7/05/2019

Fé e esperança (Conto), de Brito Camacho



Fé e esperança
— Estás mais forte; fez-te bem o casamento...
Tomou-lhe o braço com a familiaridade do tempo em que eram namorados, e foram andando, lentamente, ao longo da praia, no silêncio de quem, tendo muito que dizer, não sabe por onde principiar.
— Com que então, fez-me bem o casamento?
Fora um capricho, nada mais do que um capricho, deque lhe cabia a ele toda a responsabilidade. Dera-lhe tudo — os seus beijos mais quentes, os seus abraços mais fervorosos, a virgínea flor da sua alma involucrada na sua inocência de criança. Se mais lhe não dera... Ferira-a cruelmente o seu desdém, que era uma vilíssima traição, e, desesperada até à loucura, entregara-se ao primeiro imbecil que lhe falara de casamento.
— Cuidei que eras feliz...
Um homem aproximou-se, descobrindo-se, e ofereceu-lhes a barca, se quisessem fazer um passeio no mar.
Por que não?
Tantas vezes, em noites como aquela, de luar discreto, tinham fugido da praia, remando com força até se encontrarem longe, e depois, abandonando os remos, balouçada a barca na quase rítmica ondulação das águas, casando-se com o vago marulhar das ondas a suavíssima orquestração dos seus beijos...
— Como estás mais forte, mais desenvolvida, uma perfeita mulher...
Sem dúvida, mas não era isso o resultado do casamento, a não ser que esta palavra signifique meramente o fato de se ligarem por um contrato duas pessoas de sexo diferente, e que por ele adquirem o direito de vida em comum, sem escândalo para a moral.
— Mas então?
Um imbecil, complicado de beato. Aos dezoito anos tivera uma doença grave, e prometera à Senhora de Lourdes, escapando à morte... Se não casasse, guardaria o sexto mandamento como um avaro guarda um tesouro, a sete chaves, num cofre forte. Se casasse, intato conservaria esse tesouro enquanto não fosse, em romagem bendita, acompanhado da esposa, ajoelhar perante a Senhora, render-lhe os seus agradecimentos.
— De maneira que...
Era discreto o luar, uma ou outra estrela luzindo aqui e além, o olho oftálmico de um farol, a grande distância, dando a impressão de um ciclope que emergisse das águas, ou nelas se houvesse precipitado.
Abandonaram os remos já longe da terra, e por instantes ficaram quedos e silenciosos, como se receassem que uma palavra, um gesto perturbasse o seu enlevo amoroso. Nem parecia estar ali o par arrolhador de pombinhos estouvados, que noutro tempo, em noites como aquela, de luar discreto, se faziam ao mar, talvez naquele mesmo barco, quem sabe? envoltos num luar discreto, casando-se com o vago marulhar das ondas a orquestração dos seus beijos. Parecia-lhes a barca, molemente balouçada na quase rítmica ondulação das águas, um berço em que sorrisse a sua inocência de crianças, e ao mesmo tempo um tálamo em que se desse largas a sua desenvoltura de recém-casados.
O luar tornara-se mais discreto, nada se apercebendo da terra a não ser, aqui e além, muito distante, uma luzita froixa, do tamanho de uma estrela, e o reverbero intermitente de um farol, do lado oposto à praia, dando a impressão de um ciclope que emergis se das águas ou nelas se houvesse precipitado. A ondulação da barca era quase imperceptível, e o marulhar das águas, rítmica e dolente, era como um epitalâmio entoado nas profundezas oceânicas, celebrando os esponsais de encantadas divindades netuninas.
— Meu anjo!
— Meu amor!
Os laços do matrimonio, a bem dizer um matrimonio virtual, não tinham feito secar as raízes do seu primeiro, do seu único amor, que se manifestava agora, a bordo daquela barca de sonho, balouçada na quase rítmica ondulação das águas, com mais ardência, com mais irreprimível ímpeto que noutro tempo, quando se faziam ao mar, em noites assim luarentas, de luar discreto, casando-se com o vago marulhar das águas a suavíssima orquestração dos seus beijos.
Na praia, alongando a vista pelo mar, o rude barqueiro procurava descobrir a sua “Alzira” já receoso de que algum desastre tivesse sucedido ao gentil par que lha tomara, dispensando o seu trabalho só para evitar a sua presença. Ouviu o chapinhar dos remos antes que visse a barca, e foi como se entrasse num porto seguro, desenvencilhado de uma rascada brava.
— Mas como queres tu agora...
A barca tocou na areia, e foi necessário tomar a dama ao colo para que não molhasse os pés.
Foram caminhando lentamente, ao longo da praia, silenciosos como quem, tendo muito que dizer, não sabe por onde principiar.
— Na verdade, a minha situação...
— Sossega, que nada tem de embaraçoso. É preciso confiar na Senhora de Lourdes e confiar, sobretudo, na imbecilidade do teu marido, com certeza ainda mais imbecil que devoto.
E foram andando pela praia fora, mudos, silenciosos, no calculado silêncio de quem, tendo muito que dizer, não sabe por onde há de principiar. Parecia lhes que ouviam o ruído dos seus passos na areia fofa e úmida, e algumas estrelas que luziam, manchando o luar discreto, davam-lhes a impressão de gente curiosa, que espreitava, para o denunciar, o seu amor, o seu crime...

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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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