É que tu acreditas na
imortalidade da alma? Bem fundo, bem arraigado?
Tenho horas em que creio: é
uma esperança, um raio de luz entrando num túmulo vazio pela junta abalada duma
pedra. Por que crer? por que não crer? Teorias, palavras... No íntimo, porém,
sou materialista como toda a gente. Dormir na terra funda e gorda é bom –
dormir para sempre. Ir ser árvore, luz, detrito, correr nas veias da terra, e
quase consolador – excelente sono sem sonhos, depois da lide canseirosa dum
dia.
Na primavera quase sempre
sou materialista, no inverno idealista e com a mesma sinceridade, quase com
ferocidade.
Ser só, sem amigos, sem
apertos de mão, sem conhecidos, ser só e livre, que sonho!...
Ser só por cobardia, para
não ter este aguilhão da vaidade a espicaçar-me: – Então tu não fazes, e este,
aquele, o diabo, fizeram! – Ser só para sonhar e para ver este espetáculo único
– a natureza; para passar os meus dias vendo as transformações duma daquelas
árvores que daqui contemplo!...
Quando me fecho e estou só,
sou tão diferente!...
Como o homem é desconhecido
até de si próprio, porque o tempo passa, vem a morte e ele não esteve sozinho!
Se estou só vêm falar-me vozes – eu mesmo – mas com que palavras únicas!
Os seres de que sou composto, se me habituo à solidão, nos primeiros tempos
balbuciam, mas depois falam! pregam!...
Tenho a certeza de que fui
árvore e é por isso que tanto as amo.
Há livros que falam
baixinho, há livros que falam alto. Uns têm por si o encanto, outros a força.
Às vezes as palavras murmuradas impressionam mais: passado tempo ainda elas
acordam em nós fibras adormecidas.
Por que é que a água, até o
mais humilde charco, atrai e faz sonhar os homens contemplativos?
Quanto mais desprezo o
homem, mais amo a natureza. Ela é inalterável.
O homem prende-se com
muitas coisas inúteis: a riqueza, a ambição, interesses mesquinhos: vive
emaranhado numa teia. De forma que não tem tempo de ver, nem de ouvir, nem de
se conhecer. Quantas criaturas existem que nunca olharam para o céu? A
natureza, árvores, montes, rios, esse pélago que entrevejo do meu quarto deixa-os indiferentes; as horas de preguiça e sonho
deixam-nos indiferentes. Nunca tiveram tempo para amar as coisas simples e
grandes da vida. O que é eterno não no viveram. Por mim antes quero comer pão e
cismar, deixar correr as minhas ideias como um regato corre – até onde tem
água. Alguns morrem sem terem reparado que existiram.
E por isso que eu corto
sempre com tudo que me não deixa sonhar – e que quando encontro razões para
acabar com um amigo tenho um suspiro de alívio.
Habituar-se a gente a viver
com ideias simples é como habituar-se a andar com fatos velhos e rotos. indigna
os outros. De forma que tem de se viver arredado.
A morte aterra-me pouco.
Por quê? Porque só penso na morte como numa divida distante. Fica muito longe
ainda.
Há horas, porém, à noite,
de súbito, em que, sem ligação, essa ideia rapidamente me toma e abala até às
mais recônditas fibras. E sufoco aterrado.
Com que facilidade se matam
até os entes mais queridos!... Quantas vezes me surpreendo a assassinar ou a
desejar a morte – é a mesma coisa, com este acréscimo, a cobardia – de pessoas
que sofreram por mim! Por a menor causa, por o mais leve transtorno, o primeiro
pensamento é este: Se ele morresse...
É claro que protestas logo.
Protesta o teu coração, a tua educação, os teus hábitos e até a tua hipocrisia.
Mas se deixares trabalhar a imaginação à vontade, sem peias, é uma hecatombe –
por futilidades.
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Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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