Sentei-me
na borda alta da... taça de
mármore, onde a água soturnamente dormia, — e esperei que me dissesse, enfim, o
seu mistério aquela mulher complicada...
—
A noite era calma e escura. Na água morta e negra da taça luziam, vigilantes,
os reflexos das estrelas. —
Ela
começou a falar, vibrantemente, e eu escutei em silêncio.
— “Donde
vim? Quem sou?
Quantas
vezes me interrogo a mim mesma, achando-me estranha, e só, neste mundo?! Que
mistério é a minha existência, Deus do Céu! Rolo na vida, como levada na
dominadora asa de não sei que ideal rajada!... Para que vivo? Quem sou? Donde
vim?
Eu
sinto, para trás da minha existência incompreensível, um vácuo frio, de treva.
Parece-me que tombei, um dia, dos espaços intersiderais — e que vim, como um
sonho, em uma vertigem doida, por entre os astros a rodopiarem silenciosos o
seu rodopio eterno, deixando atrás de mim uma escuridão álgida, a apagar o meu
rastro!
Oh,
sim! Há qualquer coisa, há muito de singular, de complexo, de irreal, a
escandecer a minha alma! E este fogo, que me consome e referve turbilhonante
dentro em mim, afigura-se-me que foi o Sol que mo pegou, quando por junto dos
seus raios passei. Foi ele decerto que me insuflou a vida num beijo ardente. É
o fogo do Sol, é a lava do Sol que eu trago em mim. O Sol é o meu pai: o Sol,
fonte de toda a vida, Deus máximo das energias eternas, Deus dos deuses, é que
é o meu pai! Ergo os meus olhos triunfais para o Sol, e vejo no rosto dele,
diademado de onipotência, o seu sorrir de lume, o seu sorrir paterno. E, pelos
meus olhos que se fixam audazes, sem deslumbramento, na face rebrilhante do
Sol, eu sinto penetrar em mim o seu fulgor candente, que me corre as artérias e
os nervos um a um. É o Sol que me beija com os seus beijos de fornalha — O Sol!
ele ao certo o meu pai, a minha alma é feita do seu fogo!
E
o seu fogo é amor em mim. Como a flor se dinamiza em aroma e cor e veludesa, e
a mão se poetisa em gesto e o corpo em atitude e a garganta em canção... —
assim o fogo da minha alma se revela, espiritualizado, em amor. E eu amo as
idealidades, eu amo as volatilizações, — amo a graça, o ardor, a carícia, a pressão,
o beijo, aéreos, fluidos, voláteis, em si, abstratamente, livres dos corpos,
das materialidades.
Não
são os olhos que me seduzem, são os olhares, o magnetismo expressivo dos
olhares. Não sinto lábios, sinto a ardência suspirada dos beijos. Abstraio dos
braços, das mãos, dos corpos, que me comprimem, para só me deliciar no vigor
dos abraços, na leveza e no veludo das carícias, na pressão tumultuária do
peito amante.
Eu
quero exteriorizações ideais de afetos, de paixões, de loucuras de amor. Que me
importam os homens? Só quero deles os desejos, os sonhos, os carinhos, que se
evaporam dos seus lábios, dos seus olhos, dos seus gestos, não me interessando
a quem pertençam, porque nada me interessa a fealdade ou gentileza dos corpos.
Almejo um incêndio de prazer, quero calcinar-me em volúpia, quero vibrar,
enrolar-me, retesar-me, convulsar-me, estorcer-me, como um vime zimbrado por um
ciclone, — ciclone de ânsia, de gozo, de epilepsias lúbricas; quero afogar-me
voluptuariamente num furioso mar de sensações, vibratilidades, arfares,
suspiros, delíquios, que se evolem, estonteantes, dos homens, — mas sem os ver,
sem pensar em nenhum, como se me afogasse na cor e na veludesa e no perfume,
insulados da flor... Eu separo da carne a forma, a tepidez, o movimento, o contato,
o espasmo — e só essa imaterialização eu amo”...
Calou-se,
— e eu continuei no meu silêncio... E ela, a Filha do Sol, estranha Pasífaa,
como para dar escape à tormenta nervosa que se reprimia dentro de si, e que o
silêncio e a quietude mais flageladora tornavam, feriu com as mãos, freneticamente,
o espelho negro da água adormecida...
Entre
os seus dedos, a água estremunhada chorou pérolas; — e por toda a taça de
mármore, num gemente sobressalto, a água ondulou...
E
os reflexos das estrelas, inquietados, eram gotas de luz, caídas umas após
outas para o fundo, como rosários de lágrimas de oiro a desfiar-se........
Lisboa, abril de 1916.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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