7/02/2019

Filosofia do Gabiru II (Conto), de Raul Brandão



Filosofia do Gabiru II

Ter os mesmos direitos que as árvores e os bichos à imortalidade humilha-me, e fazendo-me humilde torno-me melhor, mais irmão do que é pequeno e desgraçado.

Só as criaturas que sofrem é que são dignas de viver, e na verdade são as únicas que vivem.

No tempo infinito e no espaço limitado as moléculas agregam-se, desagregam-se... Só química, só a química existe... As moléculas, que têm em si a força vital, são hoje árvore, amanhã animal, pedra, homem. Conforme o quê? o que é que as modela?...

Eis-me: eu fui e continuarei a ser neste oceano trágico o que o acaso determinar, conforme as minhas moléculas, amanhã desagregadas, se unirem a outras mais tarde... Tenho vivido até aqui – continuarei assim pela eternidade.

Quando pois me chegar a vez de ser homem. hei de viver: quero viver da minha própria vida; quero que fale dentro em mim o universo que eu já fui –a pedra que eu já fui – a árvore que eu já fui – o bicho humilde que eu já fui...

A tua opinião?... De que me serve? E é ela tua, sente-la bem tua, ou é aprendida, falsa, vinda de outros homens que me querem esmagar?...

Qual deve ser o meu fim? Deixar falar todo o universo que compõe o meu ser, deixá-lo pregar com a sua voz rouca – com a sua própria voz e não com a tua.

Se eu trago ódio, deixai-me ser o Ódio; se eu trago riso, deixai-me ser o Riso.

O momento é único, não vale perdê-lo. Por que acaso, por que fúria insana, depois de que rebeldias, de que horas ou séculos de aguilhão, de desespero e raiva, estas moléculas, perdidas num oceano maior que o atlântico, tornarão a ser, se chegarão a reunir para terem a consciência do Universo? E agora vens tu, homem, e queres emudecê-las com as tuas leis, as tuas teorias, os teus sonhos...

O momento é único: vai perder-se amanhã. Séculos de canseira para terem num minuto a consciência do universo; séculos de sonho tremeluzindo no fundo da obscuridade, para não virem afinal à luz, séculos de amargura, de esforços, de tentativas abortadas – para não chegares afinal a viver. É como ir a uma árvore e arrancar-lhe toda a flor...

Mas olha: tudo é feliz em torno de ti, porque tudo cumpre o seu destino. Cumpre tu o teu. Tudo é harmônico, porque vive da verdadeira vida: as plantas crescem sem que as outras lhes imponham regras, os animais, a natureza inteira, não têm remorsos nem dúvidas. Nem tu as terás, se viveres de tua verdadeira vida e não de outra.

A tua educação deve consistir nisto: em fazer falar o universo que trazes contigo, com a sua voz.

Arreda, mata, calca tudo o que te contrariar nisto. Sabes acaso daqui a quantos séculos tornarás a ter consciência? E que forças perdidas, que lutas não vão ser necessárias?... Quantos gritos!...

Goza tudo: a desgraça, a fome, a terra, o sol, o riso, porque nunca voltarás a sentir senão numa infinidade de séculos. Impregna-te de vida, do teu largo quinhão de vida, para que às portas do Nada possas dizer:

– Vivi!...

Estão em primeiro lugar os deveres para contigo do que os deveres para com os outros.

Deves amar os rios, porque já foste rio; os montes porque andaste nas suas entranhas; a nuvem tua irmã; a árvore onde correste em seiva – e o homem porque és o homem.

Se te não deixam ser o que deves ser – resiste. Mais vale morrer do que não lutar. Morrendo, triunfarás porque cumpriste o teu destino.

Tu és feito de húmus, tu és feito de terra. Se ela te deu boca, para que foi? Para que falasses. Com que fim cria tantas bocas? Para que ao fim de mil tentativas se digam as palavras necessárias... Nesse dia tudo terá voz. Na verdade não haverá fonte, árvore, bicho por mais esquecido, pedra por mais ignorada, que não tenha voz e não faça a sua confissão.

A educação moderna, ao contrário, tende para isto: para que todos falem no universo da mesma forma.

Nasce conosco o destino. Não o cumprir, seja qual for, é ser desgraçado.

Cada criatura que nasceu ontem há quantos séculos anda a ser gerada? Sabei-lo...

Não contrariem a vida. Nós somos uma torrente, que Deus criou para um fim... Assim nascerão criaturas que encarnarão o Mal, dirás... Pois que o mal tenha também a sua boca e que fale sem gaguejar.

Se a natureza cria monstros, é que eles são necessários, como certas pústulas que purificam.

Nunca os tigres afinal venceram.

E de que te serve andares mascarado?...

O homem tem em si partículas de tudo o que no universo existe: metais, pedras, etc. É um universo reduzido. Conforme nele predominam determinadas moléculas, assim odeia ou ama.

Quando é que a química será tão grande, que possa fazer esta análise?...

Há pessoas que nunca nos fizeram mal e a quem odiamos. Nunca? quem sabe?... Se há um infinito que tu vives, se tu exististe sempre e és eterno.

O que é a piedade sincera, abaladora, interior? Uma reminiscência.

Fujamos da terra, dizem-te. Não, bem preso à terra, a terra subtilizada que tu és, a terra tua mãe. Essência da terra, trabalho insano do seu ventre durante séculos e séculos, homem não a renegues! Ama-a, ama a vida. Tu és talvez o sonho da terra. Ela pôs em ti toda a sua emoção, toda a sua maternidade, toda a sua dor e também tudo que tinha de imaterial; deu-te o sonho. Sê bom, se ela to ordena, sê mau se ela o quer.

No mundo correm e entrechocam-se grandes rios de moléculas – que são rios de ódio, outros que são rios de amor, outros que são a amargura, o riso, o sonho...

Há dias em que a gente se sente responsável por todo o mal que se faz na terra.

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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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