Fé
e esperança
—
Estás mais forte; fez-te bem o casamento...
Tomou-lhe
o braço com a familiaridade do tempo em que eram namorados, e foram andando,
lentamente, ao longo da praia, no silêncio de quem, tendo muito que dizer, não
sabe por onde principiar.
—
Com que então, fez-me bem o casamento?
Fora
um capricho, nada mais do que um capricho, deque lhe cabia a ele toda a
responsabilidade. Dera-lhe tudo — os seus beijos mais quentes, os seus abraços
mais fervorosos, a virgínea flor da sua alma involucrada na sua inocência de
criança. Se mais lhe não dera... Ferira-a cruelmente o seu desdém, que era uma vilíssima
traição, e, desesperada até à loucura, entregara-se ao primeiro imbecil que lhe
falara de casamento.
—
Cuidei que eras feliz...
Um
homem aproximou-se, descobrindo-se, e ofereceu-lhes a barca, se quisessem fazer
um passeio no mar.
Por
que não?
Tantas
vezes, em noites como aquela, de luar discreto, tinham fugido da praia, remando
com força até se encontrarem longe, e depois, abandonando os remos, balouçada a
barca na quase rítmica ondulação das águas, casando-se com o vago marulhar das
ondas a suavíssima orquestração dos seus beijos...
—
Como estás mais forte, mais desenvolvida, uma perfeita mulher...
Sem
dúvida, mas não era isso o resultado do casamento, a não ser que esta palavra
signifique meramente o fato de se ligarem por um contrato duas pessoas de sexo
diferente, e que por ele adquirem o direito de vida em comum, sem escândalo
para a moral.
—
Mas então?
Um
imbecil, complicado de beato. Aos dezoito anos tivera uma doença grave, e
prometera à Senhora de Lourdes, escapando à morte... Se não casasse, guardaria
o sexto mandamento como um avaro guarda um tesouro, a sete chaves, num cofre
forte. Se casasse, intato conservaria esse tesouro enquanto não fosse, em
romagem bendita, acompanhado da esposa, ajoelhar perante a Senhora, render-lhe
os seus agradecimentos.
—
De maneira que...
Era
discreto o luar, uma ou outra estrela luzindo aqui e além, o olho oftálmico de
um farol, a grande distância, dando a impressão de um ciclope que emergisse das
águas, ou nelas se houvesse precipitado.
Abandonaram
os remos já longe da terra, e por instantes ficaram quedos e silenciosos, como
se receassem que uma palavra, um gesto perturbasse o seu enlevo amoroso. Nem
parecia estar ali o par arrolhador de pombinhos estouvados, que noutro tempo,
em noites como aquela, de luar discreto, se faziam ao mar, talvez naquele mesmo
barco, quem sabe? envoltos num luar discreto, casando-se com o vago marulhar
das ondas a orquestração dos seus beijos. Parecia-lhes a barca, molemente
balouçada na quase rítmica ondulação das águas, um berço em que sorrisse a sua inocência
de crianças, e ao mesmo tempo um tálamo em que se desse largas a sua
desenvoltura de recém-casados.
O
luar tornara-se mais discreto, nada se apercebendo da terra a não ser, aqui e
além, muito distante, uma luzita froixa, do tamanho de uma estrela, e o
reverbero intermitente de um farol, do lado oposto à praia, dando a impressão de
um ciclope que emergis se das águas ou nelas se houvesse precipitado. A
ondulação da barca era quase imperceptível, e o marulhar das águas, rítmica e
dolente, era como um epitalâmio entoado nas profundezas oceânicas, celebrando
os esponsais de encantadas divindades netuninas.
—
Meu anjo!
—
Meu amor!
Os
laços do matrimonio, a bem dizer um matrimonio virtual, não tinham feito secar
as raízes do seu primeiro, do seu único amor, que se manifestava agora, a bordo
daquela barca de sonho, balouçada na quase rítmica ondulação das águas, com
mais ardência, com mais irreprimível ímpeto que noutro tempo, quando se faziam
ao mar, em noites assim luarentas, de luar discreto, casando-se com o vago
marulhar das águas a suavíssima orquestração dos seus beijos.
Na
praia, alongando a vista pelo mar, o rude barqueiro procurava descobrir a sua
“Alzira” já receoso de que algum desastre tivesse sucedido ao gentil par que
lha tomara, dispensando o seu trabalho só para evitar a sua presença. Ouviu o
chapinhar dos remos antes que visse a barca, e foi como se entrasse num porto
seguro, desenvencilhado de uma rascada brava.
—
Mas como queres tu agora...
A
barca tocou na areia, e foi necessário tomar a dama ao colo para que não
molhasse os pés.
Foram
caminhando lentamente, ao longo da praia, silenciosos como quem, tendo muito
que dizer, não sabe por onde principiar.
—
Na verdade, a minha situação...
—
Sossega, que nada tem de embaraçoso. É preciso confiar na Senhora de Lourdes e
confiar, sobretudo, na imbecilidade do teu marido, com certeza ainda mais
imbecil que devoto.
E
foram andando pela praia fora, mudos, silenciosos, no calculado silêncio de
quem, tendo muito que dizer, não sabe por onde há de principiar. Parecia lhes
que ouviam o ruído dos seus passos na areia fofa e úmida, e algumas estrelas
que luziam, manchando o luar discreto, davam-lhes a impressão de gente curiosa,
que espreitava, para o denunciar, o seu amor, o seu crime...
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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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