Idílio Roxo
Sara conseguiu um dia feliz. Os
cansaços angustiosos, com que a tosse irritante a mortificara, serenaram um
pouco nesta clara manhã de equinócio.
Terminado o jantar, às cinco, a sua
voz, de citara noturnizando, melodiou aos meus ouvidos:
– Vamos namorar a tarde?... Ela está
linda!
Não lhe retorqui. De um salto
apanhei a casquette, e pronto!
Partamos, Sara. Ela desceu, como sempre, acompanhada, respeitosamente, da
velha, da ereta e grave D. Maria, que nós, nas parlendas da serra, para afetar
vilegiatura nobre de touristes da nata, da upper criam, carismamos por conta própria, inglesando seu nome na aspereza
acre de Mary. Caracterizávamos, por esta forma, o seu tipo esquelético de loira
quinquagenária, penteada de bandos românticos, e dávamo-nos, pretensiosamente,
ares galantes deuropeísmo na agrestidade daquelas alturas verdes. Demais, para
o forçado coquetismo de Sara, era isso uma nota chic um traço elegante de viver superior, porque essa pobre rapariga
pálida, de olhos veludosos de uvas negras – turgindo da volúpia morna de um
morno quebranto – a cabeleira encaracolada, que lhe esculpia a cabeça com uma
cariciosa expressão de criança romântica, possuía o elevado requinte da
futilidade numa irradiação moderna e histérica de formas.
O resto de vida que se lhe
esvaziava, noite a noite, nos esburgos da gosma pulmonar, dir-se-ia
concentrar-se nas preocupações elegantes da sua pessoa, cuja plástica delgada de
estátua alegórica movia-se com a coleante flexibilidade das serpentes feridas.
Quando ela aparecia ao sol das dez,
na sala de hotel, agitando rendas sobre rendas, numa feliz ilusão de se fazer
menos magra, e mais polibétala que uma rosa branca, a encher o ambiente com
trescalos fidalgos de crab-apple, não
havia pupila que não cintilasse de desejos acesa, nem percepção que se
enganasse com a saúde artificial daquela
criatura, esvelta e solerte, que siflara, angustiosa, nos acessos da tosse,
durante o silêncio pesado das noites.
Foi, também, por um capricho de excepcional,
procurando cercar-se de todos os insignificantes detalhes do imprevisto e do esquis, para fosforear o rastro da sua
personalidade, que ela, um mês depois de nos conhecermos na diária da mesma
locanda, carregou os sobrolhos, aprumando, nervosa, a cabeça, porque eu tivera
a criminosa irreverência de a chamar – Mademoiselle
– após um cherzo de Beethoven dedilhado, ao acaso, no gasto teclado do piano
frouxo, e quando a sua pequenina orelha transparente se inclinara ao pieguismo
dúbio do flirt.
– Oh! exijo que me chame. Sara
Simplesmente Sara.
Desde esse momento, mesmo diante da
gravidade ossuda da respeitável Mary, jamais meus lábios titubearam postiçarias
de formalidades.
Sara passou a ser a minha meiga e
íntima camaradagem, insexualizada como as Visões, apenas lembrando um vago de
mulher pelo aroma de suas cambraias rendilhadas e pela insídia amolentadora de
seus olhos, luminosamente negros.
– Para onde seguiremos, Sara? –
perguntei.
Ela não respondeu. Tomou-me do braço
e descemos para os lados tranquilos do
Sul.
Março extinguia-se numa viuvez
serena de quaresmas florescentes e
vesperais crepúsculos agoniados de violetas machucadas. À margem do caminho, na
ramaria alta das velhas árvores, por onde cigarras, ao mormaço equatorial das
sestas, sanfoneavam em pós prelúdios de cicios longos, nevavam pulverizações
suaves de ametistas trituradas, como se uma triste flor invisível abandonasse,
no desalento dos repúdios, o pólen ressequido e inútil. E esse brando colorido
de melancolias vivas derramava-se do céu pela extensão queda dos vales, alastrando-se
no círculo enorme de toda a paisagem, distendendo os planos pelo esbatimento
das distâncias, envolvendo a longitude num afago dormente de lágrimas ainda não
enxutas, e lilaseando a faixa do horizonte, lá-baixo, numa tenuidade de zainfe
sagrado, aberto sobre a remotíssima paragem dos prometimentos fugitivos.
Íamos descendo...
Sara descansou mais sobre o meu
braço a leveza do seu busto. Muda, pisando serena e certa, pupilas absortas e
brumosas das sugestões sentimentais deste vagaroso crepúsculo de endoenças,
suas pequenas narinas de nervosa resfolegavam; havia no seu respiro o rítmico
siflo, quase imperceptível, do soprar dum fole. Pelo langor do seu corpo
percebi que o recolhimento da paisagem a envolvia, possuindo-a, fazendo-a
penetrar o seu mistério, alentando-a pela acridade aromática do seu bafo... E
silêncio, extensões, hálitos mornos de folhas, emanações da terra,
embriagavam-na, excitavam a sua imaginativa, fazendo-a construir, mentalmente,
com a nostalgia da hora, o romance de tristezas que as tuberculosas soem
compor, tecidos de ilusões e lembranças vagas, como uma música que espira sob a
dormência de uma volúpia.
Mary, agoniada pela distância,
deixara-se ficar numas lajes da escarpa.
Nós, porém, continuamos a descer, de
manso, sem palavras. De repente, ela aspirou forte.
– Sente?... É o aroma dos lírios.
A estrada resvalava em curva, ao
sopé da macega baixa da chapada. Estávamos na base do pendor, onde denegria a
legendária Ponte dos Suspiros, cujos barrotes repercutiam o rumorejo fresco do
córrego, refrangendo-se nos pedregulhos soltos da socava.
Paramos. Sara declarou que sentia
fadiga, e queria penetrar-se da solidão que amodorrava o tom viúvo da tarde
tristíssima.
Então, amparada pelo rebordo da
ponte, ainda braço sobre braço, aí permanecemos sem uma palavra que rompesse o
silêncio de um torno, olhos postos na planície violácea, estendida para além,
rasa e ampla, até o aglomero tufoso dos matos, já roxeando no fusco das trevas.
E nesta quietitude espasmódica de natureza adormecida, pressentia-se que de
asas espalmas, plasplaceando ondulantes e esgueiradas, passava teimosa,
persistente repassava, a Saudade longa das deserções eternas. Logo, pelos
ramalhos pára-solados, pelo emaranhado do mato, no rastejamento das ervas,
estremecia o quer que fosse, um desofego de peito cansado, de que o aroma
branco dos brancos lírios era o hálito virgem, evolando-se num beijo demorado e
intenso, de partida...
Neste momento, Sara falou-me baixo,
queixosa e tímida:
– Sabe?... levo um grande pesar da
vida...
E depois de uma pausa atalhando-me a
pergunta:
– É o de nunca ter experimentado a
sensação de um beijo... de amor. Oh! nunca os lábios de um homem tocaram-me nas
faces!
Quando a fixei, ela tinha inclinado
a cabeça aflita, seu olhar negro e veludoso boiava no alvejamento de Desejos
angustiosos, e eram tão súplices os seus lábios! era tão pedinte a sua boca!
que eu tive o impulso de lhe dar o consolo desta carícia. Mas, os bizarrismos
do seu espírito de enferma crestaram bem cedo os rebentos do meu amor; seria
impossível revivescê-los agora só pelo desvario concupiscente de um gozo
efêmero e favorecido. Ela, compreendendo meu pensamento, gemeu ofegante:
– Beija-me... Sim?
Mudamente, obedeci. Era a vontade de
uma condenada, e eu, por mais que me repugnasse a satisfação desse lascivo
desejo, que a impudicícia de uma alucinação trazia boca de uma criança, não
tinha energias para a cruel negativa. Ao curvar-me para ela, procurando sua
fronte, encontrei a febre de seus lábios sôfregos à espera dos meus. E
unimo-los docemente, demoradamente, numa junção noival, premindo as nossas
mucosas na umedecência dos mesmos anseios; eu – perdida razão, animalizado pelo
contacto ofertante da imácula carne febril; ela – dominada pelo seu gozo,
radiando nas faces, esfuziando no olhar, aceso o hálito fremente, que lhe punha
no respiro compassado a delonga sugada dos prazeres primeiros...
Por fim, vencida, cerraram-se-lhe as
pálpebras, exaustas; uma palidez de luar morrente alastrou-se por suas faces,
marmorizando-lhe a linda cabeça de bambina, e um acesso de tosse rouca
sacudiu-lhe a escoriada caverna do busto.
A noite despregava-se lenta,
lentíssima, de opérculo remoto, franzindo a quietitude roxa do espaço e, no
isolamento” estagnado, o balido fanho duma ovelha tardia cavou o silêncio,
sonorizando nas quebradas o eco reminiscente do Angelus.
Sara, acometida por outro acesso de
tosse, levou rapidamente o lenço à boca, mas, inútil a presteza do gesto! – de
seus lábios escapou-se, de jato, uma golfada de sangue, que estalou, surda; no
chão, e ficou-se coagulhenta, estriada em lágrimas solidificadas, sulferina e
regulgente, na roxidão do dia extinto.
Quando nos pusemos a caminho, ora
lentamente, medindo o passo a fugir do esforço, a natureza aerizava-se nesta
melancolia quaresmal de março, toda ela roxa, mas, agora, de um roxo turvo,
tingindo de saudades tumulares a tristeza imensa da Terra.
Só, infiltrante e dulçoroso, o aroma
virgem dos brancos lírios vivia no ar, como se o óleo perfumado e purificador
de uma âmbula houvesse escorrido sobre nós para a extrema-unção do nosso
noivado sem mácula, e – assim, confundo-se com a Natureza, lembrava de algum
modo, na agonia silenciosa da tarde, o hálito de um resignado sorriso à ilusão
inefável de um gozo que nunca mais voltaria... nunca mais!... nunca mais!...
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