a sofregamente, desde o tronco até as ramadas, com uma avidez interrogativa.

Queria que ela rompesse aquela mudez de esfinge vegetal e me narrasse a legenda dolorosa de todos os que por ali esmaram e a quantas gerações de cigarras dera guarida e seiva, a quantos pássaros errantes emprestara para berço os seus galhos, sob o calafrio de quantos raios estremecera e as tragédias de quantas tempestades rolaram por sobre a clemência de sua copa!...

Naquele momento senti a tortura de ser homem. Queria-me diluir, para surpreender o segredo das coisas, transformar-me em átomo e subir aos céus, desfazer-me em água e descer até o silêncio eterno das grutas.

Metamorfosear-me em fogo e acalentar a alma fria das coisas, palpitar no sangue da terra, vibrar dentro de uma flor, na clorofila dos vegetais, e ascender gloriosamente aos astros como um aroma sonoro, sem me lembrar da estância que ficaria neste mundo, onde há poucas almas que são vassalas da Beleza!

E agachando-me para melhor sentir aquilo que não se comunica pela volição da palavra, mas que murmureja suavemente no além de toda a existência, ajoelhei-me ao pé da árvore, enviando um pensamento sublime a todos os que sofreram ontem, sofrem hoje e sofrerão amanhã.

E antes desse momento vago e esquivo da vigília, que forma dentro de nós como que uma ponte invisível, pela qual passamos até a imobilidade do sono, uma inquietação subia lentamente do fundo de tudo o que me rodeava.

E um murmúrio sôfrego de arroubos indistintos vinha até o meu ouvido.

Eram ósculos que espoucavam na quietude do húmus, anunciando a ressurreição de novas energias, frêmitos de ânsias encarceradas no mistério das seivas, suspiros maviosos de sonhos ignotos, de esperanças sem destino, de belezas sagradas, que esperam vigilantes, lá no fundo da penumbra da terra que uma alma irmã as desencante para glória da eternidade e deslumbramento dos homens. E o meu corpo exausto encontrou sobre aquela alfombra fria o mais tépido dos frouxéis.

Pairou então sobre mim a calma heroica e luminosa de quem dorme sobre todas as renúncias.

O luar punha por sobre o bruno das folhagens, esquivas iluminuras de alumínio que davam a impressão de filigranas de prata nova a fulgirem nas trevas.

O meu espírito naquela solidão desdobrava-se persistentemente.

Sentia em torno de mim como que uma aluvião de vultos confusos, esfumados, a me solicitarem para um colóquio.

Comecei a monologar tão suavemente, que até me parecia estar dialogando com alguém que tivesse comigo uma afinidade profunda.

As palavras vinham de tão longe e traziam a melodia de um som que houvesse noivado com perfume por toda uma eternidade, dentro da corola de um Lotus.

E dominando, com a sua voz rítmica, todo o silêncio, começou a falar como quem dita para o interior de uma urna um poema de fé e esperança:

— Glorifica a luz com a tua luz, aprisiona o mundo no teu mundo, oferece a tua esperança aos que não têm esperança. Sê dadivoso com os que sofrem, revela um destino aos que não têm destino.

Fala da eternidade aos seres que, não se lembrando do passado, se esquecem do dia de hoje e temem o dia de amanhã.

Desperta a alma nas almas: acorda a Beleza!...

Os seres privilegiados são os expoentes de si mesmos, são avatares que descem à terra com um sorriso celestial nos lábios, para aqui deixarem impressos, nas paisagens do mundo, não a sua sombra, mas um deslumbramento nas consciências, uma esperança nos corações e um eterno ritmo de Beleza nas almas...

Passar pela terra como Ariel e revelar aos homens, numa linguagem de ofertório, o ritual maravilhoso das Belezas que estão encantadas no arcano das suas próprias almas, é contribuir com um pouco de óleo espiritual para alentar a lâmpada que ilumina a nave da eternidade. Para que uma beleza se plasme nos corações humanos, é necessário ter estampada no rosto a serenidade que perdoa; nos gestos, a suavidade do veludo e no verbo o perfume que inebria.

Quando uma dúvida te assediar, implora ardentemente a proteção do Infinito, porque é lá que estão, num hostiário maravilhoso, todas as esperanças que hão de vir à terra.

As horas da angústia, aproveita-as a esquadrinhar o teu ser; entra sempre mais nas profundidades do teu próprio coração. Sofre silenciosamente com alegria. A dor te ensinará a criar para o mundo uma nova Beleza.

Nunca fales de dentro das paixões: fala sempre por cima das almas.

Sê, sempre que puderes, um semeador bendito e planta na seara das almas as oliveiras da paz e os loureiros da glória.

Faze de teu entusiasmo uma lira e entra nos corações moribundos, cantando a beleza da vida. Quando vires alguém chorar, dize-lhe que está aprendendo a ser feliz. Toda a lágrima é um prenúncio de redenção. Sobre os sentidos estiolados ela opera a mesma magia que uma gota d’orvalho no cálice emurchecido de um lírio.

Há criaturas na terra que nunca tiveram esperanças e vivem alheias ao próprio coração. Sê mavioso e sutil para com elas. Entra mansamente no sacrário dessas almas inquietas e estabelece lá o silêncio da tua alma; projeta uma onda divina de consolo; sê o farol maravilhoso de todos os que naufragaram intimamente nas caudais de suas dores e andam perdidos na noite da dúvida, a tatear pelo mundo como aves que partiram as asas! A ternura é irmã gêmea da luz: enaltece todas as consciências, reabilita todos os corações e transfigura todas as almas. Nunca prometas aquilo que não tens. Promete somente o que está em todos os corações — a Felicidade.

A felicidade ninguém a deve esperar, porque ela está dentro de nós mesmos.

Ensina a ser feliz, porque só assim terás revelado aos homens o duplo senso da vida.

A todos os que vivem asperamente, na mais completa ausência de conforto espiritual, ministra-lhes a tua candura, comunica-lhes a fé do teu verbo, dá-lhes o calor do teu fogo. És bom e desprendido, perfuma as almas com a tua bondade.

Lapida a tua alma para que a possas engastar, pura e diáfana, na alma dos homens. Faze-te apóstolo-ourives, São Paulo e Leonardo da Vinci, e com a fé do primeiro, vincula o amor nos corações; com a serenidade olímpica do segundo, plasma a Beleza nas almas.

Não faças monopólio das qualidades que os poderes ocultos te deram, porque quanto mais as difundires, mais elas se renovarão dentro de ti.

A tua missão é doar, doar sempre, como as manhãs doam o rosicler às árvores e às flores, o sol doa a sua luz às montanhas e aos vales e o céu doa a sua espiritualidade a este mundo e aos mundos!

Põe sempre naquilo que disseres a força do teu entusiasmo e a essência da tua sinceridade. Sê como o profeta São João, e batiza com a água sagrada do rio da tua esperança todas as criaturas que pelo mundo vagueiam sem rumo. Sempre que encontrares em teu caminho criaturas aflitas, às que falte esse elo que as apegue à vida que é a Esperança — traço da união entre a terra e o céu — para! Ilumina-as interiormente, porque junto a ti terás nesse momento a sombra fulgurante de Alguém que estabelece o equilíbrio da Verdade e da Harmonia no Universo.

E fala então do Amor, desse cântico maravilhoso da Bíblia da Vida.

O Amor, síntese do céu, perfume do mistério, é a única força divina que opera tal prodígio de transfiguração, que a própria vida se torna tão leve, a ponto de fazer o Homem se esquecer de que anda sobre a terra. Só o amor consegue dar um brilho novo às almas; tudo se purifica debaixo do seu halo, feito da luz de todas as Belezas.

Quando tudo falece e se desmorona, a única energia indestrutível que fica, capaz de tudo refazer novamente, é o Amor, partícula da Eternidade, verbo que anuncia todos os princípios, ânsia dos infinitos, que transmigra pelo infinito das almas.

E a voz, como que encantada daquilo que dissera, antes de se despedir, abençoou-me silenciosamente e disse: — Eu venho do além de toda a Luz, onde o Amor noiva com a Eternidade; os que na terra se ungirem de mim, recebem para todo o sempre o batismo inefável do céu.

Sou a mensageira de Avatar, peregrina que traz ao Mundo a lâmpada que ilumina as almas. Oh viajor! Prossegue na tua jornada de purificação. Sou a Beleza, a tua parábola divina escrita na Bíblia do Infinito.

Revista Panóplia, dezembro de 1918.



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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.

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