Meus Senhores: — Permitam-me que
as minhas primeiras palavras sejam para saudar o grupo venerando e adorável, que
aqui nos representa as mais íntimas e santas afeições do coração de Eça de Queirós.
Impõe- me esta saudação —além de um dever de cortesia e respeitosa deferência —
o impulso de velhas e familiares amizades, que me são imensamente gratas e
caras. Deixem, pois, que eu comece por me congratular com aqueles que ele mais
amou na vida, por esta hora de justiça e de triunfo, que deve dar às suas
pungentíssimas saudades a doce compensação de ver consagrada, numa apoteose
nacional, a memória estremecida do filho, do esposo, do pai, do irmão
idolatrados.
Meus senhores: — Traz-me aqui um
culto ardente de admiração e de saudade: de admiração por um grande e nobre espírito,
de saudade por uma alma de inexcedível gentileza. E era preciso que estes
sentimentos fossem em mim muito profundos, muito sinceros, para eu esquecer
que, nesta homenagem da palavra ao grande artista da Frase Escrita, a minha voz
teria de se fazer ouvir ao lado da do primeiro orador português do seu tempo e
da do escritor ilustre, do mestre prosador, que foi também o camarada dileto, o
irmão de armas de Eça de Queirós, nessas campanhas da Crítica e da Ironia, de onde
ambos saíram consagrados para a literatura do seu país: — e para esquecer
também, meus senhores, que a voz amorável e eloquente do mais dedicado, do mais
fiel, do mais admirável dos amigos, e, pela voz de um dos nossos mais distintos
e talentosos atores, a inspiração de um verdadeiro poeta de raça, aqui viriam
trazer o seu testemunho de amor a esta pura e bela memória, tão querida, tão
adorada...
Mas, nos poucos minutos em que
abusarei da atenção de todos os que me fazem a honra de escutar- me, eu espero
achar, na sinceridade das minhas palavras e da emoção que as dita, atenuante suficiente
para merecer o perdão do meu inconsiderado arrojo.
No pedestal deste maravilhoso
monumento, o cinzel do grande artista que o fez surgir de um bloco, amorfo e
tosco, de Carrara, gravou, com profunda intuição crítica, o dístico liminar por
Eça de Queirós inscrito na primeira página da Relíquia: —Sobre a nudez
forte da Verdade o manto diáfano da Fantasia. —E, para simbolizar esta
fórmula de arte, criou essa figura incomparável, que nos encanta e deslumbra,
essa Verdade, ao mesmo tempo poderosa e graciosa, que se oferece aos olhos do
Mestre, semienvolta na sua túnica transparente e flutuante, como feita de um
tecido de sonho...
Feliz e admirável concepção a do nosso
ilustre escultor! Porque nessa fórmula de arte, expressa naquela frase marmórea
e lapidar, está em síntese todo o temperamento literário de Eça de Queirós,
todos os elementos essenciais que lhe constituíram a sua alta personalidade artística.
Essa fórmula, que foi a ultima da sua evolução literária, contém, todavia, em
si, os termos anteriores dessa mesma evolução. O fantasista tão original das Prosas Bárbaras, o fino e sutil
humorista das Farpas, transformou-se,
sob a influência das teorias de arte predominantes no seu tempo, no observador
impessoal, no realista poderoso do Crime
do Padre Amaro, do Primo Basílio
e dos Maias. O sonhador deixou o
sonho pela realidade. O fantasista deixou a fantasia — a aérea fada, vestida de
gazes leves e sedas suntuosas, bordadas de pedrarias— pela forte Verdade,
esplendidamente nua!
Mas a esta tese e antítese, a
esta inicial contradição das intrínsecas faculdades do seu espírito, buscando
nele um domínio exclusivo, seguiu-se, no momento da sua plena maturação, uma
nova fase, que foi a síntese definitiva e conciliadora dessas oposições
transitórias. Nessa fase, Eça de Queirós fundiu a fantasia com a verdade,
combinou por um genial processo de química estética as suas faculdades de
imaginação com as suas faculdades de observação. E dessa nova e última
modalidade do seu devenir artístico e
da evolução da sua obra, de que o Mandarim
foi um ensaio e a Relíquia a afirmação
formal, e de onde procede, além da Ilustre
Casa de Ramires e da Cidade e as
Serras, essa maravilhosa Correspondência
de Fradique Mendes, que é a maior manifestação do seu assombroso poder de
dar plasticidade às ideias e às sensações — dessa nova e última modalidade,
esse dístico, conciso e eloquente como uma inscrição antiga, é a justa, a
precisa, a insubstituível expressão sintética. Sobre a nudez forte da Verdade, o manto diáfano da Fantasia! Neste
lema, Eça de Queirós formulou o seu definitivo credo estético e achou a regra,
o cânon, que lhe permitiu uma ação integral das suas complexas faculdades de
artista e de escritor.
E em toda essa obra, meticulosa,
conscienciosa como nenhuma outra, concebida e realizada, toda ela, com a paixão
da verdade e o anseio torturante da perfeição, o que é difícil, para quem a
analisa, é dizer em qual das suas fases, em qual dos seus momentos, em qual dos
diversos aspectos literários por que a podemos encarar, ela é mais bela, mais
perfeita, mais admirável: o que é difícil é dizer o que seja maior em Eça de Queirós:
— se o fantasista, o humorista, o observador ou o escritor.
A sua fantasia! Onde a há mais
imprevista, mais fluida e móbil, mais ondeante e caprichosa, mais cheia de
volutas e arabescos? Ao ler algumas das suas páginas, dir-se-á que contemplamos
uma aérea fantasmagoria de nuvens, de grandes cúmulos prateados, rosados,
azulados, passando, num contínuo fazer e desfazer de imagens dissolventes, pelo
azul radioso, ao sopro de uma doce brisa de primavera!
A sua ironia! Que extensão de
escala, que variedade de tons, que multiplicidade de formas ela tem! Da charge
caricatural, da deformação grotesca, da visão macabra, da nota francamente cômica
da farsa, ela sobe, alada, ligeira, fina, sutil, na graça irrequieta e adejante
de um enxame zumbidor e dourado, até ás mais delicadas, às mais raras, às mais estranhas
flores do mais alto e quintessenciado humorismo!
As suas extraordinárias
faculdades de observação, a acuidade da sua visão psicológica, o seu mágico
poder de recrear, de reanimar os tipos e os caracteres autopsiados na mesa
anatômica da análise, insuflando-lhes como que um sopro misterioso de vida — todos
esses dons supremos, que são o apanágio dos grandes romancistas, aí está a
prová-los qualquer página, ainda a menos brilhante, dos seus livros. E se a criação
dessas formas típicas de humanidade é, num romancista, o sinal fatídico do
gênio, que chamaremos ao criador incomparável de tantas e tão vivas figuras
humanas, algumas das quais, de um poderoso relevo balzaquiano, conquistaram os
foros da imortalidade literária?!
E do escritor — que dizer? O que
ele fez da nossa língua! Que plasticidade, que ductilidade, que elegância, que
graça, que distinção de linhas, que riqueza de notas e ritmos, que sobre-humano
poder de expressão lhe não deu a sua pena — essa vara de condão de parfait magicien ès letres, como
Baudelaire chamou a Théophile Gautier? Raramente um tão divino instrumento
verbal esteve ao serviço de espírito tão lúcido e tão fino. "Não escreve
com tinta, já eu disse a seu respeito; escreve com todas as cores do espectro
solar, com ouro diluído, com pedrarias liquefeitas." É um esplendor, um
deslumbramento a sua prosa! Como nos monumentos de gótico florido, não há nela
uma linha hirta ou seca, um espaço que a florescência decorativa não invada.
Não há uma frase banal ou vulgar. Tudo ali ó trabalhado, vazado, burilado pela
sua pena, como por um cinzel infatigável e prodigioso. Mas toda essa magnífica
decoração verbal não é uma retórica artificiosa, uma ornamentação rígida, estilizada,
sem vida. Bem ao contrario, é a vida mesma traduzida pela palavra, em plena e
flagrante verdade. Dela nos dá a completa e absoluta ilusão. Porque essa prosa,
que é um verdadeiro milagre da arte de escrever, tem o dom de nos fazer sentir,
numa hipnose imaginativa, todas as impressões e todas as sensações da vida e da
natureza: formas, cores, aromas, sons, aspectos da paisagem, estados d’alma,
vibrações de nervos, frêmitos de sangue, palpitações tépidas de carne. E não há
tom, não há cambiante, não há nuance, por mais efêmera, mais incoercível que
seja, que ela não logre fixar, reproduzir, por meio de uma imagem ou de um
simples adjetivo, de inédita, estranha e evocativa expressão.
Mas não são apenas os seus
excepcionais dotes literários, o seu talento, o seu gênio de escritor, o que na
individualidade de Eça de Queirós se impõe à nossa admiração. Ele deu-nos
também o alto exemplo moral do artista que vive só para a sua arte, que todo se
absorve no seu culto, com uma pobreza, uma dignidade profissional, que tornam a
sua vida de homem de letras verdadeiramente modelar. A inata distinção moral da
sua alma, inacessível a um sentimento baixo ou mesquinho, imprimiu à sua
personalidade artística essa linha intelectualmente aristocrática, que é um dos
seus traços mais típicos e característicos. Nunca o azedaram invejas, nem o
irritaram despeites de vaidade. Nunca desceu a contemporizações, a
transigências acomodatícias, com opiniões feitas, com preconceitos ou
convenções de qualquer espécie. O seu espírito manteve sempre a plena independência
do seu libérrimo critério. A sua pena nunca se maculou com hipocrisias ou
servilismos: — foi continuamente, na sua mão, o instrumento fiel e leal do seu
pensamento. Assim, a linha da sua vida literária é de uma pureza admirável.
Sobe, sobe sempre, sem desvios, nem oscilações. E, nessa ascensão contínua e
gloriosa, percebe-se que apenas atuaram, como energias propulsoras, o talento e
a consciência artística. A sua gloria é uma espontânea criação de forças vivas:
não é a resultante desses artifícios dissimulados, dessas clandestinas molas da
réclame ou da reputação oficial — que,
apesar de toda a sua força, jamais conseguem salvar de um pronto e eterno
olvido as falsas e efêmeras glórias que produzem.
O espírito e a alma de Eça de Queirós
viveram sempre para a Beleza e para a Verdade. Essas duas divindades metafísicas
foram, para ele, o objeto de uma suprema idolatria. Justo é, pois, que ambas, fundidas
nessa figura divina, que os nossos olhos se não fatigam de admirar, guardem
pelos séculos fora a bela e evocadora imagem de quem tanto as amou e tão
nobremente as serviu!
LUIZ DE MAGALHÃES
9 de novembro de 1903.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
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