Jornada
de purificação
(Para
os humildes e os iluminados — este poema de ternura)
A beleza que fascina eternamente a alma dos sonhadores é a que jaz embuçada na névoa translúcida do além das miragens.
Dentro do vago, do incerto e do
esquivo é que germinam todas as emoções maravilhosas que constituem o noivado
perene das almas profundas dos semeadores de esperanças e ritmos.
do casulo quimérico da Distância que sai
a falena de uma nova Beleza. A Beleza é uma parábola divina escrita na Bíblia
do Infinito.
Assim pensava eu, naquela tarde em que
o tédio, achando as portas da minha alma abertas, nela entrou silenciosamente.
Mas não era esse tédio banal que sói acometer os inócuos, amalgamado nos
baixios de todas as torpezas da vida, não. Era o que se urde nos planos
superiores da mesma, oriundo do cansaço excruciante dos lugares comuns, das
ideias estranguladas no nascedouro, pela rotina das emoções, enquanto iam a caminho
de uma meta. E o meu mundo interior, donde às vezes, para contemplar e sentir o
exterior, eu me refugio, decrescia, à carência do perfume vital das seivas
inéditas.
Nisto lampejou desse mundo, onde as
últimas esperanças jaziam sepultas, a flama de um fogo-fátuo, que iluminou a
ressurreição de uma ideia salvadora. Delineei, mestamente, o almo cilício de
uma peregrinação.
E num gesto que traduzia um grande
desafio aos caminhos virgens, preparei então o meu viático espiritual.
E por entre o silêncio de paisagem,
nimbada pelos derradeiros laivos tremulantes do crepúsculo, que, como o sumo
emoliente da romã, sobre ela se expandia, emprestando-lhe assim estranha
sonoridade diáfana, encetei a jornada gloriosa da Esperança.
Caminhei, caminhei sem encontrar nesse
novo caminho de Damasco o brilho benfazejo de um raio redentor.
Ia com o peito cheio desse misterioso
encanto que o Infinito tamisa misteriosamente na alma, produzindo um êxtase
interior, todo feito de salmos suaves como o eco dulcíssimo de um canto de
rouxinol, que subindo da quietude da noite, lentamente fosse morrer entre o
silêncio dos astros.
Esta embriaguez psíquica alheava-me
tanto das coisas terrenas, que nem mesmo as sensações que atuam sobre a
visualidade eu percebia.
A noite fazia a sua descensão do céu,
envolvendo tudo no seu pálio consolador, onde há um bálsamo que transfigura, e
parecia murmurar à alma de toda a natureza que chorava a orfandade da luz, uma
prece ungida de conforto e resignação. Parei. Fitei melancolicamente a estrada
que se alongava silente como uma tentação à voragem da minha ânsia.
Um lusco-fusco de renúncia parecia
entrar o âmago das coisas.
Abatida e atônita, a Natureza ia como
que contrariada receber despoticamente a imobilidade.
A mudez absoluta do ambiente tinha
qualquer coisa de pressago.
Condenava-se misteriosamente naquela
tristeza, que era um misto de revolta e submissão, um acontecimento inesperado.
Ereta, como um repto à cólera dos
elementos se eleva ao meu lado uma árvore matusalém.
Esquadrilhei-a sofregamente, desde o
tronco até as ramadas, com uma avidez interrogativa.
Queria que ela rompesse aquela mudez
de esfinge vegetal e me narrasse a legenda dolorosa de todos os que por ali
esmaram e a quantas gerações de cigarras dera guarida e seiva, a quantos
pássaros errantes emprestara para berço os seus galhos, sob o calafrio de
quantos raios estremecera e as tragédias de quantas tempestades rolaram por
sobre a clemência de sua copa!...
Naquele momento senti a tortura de ser
homem. Queria-me diluir, para surpreender o segredo das coisas, transformar-me
em átomo e subir aos céus, desfazer-me em água e descer até o silêncio eterno
das grutas.
Metamorfosear-me em fogo e acalentar a
alma fria das coisas, palpitar no sangue da terra, vibrar dentro de uma flor,
na clorofila dos vegetais, e ascender gloriosamente aos astros como um aroma
sonoro, sem me lembrar da estância que ficaria neste mundo, onde há poucas
almas que são vassalas da Beleza!
E agachando-me para melhor sentir
aquilo que não se comunica pela volição da palavra, mas que murmureja
suavemente no além de toda a existência, ajoelhei-me ao pé da árvore, enviando
um pensamento sublime a todos os que sofreram ontem, sofrem hoje e sofrerão
amanhã.
E antes desse momento vago e esquivo
da vigília, que forma dentro de nós como que uma ponte invisível, pela qual
passamos até a imobilidade do sono, uma inquietação subia lentamente do fundo
de tudo o que me rodeava.
E um murmúrio sôfrego de arroubos
indistintos vinha até o meu ouvido.
Eram ósculos que espoucavam na
quietude do húmus, anunciando a ressurreição de novas energias, frêmitos de
ânsias encarceradas no mistério das seivas, suspiros maviosos de sonhos
ignotos, de esperanças sem destino, de belezas sagradas, que esperam
vigilantes, lá no fundo da penumbra da terra que uma alma irmã as desencante
para glória da eternidade e deslumbramento dos homens. E o meu corpo exausto
encontrou sobre aquela alfombra fria o mais tépido dos frouxéis.
Pairou então sobre mim a calma heroica
e luminosa de quem dorme sobre todas as renúncias.
O luar punha por sobre o bruno das
folhagens, esquivas iluminuras de alumínio que davam a impressão de filigranas
de prata nova a fulgirem nas trevas.
O meu espírito naquela solidão
desdobrava-se persistentemente.
Sentia em torno de mim como que uma
aluvião de vultos confusos, esfumados, a me solicitarem para um colóquio.
Comecei a monologar tão suavemente,
que até me parecia estar dialogando com alguém que tivesse comigo uma afinidade
profunda.
As palavras vinham de tão longe e
traziam a melodia de um som que houvesse noivado com perfume por toda uma
eternidade, dentro da corola de um Lotus.
E dominando, com a sua voz rítmica,
todo o silêncio, começou a falar como quem dita para o interior de uma urna um
poema de fé e esperança:
— Glorifica a luz com a tua luz,
aprisiona o mundo no teu mundo, oferece a tua esperança aos que não têm
esperança. Sê dadivoso com os que sofrem, revela um destino aos que não têm
destino.
Fala da eternidade aos seres que, não
se lembrando do passado, se esquecem do dia de hoje e temem o dia de amanhã.
Desperta a alma nas almas: acorda a
Beleza!...
Os seres privilegiados são os
expoentes de si mesmos, são avatares que descem à terra com um sorriso
celestial nos lábios, para aqui deixarem impressos, nas paisagens do mundo, não
a sua sombra, mas um deslumbramento nas consciências, uma esperança nos
corações e um eterno ritmo de Beleza nas almas...
Passar pela terra como Ariel e revelar
aos homens, numa linguagem de ofertório, o ritual maravilhoso das Belezas que
estão encantadas no arcano das suas próprias almas, é contribuir com um pouco
de óleo espiritual para alentar a lâmpada que ilumina a nave da eternidade.
Para que uma beleza se plasme nos corações humanos, é necessário ter estampada
no rosto a serenidade que perdoa; nos gestos, a suavidade do veludo e no verbo
o perfume que inebria.
Quando uma dúvida te assediar, implora
ardentemente a proteção do Infinito, porque é lá que estão, num hostiário
maravilhoso, todas as esperanças que hão de vir à terra.
As horas da angústia, aproveita-as a
esquadrinhar o teu ser; entra sempre mais nas profundidades do teu próprio
coração. Sofre silenciosamente com alegria. A dor te ensinará a criar para o
mundo uma nova Beleza.
Nunca fales de dentro das paixões:
fala sempre por cima das almas.
Sê, sempre que puderes, um semeador
bendito e planta na seara das almas as oliveiras da paz e os loureiros da
glória.
Faze de teu entusiasmo uma lira e
entra nos corações moribundos, cantando a beleza da vida. Quando vires alguém
chorar, dize-lhe que está aprendendo a ser feliz. Toda a lágrima é um prenúncio
de redenção. Sobre os sentidos estiolados ela opera a mesma magia que uma gota
d’orvalho no cálice emurchecido de um lírio.
Há criaturas na terra que nunca
tiveram esperanças e vivem alheias ao próprio coração. Sê mavioso e sutil para
com elas. Entra mansamente no sacrário dessas almas inquietas e estabelece lá o
silêncio da tua alma; projeta uma onda divina de consolo; sê o farol
maravilhoso de todos os que naufragaram intimamente nas caudais de suas dores e
andam perdidos na noite da dúvida, a tatear pelo mundo como aves que partiram
as asas! A ternura é irmã gêmea da luz: enaltece todas as consciências,
reabilita todos os corações e transfigura todas as almas. Nunca prometas aquilo
que não tens. Promete somente o que está em todos os corações — a Felicidade.
A felicidade ninguém a deve esperar,
porque ela está dentro de nós mesmos.
Ensina a ser feliz, porque só assim
terás revelado aos homens o duplo senso da vida.
A todos os que vivem asperamente, na
mais completa ausência de conforto espiritual, ministra-lhes a tua candura,
comunica-lhes a fé do teu verbo, dá-lhes o calor do teu fogo. És bom e
desprendido, perfuma as almas com a tua bondade.
Lapida a tua alma para que a possas
engastar, pura e diáfana, na alma dos homens. Faze-te apóstolo-ourives, São
Paulo e Leonardo da Vinci, e com a fé do primeiro, vincula o amor nos corações;
com a serenidade olímpica do segundo, plasma a Beleza nas almas.
Não faças monopólio das qualidades que
os poderes ocultos te deram, porque quanto mais as difundires, mais elas se
renovarão dentro de ti.
A tua missão é doar, doar sempre, como
as manhãs doam o rosicler às árvores e às flores, o sol doa a sua luz às
montanhas e aos vales e o céu doa a sua espiritualidade a este mundo e aos
mundos!
Põe sempre naquilo que disseres a
força do teu entusiasmo e a essência da tua sinceridade. Sê como o profeta São
João, e batiza com a água sagrada do rio da tua esperança todas as criaturas
que pelo mundo vagueiam sem rumo. Sempre que encontrares em teu caminho
criaturas aflitas, às que falte esse elo que as apegue à vida que é a Esperança
— traço da união entre a terra e o céu — para! Ilumina-as interiormente, porque
junto a ti terás nesse momento a sombra fulgurante de Alguém que estabelece o
equilíbrio da Verdade e da Harmonia no Universo.
E fala então do Amor, desse cântico
maravilhoso da Bíblia da Vida.
O Amor, síntese do céu, perfume do
mistério, é a única força divina que opera tal prodígio de transfiguração, que
a própria vida se torna tão leve, a ponto de fazer o Homem se esquecer de que
anda sobre a terra. Só o amor consegue dar um brilho novo às almas; tudo se
purifica debaixo do seu halo, feito da luz de todas as Belezas.
Quando tudo falece e se desmorona, a
única energia indestrutível que fica, capaz de tudo refazer novamente, é o
Amor, partícula da Eternidade, verbo que anuncia todos os princípios, ânsia dos
infinitos, que transmigra pelo infinito das almas.
E a voz, como que encantada daquilo
que dissera, antes de se despedir, abençoou-me silenciosamente e disse: — Eu
venho do além de toda a Luz, onde o Amor noiva com a Eternidade; os que na
terra se ungirem de mim, recebem para todo o sempre o batismo inefável do céu.
Sou a mensageira de Avatar, peregrina
que traz ao Mundo a lâmpada que ilumina as almas. Oh viajor! Prossegue na tua
jornada de purificação. Sou a Beleza, a tua parábola divina escrita na Bíblia
do Infinito.
Revista Panóplia, dezembro de 1918.
---
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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