Em Casa de Fídias
– Por
Afrodite! Aí está uma façanha tão difícil como um trabalho de Hércules por mãos
de Tersito. Duvido que o consigas.
Isto dizia
de Fídias escolhendo um cinzel dentre os cinzéis que em caixa de ébano um efebo lhe apresentava, e o dizia à mulher mais bela da época, à jônia formosíssima
que naquele momento pousava para a figura de Nêmeses, no baixo-relevo de Helena
e Leda.
No grande
relógio de sol a sombra do indicador marcara já o meio daquele dia de
esplendores, todo azul e faiscações luminosas sobre a cândida florescência do
mirtal copioso que aureolava de verde a branca vivenda do escultor,
perfumando-a suavemente. Da alpendrada, onde Fídias trabalhava nos dias em que
Aspásia era o modelo, a vista alcançava uma paisagem serena de horizontes
calmos ao fundo e um derramado bando de filazinhas alvas que desciam,
crescendo, pelos declives da Acrópole, até se fundirem nas magníficas vivendas
de mármore circunjacentes à Ágora. E à esquerda do Júpiter Olímpico, quebrando
a monocromia cegante, como um papagaio em meio dum bando de fuinhas brancas,
avultava a mancha verde-escura do plácido retiro onde Tomilda se acolheu após o
insucesso do seu amor perante o coração de Aspásia. (Este ambicionado coração
era já todo de Péricles, se bem que inda às ocultas na penumbra de timidez que
envolve um amor nascente.) Uma porta aberta junto alpendrada deixava entreve a
grande oficina – um caos de alvuras imortais, alvuras de gênio àquela hora
obumbradas pela meia-sombra do aposento; e ali fora, bem batida de luz, também
se via uma, repousando num soclo empoado de esquírolas: pedra magnífica, tirada
das carreiras do Pentélico, sem um veio a lhe macular a nívea candidez e na
qual um escopro firme já esboçara a atitude de três figuras que o tempo imortalizaria.
Ao lado desse bloco, sentada numa espécie de grabato, a grega famosa inclinava
o corpo em lânguida postura, a cabeça apoiada no fuste da coluna, e os olhos de
deusa pousados na figura do artista, que sorria prestes a reencetar o
cinzelamento do rosto da Nêmeses. O peplo nitente caía em pregas moles,
escondendo a meio o seu corpo tão belo que por ele se modelavam às estátuas de
Afrodite, e tão famoso que de Mileto a Elêusis não havia lábio heleno que, ao
evocá-lo, se crispasse na ânsia de um beijo.
– Vai agora
a minha Afrodite, disse Fídias, pensar um pensamento amável, para me reter nos
lábios um ar leve de felicidade calma. Assim!
Aspásia
evocara talvez, a figura do homem amado, porque o artista a viu cerrar
lentamente as pálpebras enquanto lhe descia a pousar nos lábios uma como
luminosa borboleta de graça – o rito sutil das calmas felicidades.
Fídias
embebeu nela um olhar demorado e quente, menos de artista, talvez, que de
amante. Depois, sacudindo a cabeça poderosa, como a espantar a mosca de um pensamento
triste, suspirou, e volvendo à pedra, mordeu-a com o cinzel.
Esquírolas
gizaram de branco o ar sossegado, e o ritmo do macete se fez ouvir, cadenciado
e firme. Caiu na alpendrada um silêncio de sombra adormecida. Fora, o mormaço
parado, com andorinhas riscando curvas no azul, punha irisações na aresta das
coisas.
A vida
ambiente concentrara-se no ofego leve do seio de Aspásia e no fulgor vivíssimo
dos olhos de Fídias. Tudo mais, parado e morno. Era o momento do fiat – instante supremo em que uma aura
de vida transfiltra-se à pedra e vem construir uma alma debaixo de sua fria
mudez. Cada golpe embute-lhe um átomo de vida. Fídias criava. Êmulo de Jove,
era, naquele momento, deus.
A face de Nêmeses
ia surgindo da pedra bruta em relevo claro, e da ponta do cinzel, que sobre ela
dançava um minueto, um fio de vitalização defluia, ajeitando-se numa expressão
magnífica de graça. Na comissura dos lábios o cinzel mordeu o mármore com
vivacidade nervosa e parou. Estava quebrado o encanto. Fídias volvia a ser
homem. Riu-se.
Após um
momento de êxtase no qual amorosamente contemplou sua obra, atirou com o cinzel
para a caixa e retomou assunto da vida.
Falavam de
Sócrates, que concebera violenta paixão pelo famoso pupilo de Péricles,
Alcibíades, do qual Aspásia prometera ao filósofo vencer a desdenhosa
insensibilidade.
– No íntimo
eu os aborreço a todos, a essas feias máquinas de argumentar. Repele-os o meu
temperamento. Quero a Forma, a Eurritmia, a Serenidade da Beleza pura e na Sofística
só vejo maranhas e dissonâncias. Detesto a Sócrates.
Aspásia, sem
descerrar os olhos, sofismou:
– A beleza
moral não é também uma forma da Harmonia? Só o concreto é possível de ritmo?
– Bravos!
exclamou Fídias, zombeteiramente. Quando a nova Targélia nos abre um curso de
filosofia?
Aspásia
descerrou os olhos e riu-se, cristalinamente, enquanto Fídias prosseguia,
volvendo ao assunto:
–
Alcibíades, um Apolo adolescente, poderá amar um sátiro como o tal inovador?
Tem harmonias recônditas, dizes, mas que importa se não traduz instantaneamente
num soberbo equilíbrio de plástica? Não, Aspásia; apesar de conhecer a força da
felonia duvido que consigas vencer a repugnância dessa esplêndida criança.
– Verás.
Juro-te por Afrodite que o pupilo de Péricles cairá nos braços do meu filósofo!
afirmou com ar felino a pagã maravilhosa.
Houve um
silêncio. Fídias retomou o cinzel e voltou à pedra. Seus olhos iam do mármore à
carne e da carne ao mármore, roubando as formas de Aspásia para fixá-las no
calcário. A grega semicerrou de novo os olhos; parecia dormir, sempre com a
mesma expressão de amor e de vaidade saciada a desabrochar nos lábios em rito
sutil.
Nesse
momento ergueu-se da praça um rumor de passos. Aspásia, desperta, volveu para
baixo um olhar de pressentimento. Um grupo de arcontes seguia em direção
Ágora.
Passavam lentamente. Súbito, o rosto de Aspásia fulgurou, e de sua boca escapou
um nome pronunciado com tal doçura que foi para Fídias uma ducha de gelo: –
Péricles!...
– Péricles!
murmurou também entre os dentes, com voz rancorosa o artista, atirando para o
grupo um olhar vencido.
Péricles
passava, no meio dos arcontes, esplendidamente belo na sua clâmide alva, caída
em pregas perfeitas de correção e elegância.
Passava e,
ao defrontar a vivenda do escultor, ergueu os olhos. Aspásia mandou-lhes ao
encontro os seus... Trocaram, num relâmpago, poemas de amor.
E seguiu. A
pagã irradiava. Saltou do grabato e espreguiçou-se felinamente, risonha, a
rever pelo corpo inteiro uma aleluia d’alma. Fídias deixou cair o cinzel e
correu a mão pela testa. Viu-a ajeitar o cabelo; viu-a consertar o peplo. E
viu-a partir com a alma cheia do outro deixando após si um vazio imenso...
Lançou um
derradeiro olhar à Nêmeses e sumiu-se pela oficina a dentro, de cabeça baixa,
sombrio e torvo.
Porque
também a amava...
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José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
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