Em todo o caso, se a
imoralidade existe, deve ser bem diferente de tudo o que se tem sonhado.
Ser despedaçado, oprimido,
calcado, torna quase sempre o homem grande, porque abala e acorda vozes
adormecidas.
Compreendo o materialista
sincero, o idealista sincero. Num predomina a nuvem, no outro a terra. Tudo o
que é verdadeiro, arraigado e fundo, é belo – até o crime.
Não importa saber donde
nasceu a ideia da imortalidade, o que importa é saber se a imortalidade existe.
Todos a sentem, até os mais materialistas, todos sabem que ela brilha no fundo
do nosso ser. Podem-na abalar, abafar, com teorias, palavras, explicações
mesquinhas, o que não podem é arrancá-la. É como certas árvores que, deitadas
abaixo, deixam sempre profundas e inabaláveis raízes no solo. Para as extinguir
seria necessário tornar estéril a terra.
Cada homem trá-la consigo
como uma certeza ou como uma aspiração... Ela remexe sob todas as cinzas.
– Mas que imortalidade?
Tomo tudo a sério, até as
coisas sem importância – outra razão para ser desgraçado.
E quando é que eu cumpro o
meu destino? – dirás. Interroga-te.
Se as árvores não fossem
necessárias, existiriam árvores? Se os criminosos não fossem necessários,
existiriam porventura criminosos?
A educação que nos dão, o
melhor que há a fazer é esquecê-la. E esquece-se porque ela nada tem com a
vida, é uma coisa à parte. A que adquirimos à custa de nervos, de sangue, de
suor, a que se aprende na peleja, essa acompanha-nos até ao túmulo. É a
verdadeira.
O homem procura sempre uma
filosofia onde caiba o seu temperamento, os seus erros – e até os seus crimes.
Se não existe, inventa-a.
Acho que, ao contrário do
que se diz, não sou amigo de ninguém senão nos primeiros tempos. A princípio os
ângulos não aparecem ou disfarçam-se.
Depois começamos a ser duros.
Creio que só há amigos até
aos vinte anos, quando ainda se não pensa na vida. Depois endurece-se. Raros
são os homens que através da vida a sério e dos interesses conservam
ainda amigos.
Para ficarmos amigos, tenho
ou de me submeter ou de te submeter.
Não, a morte não destrói a
essência da vida, mas, desorganizando uma forma, destrói a consciência dessa
forma, que é formada de milhares de consciências...
A ação do que se chama
espírito sobre a minha matéria produz o meu eu, com os seus erros, sonhos,
desesperos, ódios. A mesma força, tira harmonias diferentes duma arpa ou dum
órgão. O que resta, pois? A essência da vida?
A predominância de certas
moléculas produz o sonhador; a predominância de outras o herói, etc... Eis a
futura química.
Não se trata de ser feliz
ou desgraçado, mas de se cumprir o destino para que se nasceu.
Que ideia tão falsa a de se
supor que a vida tem um fim – a felicidade ou a desgraça! Não é isto subordinar
o universo ao homem?
Se a vida tem um fim – é
viver. Viver, deixar que cumpramos o fim para que fomos nascidos. Isto é
lógico, inevitável, maior, decerto, do que o que supomos, mais belo, mas cedo
ainda para se entrever.
O homem é uma fonte onde a
vida corre límpida ou turva, num fio que a emoção torna de ouro num jato negro
de cólera. Eu ouço assim correr a minha existência...
Um dia a fonte seca-se.
A terra há de sempre criar
os seus tipos, quer os homens queiram quer não. O homem não é senão a essência
do universo e nasce para que tudo tenha boca. Podemos tentar abafar isto, por
diques, retardar a torrente, mas um dia o largo rio da vida e do destino
irrompe.
Não, não é justo que a
gente morra de súbito sem protesto, sem palavras, sem gritos, com os seus
erros, as suas ambições, os seus sonhos... Abre-se de repente uma cova... Não
se pensa mais, não se vê, não se ouve... E o que custa não é deixar pessoas
queridas, nem hábitos – é não viver. Morrer quando a vida continua da mesma
forma harmônica e impassível – eis o horror.
Nenhum outro homem no
universo existe real-mente para o homem; nenhuma outra vida senão a sua vida.
Ao chegar dos trinta anos
abandonam-se os amigos. Se alguns restam é por hábito ou por interesse: é por
cálculo. Se queres continuar a amar os outros, afasta-te,
torna-te solitário. Ou deixas de ser sincero e passas a morar com a mentira. A
peleja começou: é preciso arredar, vencer – e cada um nessa idade é o que é. Já
se não amolda: é um ferro desembainhado, saído da forja; tem já os seus
hábitos, vaidade, mentiras. Tudo o que estava apenas esboçado endureceu; é de
pedra.
De forma que se quiseres
viver com os outros tens de representar.
Os que têm uma forte
individualidade arredam-se, porque nunca podem agradar. O triunfo pertence não
aos mais fortes, nem aos mais inteligentes, mas aos que, sem pessoalidade,
podem ser todo o mundo...
Ser parecido lisonjeia:
daí, tens de afivelar uma máscara igual à do homem que precisas conquistar.
Sim, a vida é uma tragédia
esplêndida, com todos os seus crimes, sonhos, ódios. Falam em nos as montanhas,
as árvores, as nuvens, e fala até, num murmúrio, o que é ainda desconhecido.
Que é preciso para que cada
um se encontre? Que é preciso para que as árvores abaladas se carreguem de
flor? A Primavera – a dor.
Tu és a mãe, terra; tu a
fecundaste, dor, e até nós veio como o murmúrio apagado dos teus gritos.
Amo-te nos bichos, no sol,
na luz, nas pedras; na terra onde mergulho as mãos até as enegrecer, na água
que mas banha; no ar que respiro; no sonho; na morte; na desgraça; no que é
humilde ou grande, não importa.
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Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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