Havia
pouco tempo que namorava com Ricardina.
Elegante,
de uma esbelteza patrícia, de rosto gentilíssimo que um olhar, meigo e simples
como nenhum, mais alindava, — a cada momento lhe descobria perfeições que me
enamoravam crescentemente, variadamente, cativando-me por cem laços, sempre
novos e mais fortes, que deixavam supor outros que, por serem misteriosos, mais
ainda me cativavam...
Conhecia-a
apenas de alguns dias, quase só de a adorar na varanda da sua casa antiga, pela
noite morta, — graciosamente banhada, como se fosse uma deusa, na luz viva de
um candeeiro: era ele — se me não havia de lembrar! — o nº 1.485...
Ricardina
falava ainda pouco, muito pouco, — mas, nas linhas instáveis do seu rosto,
adivinhava-se já a nobreza da sua alma vibrátil, cheia de inocência e poesia. A
minha ideação juvenil supria o silêncio dela: completava-a no seu pensar e no
seu sentir, espiritualizando-a, — como um artista completa o esboço fugaz de um
quadro, subtilizando-o com o vago do sonho. — E há lá artista mais artista do
que o namorado?!
O
namorado vai buscar à imaginação a costela de que forma o seu ídolo, a mulher
que o apaixona. O sopro divinal que lhe dá vida, a ela, é a paixão que o gera e
constantemente inflama. A mulher adorada vive mais na idealidade nossa — do que
na realidade.
Assim,
Ricardina, o meu ídolo, brotava do meu pensamento e do meu sentimento, brotava
do meu sonho, inigualável de harmonia, de perfeição, de beleza, entre os mirtos
e as rosas da minha fantasia, — qual Vênus pura e branca, da espuma branca e
pura das ondas...
Ricardina
era afinal uma realização do meu desejo, da minha vontade, do meu ideal; era
uma criação do meu espírito. A minha alma, entusiástica, pulsava em Ricardina,
envolvendo-a numa fotosfera de lindeza que não era também mais do que expansão
da minha própria alma...
Falava pouco, muito pouco... — Mais eu sonhava, porque a minha ignorância de Ricardina mais asas me dava à imaginação, — e mais a adorava ainda porque destarte mais ela era como eu sonhava e desejava que fosse...
Tagarelava
eu, no voar daquelas horas deliciosas que sob a sua varanda passava,
escandecendo as frases com todo o calor da minha sensibilidade febril, para
animar aquela formosura discreta e recatada a condensar em palavras de anjo a
candidez, a virtude, o talento que lhe vagueavam na expressão do rosto.
Eu
só podia, no entanto, sonhar, enleado na transparência da sua alma divina. Por
seus lábios quase lhe não deslizava mais que o indefinível encanto do sorrir...
E como era bom sonhar!
Uma
noite, disse-me ela — que enternecedora timidez! — que o enlevo daquelas horas
noturnas, já docemente habitual, ia ser interrompido na sequente noite. Não
estaria em casa.
—Talvez!
sublinhava com voz um pouco menos tímida, — e no seu olhar mais úmido a luz do
gás convertia-se em feixes de luar...
Roguei
então, descorçoado, que se não esquecesse de na grade, — onde o peito se lhe
agitava num ritmo curto —, deixar qualquer sinal que me avisasse da sua
ausência.
Sonhava
ao aproximar-me da varanda preciosa, onde os seios de Ricardina, sempre
disfarçados em corpete castamente farto, se premiam tantas vezes sem que o
ferro, ao experimentar-lhes a resistência, jamais lhes pudesse trair a curva...
Sonhava com o sinal, que infantilidade! — sonhava na graça que lhe dariam
aquelas mãos, delicadamente pequenas, leves, como percorridas por angélicos
nervos... Eu adoro o mistério... Quem o não adora? — e o mimo daquele sinal, que
na significação me faria sofrer e na sua arte me faria gozar, era um mistério —
a um tempo agro e doce como a saborosa pena de ver chorar por nós a mulher a
quem amamos.
Cheguei
alvoroçado, a sufocar de ansiedade.
Na
varanda, caída de um espigão, vi à luz intensa do bico incandescente n.º 1.485,
uma peúga branca do pai de Ricardina.
Viana - do - Castelo, outubro de 1911.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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