O que me interessa nos livros de Eça
de Queirós é o próprio Eça. Estou tal qual como aquele velho fidalgo lisboeta que
dizia assim: — É uma pena que o Eça desperdice tanto talento a contar-nos o que
se passa em Leiria... — É o Eça, por trás da S. Joaneira ou por trás do
conselheiro Acácio, que me aflige, me surpreende ou me encanta. Como são também
as excrescências do Camilo que eu adoro em Camilo e os exageros do Fialho que
eu adoro no Fialho. Nas interrupções, quando o autor se esquece e declama ou
barafusta, quando vem para o tablado discutir, é que eu aplaudo com delírio.
Absorvo-me. Talvez a narrativa perca, o fio corta-se, aumenta a barafunda. Bem
me importa a mim a barafunda! Lá estão os autores, muito mais vivos que as
figuras dos livros. Já dizia o outro, um romance, um poema ou uma álgebra, são
meras explicações do universo, e eu todo me alvoroço com o que o universo fez
sofrer ou fez rir ao Eça, ao Fialho e ao Camilo, e só me interessa deveras a
maneira como eles reagiram. O que se passa em Leiria, ou o que se passa num
andar da Baixa, é efetivamente uma insignificância, não por se passar em
Leiria, em Paris ou na solidão do Monte — mas por lhe faltar grandeza.
Por isso a primeira fórmula do Eça é pior
que a segunda, e dela só se aproveita o debate com a ninharia, e a maneira como
ele consegue, para lhe dar alma, revesti-la de ironia.
Na segunda fase da vida do Eça
sente-se a influência feminina. Alguém o levou pela mão até à ternura... Eça de
Queirós percebe que há na vida coisas simples, que são as coisas eternas — a
pobreza, a religiosidade de certas almas que conseguem imprimir grandeza a
ideias e a sentimentos, que os críticos e os filósofos desdenham. Passa então a
achar-lhes sabor e encanto, e fica um tipo interessante. Não sabe se há de rir
ou chorar... O ironista para um momento diante de nós, atônito, e o esnobe sai da
vida como aquele Ega celebre sai do baile do Gouvarinho, vestido de
Mefistófeles, com a pena partida e o vermelhão a desfazer-se-lhe na cara, derretido
pelas primeiras lágrimas...
---
RAUL BRANDÃO
"Eça
de Queiroz: In Memoriam" (1922)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...