(A
Luiz O'Neil)
Para fugir da exótica humanidade que enchia as salas do Kursaal de
Genebra, saímos, apesar da noite fria, para o amplo terraço sobre o Léman
tranquilo.
Eu levara Roberto ali para mostrar-lhe Chiara, a dançarina italiana, que
nas suas danças bizantinas me surpreendera e comovera no Alhambra de Londres.
Era a Volúpia feita luz e feita dança. Num maillot de
seda, parecia nua. Uma cintura de ouro, marchetada de largas pedras brilhantes
segurava-lhe os seios firmes. Grossas manilhas mordiam os braços finos e os
tornozelos. Um diadema apertava a massa luminosa dos seus cabelos louros. E, na
face branca, eram de um brilho de gema os olhos azuis, quase violeta-de-Parma.
A música que a acompanhava tinha um envenenado langor. Chiara deslizava, mal
pousando os pés nus sobre o tapete de Esmirna. E do brilho das joias, como
da florescência musical dos gestos, brotavam lascívias, ardiam desejos, que
faziam correr frêmitos por toda a sala incendiada por lâmpadas poderosas.
Aquela dança sábia, apenas ritmada pelas vozes das flautas e das liras
que tocadoras de flauta e tocadoras de lira, vestidas à grega, no palco
tocavam! Uma ou outra vez um pé nu fazia vibrar o bronze dos crótalos. Era como
um grito de vitória, um beijo mordido numa boca sedenta. Chiara tomava então
uma atitude de entrega, todo o seu corpo flexível e delgado parecia tombar,
como uma haste frágil que cede ao esplendor de uma enorme rosa vermelha, e
verga e sucumbe.
A grande flor de ouro e luz, em que as abelhas das joias picavam e
pareciam morder, fixas nas lhamas dos engastes! Como a vejo ainda nitidamente,
ramo de ouro e de rosas, fazendo nascer desejos cintilantes, chuveiros deles,
rápidos, fulgentes, descendo como estrelas de ouro, como os bocados de astros
que voam no ar escuro, nas noites quietas de agosto!
E preso à tentação de ver a dançarina, deixei Aix e as duchas, Villa
des Fleurs e o seu rebanho de cocottes
e, com Roberto, à pressa envergados os smokings, fomos para o Kursaal. Mas no
salão, um aviso e um certificado médico diziam a doença de Chiara. Um grande
desanimo abateu-me as espáduas. Como passar uma noite na cidade alinhada e
mecânica como um relógio? Em todo o Kursaal, nem um rosto interessante. Ranchos
do Cook, das segundas classes, lionesas rotundas e vermelhas, suíças frescas,
que parecem esculpidas em manteiga e em cujas faces contentes os olhos são
parados e azuis... Caixeiros de Lion, aproveitando comboios a preços reduzidos,
apertavam-se em volta das compridas mesas dos petits chevaux. Dois
americanos silenciosos chupavam por palhinhas os violentos cocktails.
Fugimos.
Na noite escura, o lago era azul escuro. Os focos elétricos dos cais
punham na água fitas brancas, que dançavam e se quebravam contra as ondas.
Pareciam pestanejar as pequenas lanternas vermelhas dos bateaux-mouches.
Tudo parecia dormir. Uma brisa ligeira trazia até junto de nós o silêncio da
cidade. Apenas do Kursaal as luzes coavam-se pelas ramadas e, amortecidas, as
valsas que acompanhavam mimambos e acrobatas.
Um de nós disse:
— Talvez fosse melhor não ter visto Chiara. Um com a recordação, de que
viu, outro com a imaginação, têm uma imagem mais bela, por incompleta, e em
parte mentirosa, da dançarina e do seu bailado. A melhor maneira de gozar é
criar imagens, viver dentro de nós, alheio ao mundo. Recordando, vive-se na
imprecisão, sem as arestas. Tudo mergulha num nevoeiro, que, deformando a
real aparência, nimba de mistério; desejando, ilumina-se mais. Viver deve ser
recordar e desejar.
— Pode-se viver recordando e desejando apenas, no momento presente; mas
para recordar é necessário ter vivido, para desejar é preciso conhecer. O
desejo ilimitado põe a angústia na alma. É mister alguma coisa de definido a
desejar.
— Quando chegamos à nossa idade, já vivemos tudo. Conhecemos o efêmero
feminino. Andamos com o coração por todos os amores, por todas as angústias.
Provamos todos os crus, atravessamos mares, dormimos sob todos os
céus. Podemos recordar. E, como conhecemos tudo, podemos escolher e desejar.
— A vida do homem é, como a de toda a natureza, um continuo movimento,
fluxo e refluxo permanentes.
— Então é preciso agir?
— É fatal.
— São Simeão Stilita gastou anos sobre uma coluna, a orar. Vinham de
desencontradas partes os crentes à espera de milagres. Esposas estéreis tocavam
no plinto, certas de que tempo depois amamentariam o filho desejado; os
leprosos, os cegos, os atacados do "mal divino", arrastavam-se pelos
desertos queimados, até à coluna onde o santo rezava... E ele, indiferente,
como indiferente era aos soes ásperos, às ventanias e às chuvas,
continuava a orar. Viveu dentro de si. A vida deve ser toda interior.
— A vida do espírito é toda interior, como a vida digestiva. Precisamos
do mundo exterior para dele apreendermos as imagens e os alimentos.
— Ter comido, é melhor que comer. Ter gozado é
melhor que gozar. O momento da posse é doloroso e vão. É melhor
recordar.
— Recordar implica esquecer. E quando das imagens não ficar senão uma
mancha, como preencher a vida?
— Desejando.
— Mas a faculdade de desejar desaparece com os anos. O velho dos
Goncourt, quando no restaurante lhe perguntam: — O que deseja? responde: — Desejava
ter um desejo. Viver é agir. Colher todas flores e todos os espinhos, violar
todos os cimos, mergulhar em todos os lodos, sentir intensamente, pensar todas
as doutrinas, apreender do Universo tudo o que for possível, ver tudo, ouvir
tudo! Viver é entrar na harmonia do Mundo! É ser como o eucalipto, subir para o
sol, triunfalmente, lançar ramadas por todos os lados, espalhar ávidas raízes
egoístas e cruéis!
— Viver é recordar e desejar. A vida deve ser feita por nós, como a
composição de um quadro é arranjada por um pintor. Não devemos ser o
espelho de mostrador que reflete toda a rua, mas a psiquê do boudoir de
uma mulher elegante que só reflete atitudes graciosas, sedas, rendas, brilhos
de pedrarias...
— Viver...
Despejava-se o Kursaal. Apagaram-se as lâmpadas. Fomos para a estação
esperar o expresso de Paris.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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