O Simbolismo
português revestiu apenas o caráter formal, e nasceu quando Eugênio de Castro,
seduzido pelas novas formas francesas, resolveu adaptá-las a Portugal, tornando-se
um Lohengrin ruidoso da sua geração. A literatura portuguesa nada teve que ver
com esse movimento; e as fontes tradicionais não foram procuradas para tomar
parte nele.
Apenas
se conhece aí a manifestação dum esforço individual; todo o resto foi constituído
por um núcleo de literatos agrupados em volta do iniciador — Pontifex Maximus da nova religião literária,
que em vez de evangelhos apenas tinha ritos. A última fase de Eugênio de
Castro, em que as suas obras mais notáveis têm sido produzidas, mas onde há
também a tendência manifesta para um classicismo perfeito, é o melhor documento
que se poderia invocar para tornar bem claro o sentido e o esforço da geração simbolista.
Assente
em bases momentâneas, embora no fundo pretendesse apoiar-se em bases sólidas,
como deixa ver o prefacio dos Oaristos,
2ª edição, esse núcleo isolado do meio, vivendo longe dos bárbaros, no trabalho absoluto da arte pela arte,
dissolveu-se misteriosamente, como uma bola de sabão. Dele apenas ficaram duas
figuras notáveis — Eugênio de Castro e Silva Gaio; e posso bem dizer, visto o último
pertencer pelas suas tendências a uma geração futura, que a geração de 90 ficou
apenas representada por quem de direito e mérito próprio o poderia fazer — Eugênio
de Castro.
Na
literatura portuguesa contemporânea Eugênio de Castro é indubitavelmente uma figura
de notável influência; e embora a escolha dos assuntos quisesse fazer dele tão somente
um literato, — um largo temperamento artístico, fecundo e luxuriante, fazem-lhe
prever um reinado mais solido que o de Castilho, seu progenitor literário.
Deve-lhe
a literatura o grande serviço da renovação dos aspectos e dos ritmos, que lhe trouxe
este joalheiro precioso e raro, faustoso como Benvenuto, e como Benvenuto
tomando para ponto importante da obra de arte esculpir admiravelmente um homem
e uma mulher nus. De Fra Filippo Lipi a Cellini, passando por Donatello, toda a
Renascença tomou pelo estudo apaixonado do corpo humano; e cada um dos detalhes
era minuciosamente recortado pelos mestres, num verdadeiro furor, cheio de cegueira
e de paixão. Mas entretanto a sua consequência foi a arte tornar-se dentro em pouco
menos plástica e mais literária.
Propositadamente
o lembro, referindo Eugênio de Castro. A sua obra, deslocada do momento, não
ficará tendo o significado histórico e momentâneo da Custódia de Gil Vicente;
mas tem a sua lavranteria rica de príncipe da Renascença.
Se,
em Castilho, as naturais inclinações iam para os epicurianos Ovídio e Horácio,
também em Castro o fundo pessoal arrasta-o para a grande época que foi o nosso
século XVI. E como Castilho se servia do Teatro de Molière e do Fausto de Goete para meras recreações literárias,
assim Eugênio de Castro se serve da legenda galo-bretão de Sagramor, dos amores
de Inês de Castro da figura lendária de Belkiss, como simples bases para a
construção pessoal da obra de arte. Se destes últimos toma apenas o aspecto
histórico, e portanto descritivo, o
primeiro não é mais que o símbolo pessimista da época, procurado em varias
jornadas onde o aneantissement domina
e donde nada ha a esperar — nem mesmo a redenção pelo amor. E se alguma coisa
eu pudesse notar sobre o que digo seria no Rei
Galaor e no Anel de Policrates, onde o tema artístico persiste também como tema
poético. Teria contribuído para o primeiro a influência de Wagner, a quem por
esta altura os simbolistas franceses erguiam altares, interpretando-o à letra?
Talvez; e talvez fosse a mesma influência que gerasse o símbolo de Sagramor. Registrando
esta simples impressão pessoal, colocado em frente da obra de Eugênio de
Castro, apenas pretendo mostrar as curvas que a meu ver tiveram influência na
sua compleição, revelada sempre através dos seus livros no mesmo aristocratismo
e na mesma linha heráldica.
E
quando este poeta pretende ser o que realmente não é — um observador emotivo tocando o Naturalismo, torna-se
monótono e longo, tão minuciosamente detalhado como é rica de detalhes a sua
lavrantaria. No Crepúsculo, de A Sombra do Quadrante, o seu caráter
revela-se claramente, sobretudo se colocarmos essa poesia em confronto com O Azeiteiro, de A Fonte do Sátiro e outros poemas. Amando o detalhe, o pequeno fato,
na primeira poesia à vista de conjunto, englobada, desse cair da tarde
falseou-lhe o instinto; por seu turno, nos três magníficos sonetos que refiro,
o príncipe da Renascença, discípulo de Colonna e Miguel Ângelo (quel maraviglioso Michelagnolo), traça à
vontade a profissão de fé do belo absoluto e da beleza imortal, na palavra
divina do filosofo do Banquete. Aí é
tão clara a figura de Platão como o eu do próprio poeta: sentem-se em paralelo,
e figura e obra assumem um largo poder de intensidade — porque se confundem.
Colocado
no abrir da Renascença, este poeta teria sido Messer Guido Cavalcanti, o amante
aristocratíssimo da sabedoria, pleno possuidor da beleza imortal, e só falando
aos homens por trechos do Fédon ou
falas de Sócrates e de Diótima.
O
deslumbramento do bizarro, da rima e da policromia que emana da sua fase
violenta, vivia dentro em si chocando o poeta clássico que haveria de aparecer
mais tarde. Não houve aí a intenção dum renovamento literário nacional, — mas tão
somente a satisfação de necessidades próprias.
Por
vezes o motivo falta; o poeta toca assuntos que não são da sua alçada, — não dispondo
da multiplicidade de temas que a época entregava a Petrarca e Antônio Ferreira,
desde as apoteoses à beleza aos sonetos a mulheres-mortas que ficaram vivendo
na lembrança pela beleza ou pela sabedoria: e então a descaída é tão grande que
se desconhece a personalidade do artista, vivendo esses hiperegotismos ou
tocando fúteis motivos de arte. Mas colocado ante uma grande exaltação artística,
como na Hermafrodita, o seu vigor e a
sua seiva conduzem-nos a tal elevação e a tal intensidade que só poderá
encontrar-se-lhe igual na nossa língua em certas páginas violentas de luz e
cruas de calor do contista Fialho de Almeida.
Por
disposições familiares (que não posso aqui estudar com receios de entrar num
campo monográfico), por disposições pessoais, Eugênio de Castro põe em si e na
sua obra toda a linha heráldica, cheia de riqueza e cor. Revela-a bem a nobreza
das suas composições, a escolha aristocrática dos seus temas. Assim começando a
manifestar-se no seu tempo, já no próprio poeta, já em Manoel da Silva Gaio, um
lusitanismo caracterizado pela
ressurreição das formas quinhentistas, Eugênio de Castro não quis mais para si
que a parte externa e material, tomando a forma nobre do soneto e as outras
formas clássicas, aqui e além entre- meadas pelo vilancete, esquecido desde os
tempos da Plêiade. Silva Gaio, encontrando-se a par de Eugênio de Castro, com
condições idiossincráticas bastante diferenciadas, soube tomar do lirismo
quinhentista primeiro a forma, depois, seduzido pela época, a continuação do
sentimento da raça, bebido ora nas contemplações melancólicas de Bernardim e Cristóvão
Falcão, ora na consciência da intuição poética de Camões, — enquanto Castro lhe
pedia e a Sá de Miranda a firmeza plástica. Buscava Silva Gaio um novo fundo inexaurível,
o fundo sentimental da raça, achado em documentos artísticos de plena
palpitação nacional, e projetados numa adaptação vigorosa às necessidades artísticas
contemporâneas.
Foi
este poeta o precursor da atual geração, — e por isso noutro lugar me ocuparei
detalhadamente da sua obra, no ponto em que ela pertence mais pelas ideias à geração
que aí entra a definir-se.
Por
agora, basta-me acentuar que, na dissolução do Simbolismo, através do desalento
que envolveu os artistas de então, ele foi o único que sentiu e palpou o
verdadeiro fundo renovador duma literatura, indo buscá-lo à tradição nacional,
reatando-a e amoldando-a da aspiração subjetiva que envolvia o lirismo
quinhentista à consciente e nacional unificação da arte. Tal o intuito do Mondego, e dos poemas Sonho e Alma remida do seu livro — Novos
Poemas, onde se observa toda a evolução do movimento, já esboçado no drama Na volta da índia, no estudo humano de
caracteres observados através do prisma da alma nacional.
Bem
sei que antes de Silva Gaio já Antônio Nobre voltara os olhos para o seu país; mas o poeta do Só não fez mais que voltar os olhos melancolicamente
para o seu país, última rança dum velho castanheiro apodrecido à beira do Oceano
Atlântico. A sua obra não é a do poeta que presente em si a aspiração nacional;
mas a simples reação individual contra um meio falho, gasto em temas ou muito
velhos ou muito novos, que à sua sensibilidade de português e de poeta ou o
aborreciam ou o irritavam.
Cronologicamente
antes do Mondego, já mesmo Afonso
Lopes Vieira tentara reviver as formas portuguesas, exteriorizando por elas um
lusitanismo pessoal. Mas a obra de Lopes Vieira encontra a sua explicação no
próprio movimento de 90, que — combatendo a forma, veio a acabar no culto
material da forma, apenas com o aumento de vocabulário e nova técnica. Ela é a
reação intencional e subjetiva do artista contra a materialização da poesia contemporânea,
como mais tarde os primeiros livros de João de Barros seriam a reação intencional
ao Parnasianismo delambido que rebentava entre as ruínas do Simbolismo coimbrão.
O seu Náufrago procura a tábua de
salvação; e julga encontrá-la num ideal social, para onde transitou pela
ponte-de-fronteiras de O Encoberto.
Esse ideal social corresponde mais a conclusões meramente cerebrais que só
recentemente tomaram plena consciência no poeta, — ou se afirmaram aos olhos do
público por motivos novos e novos ritmos, duma riqueza inédita, que se tornam expressões
de pessoas e coisas, — de todo o movimento.
O
primeiro aspecto desta fase (O Encoberto,
Ar Livre) tinha em característica a socialização compassiva das coisas; os
seus últimos livros revelam uma vista mais perfeita, num novo petrarquismo, em
que as doutrinas de Platão se alargam na expressão universal do existente.
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VIGA SIMÕES
A Nova Geração, 1911.
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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