Extraordinária criança!
Seus quinze anos são como os quinze
degraus de ouro de um pedestal que ela levou a subir sorrindo – visão estranha,
– adelgaçando-se melhor, definindo-se melhor, absurdamente, quanto mais subia.
Foi como um encanto que, ansiando em si mesmo, forçasse e se fosse
corporificando num encanto maior. Sorriso que se fizesse luz. Anjo, cujas
vestes curtas, como ele ia subindo, desdobrassem-se em delgada túnica, e cujo
perfil, afilando, afinando, se fizesse um perfil de mulher, para ser o de um
anjo mais sedutor e mais meigo.
Quinze anos!
Graça melindrosa, que se vê e se
teme, cheio de superstição, que é para os olhos o que é para a alma o seu nome
tangível que parece um sonho, realidade que sacia de ideal.
Gavita!
Tê-la em casa, ser pai dessa
criança, viver acompanhando-a com orgulho e com afeto, sorrindo, cheio de
cuidados, que felicidade e que encanto!
Não!... Os dedos delgados de sua
mãosinha aristocrática nem músicas difíceis vencem ao piano, que ela é
descuidosa, adoravelmente irrequieta, incapaz dos graves e longos trabalhos que
a Arte severa requer. Árias e barcarolas ligeiras, valsas vaporosas, apenas, é
o que às vezes ela vai tirando meio ao de leve nas teclas, como um pássaro tira
ardentias nas ondas com a ponta das asas, noctambulando pelo mar.
Nada lhe peçam de fatigante, nada
que seja de algum modo grave, que requeira constância ou assento.
Ela sabe unicamente fazer encanto em
redor. Roupas brancas, cobertas de rendas, cabelos louros em cachos frouxos e
negligentes, perfil delicioso, grandes olhos azuis com raios de ouro, e um
passo alado, de ave meio selvagem à beira de um rio.
A casa inteira ela é que a anima, é
que a povoa, é que lhe dá alma, é que lhe imprime um modo de ser. Portas
brancas com frisos de ouro, claros salões, tapeçarias vivas, moveis caros,
ornatos, tudo, parece que tudo dela é que depende, que é a sua moldara, que
tudo faz conjunto porque a tem como o seu centro essencial.
Ouvi-la falar! Garganta de ouro, acento
de voz feminina, de uma seriedade encantadora, mas traindo-se, impagável, ainda
com uns restos longínquos de tom infantil.
As ideias, ah! as ideias que ela emite,
às vezes com ares meio graves, batendo levemente o leque fechado no braço de
uma causeuse! Que ideias?! Se ela
nada viu! nada viveu!... Passa-lhe o mundo através de finos stores, todo azul, como uma canção que
se ouve de noite, ao longe, adivinhando-se que lá fora, tudo adormece sob os filtros
do luar! Ideias... Modos de seu ser harmonioso e angélico, simplesmente, para que
os ouvidos se encantem, como o perfume é um modo de ser da flor, dessa essência
de delicadeza e frescura, para fazer a delícia do olfato.
Ela falar, ou ela rir... Músicas, músicas
somente... Apenas, uma se deu ao luxo da letra, que, no entanto, nem se ouve,
ficando-nos adormecida a razão, como a de um chim opiado, a imaginativa batendo
asas para um mundo de vaporosos coloridos, em sonho.
Gavita!
No entanto, de um dia para outro,
houve uma transfiguração nesta criança.
Um baby, muito louro, carnes que parecem rosas, forte e sadio, menino
de que ela é titia, que levou a batizar, muito séria em seu papel de madrinha,
o baby enfermou.
Toda a casa emudeceu agora. Assim
deve ficar o céu, quando os anjos estejam em rezas mentais.
Os passos alados dela são hoje, de
tão leves, de tão cautos, sombras apenas de seus passos, vívidos e musicais
ainda ontem.
Ela tem nas faces as rosas pálidas
da vigília, como uma doce enfermeira.
Porque passou em vigília,
insistente, toda a noite, em verdade.
A doença veio abruptamente,
assustadora e dominante. Nem pôde emagrecer, o baby! Parece que a morte quer arrebatá-lo, quer atirar-lhe o
pequenino cadáver à sepultura assim mesmo, de carnes viçosas, como se a terra
lhe houvesse pedido um grande punhado de pétalas vivamente fragrantes.
Mas, à violência do mal, ela, a
descuidosa menina de há pouco, começou a opor, na mesma hora, a fragilidade da
sua imprevista dedicação, confiada, com uma serenidade estranha, de entes que
conversam com o além.
Vai a moléstia sem curso, ora causando
desfalecimentos em torno, ora permitindo vago bruxulear de esperanças, para
serem maiores os desesperos daí a pouco, como se aquela pobre criaturinha
estivesse fazendo uma viajem absurda, puxada por árdida e desorientada parelha,
sobre despenhadeiros, olhos ansiosos a acompanharem-lhe o impossível trajeto.
A enfermeira persiste. Todos vêm
agora. Não foi um modo de ser da sua volubilidade costumada aquele novo aspeto
sob que ela se apresentou de improviso.
Ela espera a saúde do pequeno
enfermo, serena, silenciosa e séria, à cabeceira do berço rendado, com a
confiança de quem aguarda um outro que lhe prometeu voltar.
Todos olham-se entre si,
emocionados. Sobre a cabeça da menina de há tão pouco parece que fulge o
resplendor de uma santa. Na serenidade que lhe inunda o semblante já não se lê
a feliz despreocupação de seus dias risonhos, lê-se a fé, essa rosa mística que
só viceja nos corações fecundados pela dor. Desta, como do casulo sai a
borboleta, saíra mais aquela mulher. No anjo, em que a adolescência ainda não
marcara bem firme os seus traços, havia agora revérberos de maternidade.
Gavita!
Ela fazia hoje pensar nos processos
estranhos do poema da vida. Seres aéreos aí vêm dançando, pouco a pouco
visíveis, como quem vem de outros mundos, aproximando-se lentos, ao som de
bandolins e cítaras, – figuras vaporosas em paisagens de fundas perspectivas
risonhas. Parece que todo o mundo é uma festa, que a vida é uma simples e
deliciosa canção. No entanto, muitas vezes estas baiadeiras, tão graciosas nos vórtices,
são também as que sabem ter mais graça, profundamente emocionantes, o receber
de mãos ignotas, com um leve inclinar de cabeça, daí a momentos, quando de
súbito o cenário se transforma, viçosas e pesadas coroas de mártires.
Entre os da família, porem, às vezes
aparecia um rapaz e desaparecia momentos depois. Quando todos,
alternativamente, olhavam o doente, transidos, e a enfermeira heroína, cheios
de respeito, ele vagueava os olhos distraidamente e esgueirava-se, com aparência
fria, caminhando nervoso para longe do quarto.
Conversas a meia voz pelos outros
compartimentos da casa, misturadas de condolência pelo pequenino enfermo, de
enternecimento e adoração pelo anjo que o estava conquistando à morte. E ele as
ouvia com o íntimo sorriso de um desdenhoso, a língua presa, como se tivesse o
coração gelado.
Quando, no entanto, a doce
enfermeira, atarefada com os seus misteres, passando, por acaso o vislumbrava,
tinha para ele um sorriso familiar, como de alma desprevenida e simples. Eles
eram primos; certamente que deviam ser amigos.
Mas como que o rapaz divergia deste
parecer. Aquela meiga criatura parecia cansar-lhe ódios; dir-se-ia que a santidade,
então, deste devotamento agora, por uma criança quase moribunda, o enfurecia
por extremo.
Não. No pensar dele tudo aquilo era
dissimulação simplesmente, para poder tratá-lo, como estava tratando, com indiferença
ainda maior. Pequenino coração de bronze é o que ela tinha... Pois se podia
sustentar na sua presença o mais completo desembaraço, rir-se franca, ser tão
livre nas suas ações, quando ele quase morria, fremente, silencioso, se estava
a seu lado!...
Ingenuidade, despreocupação
infantil? Não era. Havia um outro que lhe impressionava o espírito. Em verdade,
também não parecia alimentar por este uma
paixão
profunda. Quem ama fortemente, ele raciocinava, não tem aquele ar aéreo e
descuidoso, não anda como um pássaro a gorjear todo o dia.
Mas ao menos por esse outro,
pensava, não tinha tamanho desdém. Valsavam juntos duas valsas seguidas, ela
não o perdia de vista se ele andava em volteios com outro par, às vezes o
esperava à sacada, de tarde, eram em tudo muito diferentes as aparências.
E por quê?
Parente, amado por outras, digno em
todos os pontos, moço, decerto que menos feio do que tantos, do que esse próprio
que era o predileto, por que merecer tanto desdém?
Ah! é que ela o sabia apaixonado à séria.
Um ano de decepções e martírios!...
Vaidosa tontinha, sem coração humano
no peito... Comédia, simples comédia isso com que ela andava agora deixando
embasbacada a casa inteira!...
Não! Ele estava resolvido! Ia
abandoná-la de uma vez!...
No entanto, alguns dias depois ao desse
protesto voltou.
Malgrado seu, sob esse novo aspeto,
no íntimo ela o seduzia ainda mais. Era agora aos seus olhos um tipo definido
das companheiras com que os homens andam a sonhar na vida. Embora ele
desdenhasse, amargo, daquela devotação imprevista, acreditava nela mais do que ninguém,
em luta consigo mesmo, na inconsequência dos corações onde a paixão, como uma
tempestade, domina.
– Mas não está aí, nesse sacrifício
por uma criança, a prova tão clara da sua natureza afetiva? ele interrogava,
para dar-se a si mesmo uma esperança qualquer.
Nesse dia em que voltou entregou-lhe
tremulo uma carta coberta de queixas.
– Quem sabe? agora que ela é toda
emoção, talvez compreenda a crueldade que tem tido até hoje, ele pensou.
Aquela carta era a terceira que o
desespero lhe dera coragem de arrancar a um livro feito de inúmeras outras,
pois ele vivia a escrever, enchendo o tempo inteiro com aquele amor. Que
palpitações de coração, porém, que negras conjecturas, que tão grandes acanhamentos infantis, que covardia horrível, quando
ele se propunha a entregar-lhe-ás! Por fim, soluçantes, elas iam enchendo-lhe a
pasta, na melancolia contristadora das coisas cujo destino falhou.
O baby, afinal, estava livre do maior perigo. Instada pela casa
inteira, Gavita pela primeira vez recolheu-se essa noite ao seu aposento para
um repouso normal. Deitou-se; mas, antes de fechar os olhos, veio-lhe à memória
a carta do primo. Ainda não tivera ocasião de a ler. Sorriu-se, fazendo nas
faces duas adoráveis covinhas.
– Ora o primo!... ela disse
baixinho.
Veio-lhe vontade de levantar-se para
apanhar o papel... Mas o sono era tanto!...
– Está bem, resolveu, amanhã cedo
hei de ler.
E, um meio sorriso nos lábios, como
se estivesse conversando com os anjos, daí a momentos adormeceu, num sono
profundo e tranquilo.
De manhã realizou o prometido...
Mas, quantas cartas viessem, tudo seria completamente inútil. Essa por quem o
rapaz andava tão perdido de amores sorria ao recebê-las, lendo-as sorria, e
continuava a sorrir todo o dia, como se aquelas linhas não lhe dissessem
respeito.
Ela, na sua ingenuidade, achava o
primo tão esquisito, tão diferente dos outros rapazes! Ele nunca lhe falara com
efusão, não a encarava de frente, andava sempre pelos cantos, como se fosse um maníaco...
As cartas... ela nem as entendia direito... Eram tão cheias de ideias! Por que
será que ele não escreve mais claro? perguntava. Recebia-as... nem sabia
porque... ora!... qualquer dia o primo se resolvia a esquecê-la, assentava
afinal, atirando a cabecinha loura para traz, e com este gracioso gesto dava um
curso diferente às ideias...
Gavita!
Mas, em vez de esquecer, o rapaz foi
caindo num desespero maior, tanto que duas novas cartas já tinham vindo, e
agora chegava a terceira, entregue por alguém que fugira antes da menina ter
tempo de devolver o papel.
Se as outras jamais a haviam preocupado
seriamente, muito menos esta, naquele dia extraordinário em que estavam. Já se
restabelecera, e hoje fazia anos, o baby.
Gavita radiava. Voltara-lhe toda
aquela graça de pássaro meio selvagem. A casa inteira acordara com a sua
ruidosa alegria, como de madrugada, com o passaredo, a floresta.
Enchiam-se os compartimentos de
parentes e de amigos. Ninguém das relações quereria estar ausente a esta festa.
Uma exceção apenas quem atentasse, notaria que faltava, para tomar um lugar à mesa,
aquele primo enamorado que ainda de manhã escrevera.
Gavita não parecia dar por tal. Era
pouco impressionável, felizmente. Ao contrario, talvez não tivesse o coração em
completo repouso, porque, nessas últimas linhas, por modos indiretos, – a tinta
toda diluída por lágrimas, – ele dizia uma espécie de adeus, falava numa
desgraça iminente.
Gavita!
---
Nestor Víctor dos Santos (1868-1932)
Nestor Víctor dos Santos (1868-1932)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...