7/09/2019

Entre a missa e o almoço (Conto), de Artur Azevedo



Entre a missa e o almoço
Como a capela estivesse distante uns cem passos apenas do palacete da viscondessa, algumas senhoras tinham por hábito, depois da missa das dez e antes do almoço, reunir-se durante uma hora, no ensombrado terraço daquele palacete, a fim de comentarem as novidades da semana. Escusado é dizer que não se falava ali de outra coisa que não fosse a vida alheia.
Num desses domingos, a figura mais indiscreta e maldizente do grupo, dona Isaltina, viúva de um senador inútil, trouxera uma grande novidade.
— Sabem?... a Alice Viegas separou-se anteontem do marido!
— Que está dizendo? isso pode lá ser! exclamou a viscondessa.
— É impossível! acrescentou outra senhora.
— É impossível!
— Pois sim, mas é o que lhes digo: separaram-se! A Alice está em casa da mãe, na Gávea, e vai tratar quanto antes do divórcio!
— Quem lhe deu essa notícia?
— Pessoa fidedigna: o médico da casa, que assistiu, sem querer, ao final da cena do rompimento, e depois foi chamado à Gávea para ver a Alice, que estava excessivamente nervosa.
— O doutor Getúlio?
— Esse mesmo. Como sabem, é meu compadre. Foi jantar comigo ontem, e disse-me tudo sem que eu lho perguntasse.
— É uma coisa difícil de acreditar! volveu a viscondessa. O Teodureto Viegas vivia com a mulher como dois pombinhos...
— Ah, minha boa amiga! as aparências enganam, explicou dona Isaltina: eles ultimamente não se podiam ver um ao outro!
— Parece que isso é verdade, obtemperou dona Elisiária, figura obrigada da missa das dez; a minha engomadeira, que serviu em casa deles não há muito tempo, disse-me que andavam sempre como o cão e o gato.
— E você calada, Elisiária! exclamou a dona da casa em tom repreensivo.
— Esqueci-me de lhes dizer.
— Uma senhora do grupo, que tudo ouvia sem dizer nada, tomou a defesa de Alice Viegas:
— Em todo o caso, não creio que a razão esteja com o marido. Conheço perfeitamente Alice... fomos companheiras de colégio: é uma senhora que está acima de qualquer suspeita.
— Quem sabe lá? redarguiu outra. Tem se visto tanta coisa extraordinária!
— Sim... tem se visto muita coisa, disse a viscondessa, mastigando as palavras; mas não há dúvida que até hoje ninguém se lembrou de dizer mal da Alice.
— Ninguém, apoiou dona Isaltina. Não gosto dela, nem ela gosta de mim, mas devo ser justa.
— Não gosta dela por quê? perguntou a amiga do colégio. Alice é tão boa!
— Não duvido, mas de tempos a esta parte começou a tratar-me por cima do ombro, fingindo que não me vê ou me cumprimentando por favor, como se fosse alguma coisa mais do que eu.
— Talvez alguma intriga...
— O doutor Getúlio, meu compadre, preveniu-me de que ela não era minha amiga, mas não quis dizer-me por quê. Entretanto, sou tão superior a essas pequenices, que a defendo mesmo sem conhecer os motivos da separação. A culpa deve ser do marido.
— Não sei, objetou a viscondessa. Conheço de perto o Teodureto Viegas, que é contraparente do visconde. É um moço distintíssimo, correto, e nada consta que o desabone.
— A Alice tem um grande defeito, disse dona Elisiária; a esse respeito minha engomadeira contou-me coisas muito interessantes...
— Que defeito? perguntaram cinco vozes.
— É muito ciumenta.
— Muito, confirmou a amiga do colégio, e esse deve ser o motivo real da separação. O doutor Teodureto Viegas andava num cortado!
Dona Isaltina, que era o espírito de contradição em pessoa, folgou de ter essa ocasião de divergir, e observou num tom de profunda convicção:
— Minha cara, não há ciúmes de esposa que não tenham razão de ser. Isso de ciúmes infundados é uma história inventada pelos senhores homens. A Alice era ciumenta, porque naturalmente o marido lhe dava motivos para isso.
— Deus me livre de defender os homens, disse a viscondessa: mas hão de convir: há casos em que a injustiça de certas senhoras...
— É um engano! atalhou dona Isaltina. As vítimas são sempre elas!
— Isso é muito absoluto!
— Será, mas é assim mesmo; nesse ponto sou intransigente, e defendo contra os homens até as minhas próprias inimigas!
E acrescentou com fanfarrice:
— Se o doutor Teodureto Viegas aparecesse aqui neste momento, eu interpelá-lo-ia, e as senhoras veriam se tenho ou não razão!
Notável coincidência: palavras não eram ditas, e o doutor Teodureto Viegas, como se esperasse a deixa, assomou no portão do jardim e tocou a campainha.
— É ele! exclamaram ao mesmo tempo todas as senhoras do grupo.
Um criado foi imediatamente abrir o portão ao recém-chegado, que entrou e subiu para o terraço, onde apertou a mão da viscondessa e cumprimentou as demais senhoras com muita distinção de maneiras.
Vinha procurar o visconde, com quem desejava conversar sobre um assunto íntimo.
— Meu marido está lendo os jornais no seu gabinete, disse a viscondessa. 

E voltando-se para o criado:
— José, vá dizer ao senhor visconde que está cá embaixo o doutor Teodureto Viegas, que lhe deseja falar.
— Muito obrigado, viscondessa.
A dona da casa, que era perversa, e queria saber até onde iria a coragem tola de dona
Isaltina, ofereceu uma cadeira à visita, dizendo-lhe:
— O doutor não morre cedo: falávamos da sua pessoa...
Houve um grande silêncio.
— Naturalmente o assunto da conversa era o lamentável incidente que se acaba de dar na minha casa, e do qual foi testemunha, em parte, o doutor Getúlio, compadre da excelentíssima...
E apontou para dona Isaltina.
— Pois é verdade, minhas senhoras, separei-me de minha mulher, continuou o doutor Viegas com uma franqueza que assombrou o grupo; desmanchei a minha família, destruí todos os meus sonhos de futuro... Destruir é um modo de dizer; destruídos estavam eles há muito tempo!
— Uma vez que o doutor fala com tanta franqueza, tornou a viscondessa, dir-lhe-ei que uma das senhoras presentes o acusava, não há três minutos, dizendo que o interpelaria se o senhor aparecesse aqui de repente, como apareceu por um singular acaso.
 Conquanto a ninguém deva conta dos meus atos, estou pronto a ser interpelado... Qual de vossas excelências é a interpelante?

—  Eu! — exclamou prontamente dona Isaltina, que não se quis mostrar pusilânime, — eu, e o doutor bem sabe que sua senhora, não sei por que, não simpatiza comigo; portanto, não sou suspeita.
— Desta separação somos ambos culpados, minha mulher e eu. Ela, porque era injusta, porque fazia da nossa casa um inferno e não me deixava trabalhar; eu, porque, casado há quase três anos, não tratei de corrigir, desde os primeiros dias, os seus defeitos de educação. Alice entendeu que eu deveria ser, não o seu esposo, não o seu companheiro amante, fiel e dedicado, mas o escravo dos seus caprichos, das suas fantasias, das suas visões. Fiz todos os esforços para viver só para ela e para o trabalho: não consegui! Se continuássemos ligados um ao outro, em pouco estaríamos velhos e gastos. Não nos compreendíamos e já não nos amávamos. Não tivemos filhos. Éramos ambos ricos. O melhor que tínhamos a fazer era procurar cada qual outro destino.
— Mas Alice é uma senhora honesta, disse dona Isaltina.
— Não nego, minha senhora, e posso dar o melhor testemunho de sua honestidade. É honesta, e também eu o sou, conquanto ela o não creia; mas a honestidade não basta para fazer a ventura de um casal: é preciso também o amor. Desde que este desaparece para dar lugar à mentira e à hipocrisia, só as conveniências sociais me poderiam obrigar a aceitar uma situação intolerável, e eu, com perdão de vossas excelências – declaro que não sacrifico a minha vida à sociedade. Não foi só para os desonestos que se inventou o divórcio.
— Alice era muito ciumenta, murmurou tristemente a amiga de colégio.
— Ainda bem que vossa excelência o sabe. Foram os ciúmes que envenenaram a nossa existência conjugal e deram cabo do nosso amor! — Ciúmes terríveis, extravagantes, absurdos; ciúmes que me ofendiam e muitas vezes me colocavam numa posição desairosa e ridícula. Ciúmes de todas as senhoras, com quem eu falava, ciúmes das mulheres desconhecidas que se sentavam ao meu lado no bonde ou no teatro, ciúmes das amigas, das criadas e até das cozinheiras!
Dona Isaltina, que era muito impertinente, observou, franzindo a cara:
— É impossível que tantos ciúmes fossem à toa... É impossível que o senhor não lhe tivesse dado, ao menos uma vez, razão para...
Minha senhora; atalhou vivamente o doutor, aproximando a sua cadeira da de dona Isaltina, — eu tive o prazer de encontrá-la uma noite no Cassino, e troquei algumas palavras com vossa excelência. Essas palavras foram desrespeitosas?
— Ora essa!
— Peço a vossa excelência que me responda: algum dia faltei com o respeito devido a vossa excelência?
— Nunca! Nem eu o permitiria!
— Algum dia estive a sós com vossa excelência?
— Comigo? Nunca!
— Algum dia vossa excelência recebeu uma carta minha ou um aperto de mão suspeito?... algum dia surpreendeu nos meus olhares ou nos meus gestos a manifestação de um desejo impuro?...
— Nunca!
— Pois bem; na opinião de minha mulher, vossa excelência foi minha amante! 

Estupefação geral.
— Ela muitas vezes me atirou à cara os nossos amores, e fartou-se de o dizer a muita gente, inclusive ao doutor Getúlio, compadre de vossa excelência. Pergunte-lho!
Dona Isaltina ficou petrificada.
Nesse instante voltava o criado, dizendo:
— O senhor visconde manda pedir ao senhor doutor que suba.
— O marido da ciumenta Alice cumprimentou as senhoras e desapareceu no interior do palacete.
— Minhas amigas, disse a viscondessa, o doutor Teodureto Viegas respondeu tão bem à interpelação, que podemos, creio, votar uma moção de confiança.

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Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo (1855-1908)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)

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