Glória latente
Até que,
sentindo no pensamento as ideias nítidas, recortadas como arabescos em aço e a grande
vida da paixão como um tumulto de asas de águia num entalho de escarpas; delineada
a pauta da meditação; a harmonia geral do poema como preludiada em sinfonia; o ardor
nervoso, que precede a composição, mordendo o freio de ouro do metro e da disciplina
planejada, sôfrego como um cavalo de guerra num começo de balada: – plenamente
possuído da obra, ele resolveu-se a tomar a pena.
No papel em
branco, lustroso, iriava-se por uma zona estreita um reflexo do claro dia. Ele deixou-se
fascinar pelo brilho da folha. Era como um rio de luz infinitamente.
O primeiro
canto celebraria a Vontade e o Amor, inteligência e instinto, as feições primordiais
da existência poeticamente delimitadas e o encontro destas energias, distintas,
confundindo-se como sexos, ou divergindo violentamente para promover os dramas
da natureza e da humanidade. A Vontade agita o caos; o Amor encaminha a
agitação; a Vontade cria o mundo, o Amor perpetua.
Concluiria por
um quadro do terror dos homens pré-históricos, nas vésperas de um grande cataclisma...
Ao alcance da
mão tinha o tinteiro, algumas gotas do sangue negro dos livros.
– Era aquilo a
forma. Bastava colher habilmente no cristal o fio líquido e desfiar na página.
Ali dormia o
estilo na síntese fluida do bocal, a cor, o desenho sábio da palavra.
Palavra?...
Sim, o veículo da vaidade de que o escritor depende, palavra, o mesmo vil instrumento
das permutas do interesse e do apetite.
Uma dúvida de
repugnância paralisou-lhe a pena.
– Escrever:
formular, comunicar. Mas que pretendemos dos outros? Aplauso? A arte que vive
do aplauso rebaixa-se, prostitui-se; as chamas ardem para cima. Critério? A
arte que não tem apoio na convicção da própria força sucumbe; a hesitação
atrofia e anula; a arte forte cresce de si mesmo, organicamente. De que lhe
podia valer a eleição do vulgo?
Formulem os
músicos ambulantes da expressão, os mercadores de espírito, que vão de feira em
feira, pelas cidades da tolice humana, mostrando o próprio talento como um asno
douto, ou um macaco esperto, os mercadores de plástica, que despem em público a
imaginação, pobre escrava palpitante, e oferecem a pura carne à fome grosseira
de quem a compre, a flor da epiderme cultivada ao dente brutal das feras do
prazer. Formulem os pregoeiros de opinião, pagos a preço de renome, em moeda
corrente de lisonja, e os outros, os que vencem, os grandes homens do ventre,
mordomos do consumo dos povos, chamados políticos, supostos governos,
preciosamente agaloados por maior brilho de ucharia, às ordens do Vulgo
poderoso...
O canto
segundo resumiria a construção histórica da Vontade: sociedade, impérios, as corrupções,
as guerras acabando pelo espetáculo de Roma espavorida, estalando as calçadas de
mármore das praças sob o galope da cavalaria dos bárbaros.
– Podia
escrever, admitiu. E molhou a pena. Uma lágrima mais grossa da tinta voltou ao tinteiro.
Podia escrever. Findo o trabalho, perfeito de grandiosa inutilidade,
entregá-lo-ia ao fogo. Ninguém saberia daquela existência artística ali
começada, ali destruída: ele só, depois da alegria da criação, sem apreço, sem
desdém, assistindo, de alto, ao perecimento da obra, como a divindade
indiferente que visse esgotar-se a vida emprestada a um meteoro.
Que sublime
poder, esta imolação da vaidade ao orgulho! O livro em retorno ao não-ser original,
independente de estranho juízo, glória bravia de estrela, vivida, consumida num
recanto insondado do espaço, longe da admiração, longe do olhar, virgem da
crítica, alheia aos homens como a fatalidade!...
O canto
terceiro seria a notícia épica dos fatos do Amor, religiões, com o argumento
das filosofias, perseguições, martírios, num quadro da Idade-Média. Serviria de
remate à agonia do último Cruzado em São João d’Acre, velho, esquecido desde
muito da sua dama, negando Deus, prevendo e lamentando um futuro a chegar em
que a Vontade predominaria inteiramente, vestida na frase de todos os
disfarces, saudando enfim a Morte, a terrível amiga e conselheira, que havia de
sugerir um dia a verdade da vida como sugeriu as crenças váquas e as meditações
inanes...
– Mas escrever
fora provar: a consciência perfeita não ensaia. Demais, que pretendia escrevendo?
Castigar na tortura da fórmula a ideia livre, encadear as ondas do pensamento, a
tormenta infrene da paixão, escravizar à norma a sua força, feliz inteiramente,
sobre aquele mundo incriado, como espírito do Gênesis sobre as águas.
Bastava-lhe
sentir e pensar intensamente a alma dos homens, vibrar como um eco o sofrimento,
o entusiasmo dos semelhantes. Para que transmitir? Poder é a força em si.
Realizar é
somente a expansão ocasional, a expansão é o suicídio da força. O vocábulo define
a ideia; a encarnação limita o Verbo. Amesquinha-o.
Não! Gozaria
no íntimo o egoísmo ignorado da pujança. Seria a sua alma para ele o próprio espetáculo.
Ser uma alma completa: que mais? O seu poema aprofundaria os seus amores, servir-lhe-iam
as ideias para a visão lúcida das cousas: seria poeta como um forte na barbaria
primeira, antes da linguagem. Que sólido descanso repousar a mediocridade obscura
sobre a força que produziria um universo! Tranquilizar a inércia sobre a glória
de poder!
O poema
voltaria ao cristal como a gota escapada à pena. Não baixaria à fórmula. Ignorá-lo-ia
o mundo. Ignora-se também o diamante primitivo na obscuridade compacta das
minas negras. Far-se-ia o sepulcro do seu orgulho, satisfeito de conservar
inviolada a psique no mistério da renúncia...
Renunciou.
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