O mais imperativo dever, de espírito e de
coração, me obriga hoje a dominar o inveterado acanhamento dos meus hábitos
para o fim de intervir num ato público, — o da entrega solene à edilidade
lisbonense do monumento que os amigos e admiradores de Eça de Queirós lhe
consagraram, e do qual o talento de Teixeira Lopes fez uma das mais eloquentes
e comovedoras obras da escultura portuguesa.
Senhores representantes da cidade de Lisboa, a vós especialmente tomo a liberdade
de me dirigir.
O significativo padrão de que o conde de Arnoso
acaba de vos dar posse, representa o apreço em que foi tido por alguns dos seus
coetâneos um simples escritor que, inteiramente recluso na religião da arte, se
não entremeteu nunca nos conflitos seculares da sociedade a que pertenceu.
Nunca manipulou negócios, nem dirigiu
empresas, nem exerceu espécie alguma de autoridade ou de poder sobre os homens
do seu tempo. Não foi general, nem ministro de Estado, nem deputado às cortes,
e nunca poderes públicos nem sociedades sábias ou recreativas lhe votaram a coroa
cívica, de herói, de mártir ou de simples e incategorizado visconde. Foi
meramente um artista na mais extreme e estrita acepção desta palavra. Por esse único
título, a quem não teve mais nenhum, se erige um monumento. — Caso novo e único
nos fastos das consagrações póstumas, por meio do qual, numa cidade portuguesa,
inesperadamente se afirma o vínculo de solidariedade que em certo momento
pareceu existir entre a vida civil e a vida intelectual da nossa raça. E é por
certo um fato que fica bem a Lisboa ser ela que dê ao país, em nossos dias de
implacável egoísmo, este primeiro exemplo do subido interesse nacional que
alguns cidadãos ainda ligam às mais puras e inegociáveis especulações do espírito.
Os títulos de Eça de Queirós a este galardão
podem talvez compendiar-se em breves palavras.
Desde os nossos grandes escritores
seiscentistas até Garret nunca mais houve na literatura portuguesa senão
estilos derivados, secundários, imitativos, ostentando pomposamente a
inexpressibilidade mais indigentemente acadêmica, e mais inânime. Garret foi o
primeiro que, opondo-se à corrente do convencionalismo, meteu debaixo do joelho
o monstro da ênfase atávica, da hereditária retórica, que por mais de dois
séculos resfolegara apopleticamente no fundo de toda a nossa produção artística.
Queirós foi para a segunda metade do século XIX o que Almeida Garret havia sido
para a outra metade da mesma centúria: o escritor do seu tempo, desprendido de
todas as superstições técnicas, exercendo livremente sobre a palpitante
realidade do mundo vivo as suas pessoais faculdades de analisar e de sentir.
Com a diferença: que Eça de Queirós, especializando-se no romance naturalista da decadente e complicada
sociedade contemporânea, tinha de manejar um instrumento de observação e de
notação gráfica sumamente mais complexo, de uma impressionabilidade e de uma
agudeza incomparavelmente mais discriminativa, mais minudente e mais sutil, que
o que empregara Garret na idealização poética das nossas lendas e na dialogação
simplística, forçosamente convencionalizada e exigentemente declamativa, do
teatro histórico.
Sem enriquecer o léxico, como Castilho e como
Camilo Castelo-Branco, por meio de vozes novas e de vernáculos pela primeira
vez trazidos da tradição oral ou da raiz erudita para o discurso literário,
Queirós elevou a uma perfeição de relevo, de colorido e de luminosidade, que
nunca antes dele se atingira, o que propriamente se chama a arte de escrever, dando ao giro da
frase, independentemente do rebuscamento do vocábulo, temas melódicos,
combinações de harmonia e efeitos orquestrais do mais dominativo e avassalante
poder de sugestiva comoção.
Não é porém um retrato literário do insigne
escritor que me proponho traçar. O meu fim é unicamente fazer notar a Lisboa
que Eça de Queirós é, como romancista, o mais fundamentalmente e mais
genuinamente lisboeta de todos os escritores nacionais.
Ele e eu fomos íntimos companheiros de
trabalho e de estudo durante mais de trinta anos — toda uma vida. Nascemos sob
a influência astral do mesmo mês, eu um dia antes dele, e só nisto lhe passei
adiante. Viemos ao mundo e fomos criados na mesma região de Portugal.
Embalaram-nos idênticas orações de nossas mães. Crescemos no seio da mesma
paisagem, entre os esfumados e saudosos relevos do mesmo monte e a arfante
vastidão do mesmo mar. Passamos na sombra dos mesmos castanhais e das mesmas
carvalheiras, entre as amoras e as madressilvas das mesmas azinhagas. Ouvimos o
borbulhante murmúrio das mesmas águas regadias, o lento gemer das mesmas azenhas,
as ternas cantigas das mesmas esfolhadas, e o alegre repicar dos mesmos sinos,
nas vigílias dos mesmos santos.
Foi em Lisboa que mais tarde nos encontramos,
ainda moços, mas bem diferenciados já pela influência do temperamento e pela
dos contatos da vida na formação e descriminação da personalidade. Eu, mais
acentuadamente sanguíneo, grossamente musculoso, antigo passarinheiro, caçador
de coelhos e pescador de trutas na sussurrante espessura dos pinhais, e na
desnevada corrente dos rios angustiados e precipitosos das serras da nossa província,
era, e fiquei para sempre, nostalgicamente minhoto, e como tal com vocação atávica
para viajante e para embarcadiço, gostando de ver terras e de andar nas águas
do mar, adaptando-me facilmente a todos os meios cósmicos, domando-me a tudo.
Ele, delicado, nervoso, eminentemente cerebral, prodigiosamente imaginativo, fora
desde logo em Lisboa como que hipnoticamente atraído e aliciado pelo dramático
problema de humanidade que encerram as quatro paredes de cada prédio ao longo
dos populosos arruamentos de uma cidade. A perscrutação desse fenômeno, compreendendo
toda a cerebração e todo o emotismo de um lugar e de uma época, tornou-se a
absorvente e dominativa curiosidade do seu espírito.
Lisboa foi desde então o seu laboratório de
arte, o seu material de estudo, a sua preocupação de crítico, o seu mundo de escritor,
o romance dele, iria dizer o seu vicio, a sua fatalidade, o seu destino. E pela
razão de que profundamente se ama tudo o que profundamente se estuda, ele amou
profundamente Lisboa, e a pouco e pouco se tornou ele próprio enraizadamente lisboeta,
lisboeta até as mais íntimas moléculas do seu organismo, até as mais profundas
criptas da sua alma.
Nenhuma das outras grandes e belas cidades em
que residiu ou por onde passou — Paris, Londres, Nova York, Madrid — teve o
condão de o reter e de o seduzir. Em Paris, que por tantos anos habitou, ele
nunca foi senão o estrangeiro, o hóspede, o emigrado, hostilmente refratário, aí
como em qualquer outra parte, a toda a penetração de cosmopolitismo. A última vez
que o vi, atravessando os Alpes a caminho da Itália, num terraço de hotel, em
Glion, tendo sob os nossos olhos o incomparável panorama do lago Leman, perto
do qual, poucos dias antes, nos tinham mostrado as casas que haviam sido o refúgio
ideal de Wagner e de Ruskin, ele, recebendo-me o abraço de despedida e velando
pudicamente a sua comoção com um disfarce de ironia, deixava-me compreender que
o que mais o seduzia e cativava na excursão da Suíça e na viagem da Itália,
onde, pouco depois, ele esperava ir encontrar-me, não era o lago de Genebra,
nem o lago Maior, nem o lago de Como, nem Roma, nem Florença, nem Veneza, nem
Palermo, nem Siracusa, nem Taormina; era simplesmente a chegada do vapor de
Nápoles ao ancoradouro do Tejo, em frente do Cais das Colunas, ouvindo, ao
romper do dia, cantar os galos da Ribeira Velha.
Os seus contos e as suas novelas são o
espelho desse consórcio do seu espírito com o espírito da vida lisbonense. Se
um cataclismo arrasasse Lisboa e subvertesse todos os seus habitantes, pela
obra de Queirós, que poderíamos denominar A
comedia burguesa de Lisboa no último terço do século XIX, se reconstituiria
toda a vida da cidade durante o tempo em que ele foi o mais encantador dos seus
cronistas.
Sobre as páginas imorredouras dos seus
livros, Lisboa inteira passa e se reflete como num rio de arte, cristalino,
suave e passivo: as ruas com o burburinho familiar e característico do seu comércio,
dos seus pregões, das suas guitarradas, os jardins públicos, as lindas hortas e
quintas suburbanas, os passeios da moda, os teatros, os botequins literários e políticos,
as tabernas populares, as casas de hóspedes e de penhores, os interiores de palácios
e de habitações burguesas, os clubes, as redações de periódicos, as cenas de esporte
e as cenas de mundanismo, a religião, a política, a oratória, a epistolografia,
as modas, as aspirações, os cuidados, os vícios, os fingimentos e as
hipocrisias, as taras hereditárias e as psicoses endêmicas, com todas as
alucinações, todos os letargos, todas as incoerentes anomalias da grande
nevrose do nosso tempo.
E, nesse vasto cenário, toda uma densa
população pulula, ama, pensa, estuda, combate, intriga, devora, ou boceja, e numa
urdidura de lágrimas e numa trama de sorrisos penosamente vai tecendo a frágil
teia da vida. As personagens de Eça de Queirós, que ele arrancou da banalidade
da carne para as imortalizar tornando-as típicas pela auréola da arte, vivem em
nossa imaginação mais poderosamente e mais intensamente do que se fizessem uma
parte material do nosso mundo objetivo. Fradique Mendes, Carlos da Maia,
Gonçalo Ramires, o primo Basílio, o padre Amaro, o cônego Dias, João da Ega, o
Raposão, o Dr. Margaride, o Libaninho, o conselheiro Acácio, e outros muitos,
são outros tantos autênticos, atuantes, ponderosos moradores de Lisboa, que,
neste momento talvez nos estão ouvindo, ou cujas opiniões, teorias, modos,
gestos, expressões fisionômicas e estados d’alma iremos encontrar hoje mesmo na
Havaneza, no Terreiro do Paço, no Central, no Tavares ou no Augusto, descendo o
Chiado, às 4 horas, passeando ao crepúsculo na Avenida, ou à noite, no teatro,
exibindo-se, pontificando, discursando, flertando ou aborrecendo-se juntamente
com as mulheres, as filhas, as tias, os namoros e as próprias criadas: a
alucinante e fatal Maria Eduarda, a desgraçada e trágica Luísa, a condessa de
Gouvarinho, a Maria Monforte, a D. Leopoldina, a desordenada Lola, a
sentimental efêmera Carmen Puebla, a abominável Juliana, a tia Patrocínio das
Neves, a hedionda senhora...
Aos que opinem que deste grande quadro se não
extrai facilmente uma nítida e bem assinalada lei moral, eu ousarei observar
que o fim da arte não é moralizar os costumes por meio do pedantismo de
preceituações inúteis. O fim social da arte é simplesmente elevar, por alguns
momentos de puro êxtase intelectual, as almas de uma multidão acima dos
interesses materiais, que pela persistência da sua ação pervertem os homens,
desassociando-os da sua missão coletiva de fraternidade, de admiração, de
indulgência e de amor perante a eterna harmonia do infinito universo. É dessa
harmonia universal, passiva e transcendente, que a obra artística procura ser a
imagem tênue, irreparavelmente incompleta como toda a sublime aspiração humana
do imperfeito para o absoluto.
Terminando, meus senhores, permiti-me
dizer-vos que a admirável obra de Teixeira Lopes, da qual doravante vós sereis
os possessores, como que ratifica por uma rutilante afirmação de arte a minha
obscura opinião de crítico. Contemplando um pouco detidamente o enigmático
vulto de mulher olímpica, colocado pelo ilustre escultor junto do vulto do meu
saudoso amigo, eu concluo perguntando-me se essa gloriosa figura, em vez de
personificar uma pura e etérea abstração estética, não é antes a estátua mesma
de Lisboa, de Lisboa íntima — casta e heroica Phrynea, modelo de deusas —
desvendando intemeratamente o mistério do seu encanto aos olhos amorosamente
perscrutadores do seu primeiro, romancista.
---
RAMALHO ORTIGÃO
RAMALHO ORTIGÃO
"Discursos", 9 de novembro de 1903.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
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