Minhas Senhoras, Meus Senhores:
Confuso pelo que tenho ouvido, em frente ao mármore da estátua onde a
sua figura avulta, quais palavras quereis que diga? Quais palavras, peregrino
que venho de longe, rude, bárbaro, cheio de devoção e de fervor, e súbito ergo
os olhos e descubro, como num sonho, a face augusta do Mestre, tão viva,
fitando a Verdade eterna, que eu mais queria ajoelhar neste terreno e para
sempre ficar defronte dela, balbuciando só para entre os dois, nesta franca
simplicidade de crente, as toscas orações da minha fé!
Que muito é que me prosterne aqui, se estais vendo homens tão ilustres
inclinar a fronte gloriosa perante a glória desse que passou!
E todavia — e por meu mal — preciso é que eu fale agora perante vós.
Preciso é, que da remota cidade legendária que ele atravessou em algum dia, nos
manda cá uma mocidade ardente e generosa, em cuja alma cai e se derrama, como
orvalho de ouro, a lição altíssima do Mestre. Manda-nos cá render o seu preito
aos pés desta estátua, e à memória do morto querido trazer também, como devido
tributo, a afirmação calorosa da sua imensa, profunda, indestrutível gratidão.
Sem que eu intente analisar aqui. Senhores, a obra portentosa do Eça,
deixai-me perguntar quem mais amor lhe deve, do que esta juventude a que
pertenço, e que entrando na vida encontrou, por ele já desbravado de tanto
preconceito, de tanto erro, de tanto convencionalismo esterilizador, o caminho
aspérrimo a percorrer!
Porque nem só nas letras a sua ação tocou — e se uma corrente de ideias
novas e sãs, nos costumes, nas artes, nas doutrinas, vai, debilmente embora,
circulando na sociedade portuguesa e de certo modo vigoriza e vivifica a
mocidade de hoje, é preciso não esquecer quão grande parte desse bem nós
devemos ao gênio de Queirós.
Vulgaridade é dizer-se que ele ajudou a fazer, nas Farpas uma revolução. Sem dúvida sucedeu assim. Mas ele foi um
revolucionário em toda a sua obra. Foi um panteísta e amou a Vida, mas a Vida
livre, livre da falsidade, da mentira, da convenção, do postiço, da hipocrisia
inútil; e assim é necessário pôr ao lado da tortura do Padre Amaro, coagido no
seu direito de viver integralmente, por um preconceito que frutifica em crime e
em morte, o martírio incomparável de Luísa, impiedosamente punida por outro
erro que não é dela, mas da sociedade falsa e vã que a rodeia.
Diga-se claro e de vez: foi por Luísa amar um dia livremente que morreu?
Não. Foi porque a sociedade fez desse amor um crime e logo todos, desde a
criada Juliana ao conselheiro Acácio, puderam degradar, espezinhar, envilecer,
a criatura que apenas fora natural. Nem se compreende que, na intenção do escritor,
o Paula dos móveis pudesse de alguma forma representar um instrumento da
verdadeira e imutável Justiça.
Tal é a moral, a larga, clara e humaníssima moral que, em meu entender,
ressalta da obra do Eça — e este é também o ensinamento que nós vimos
agradecer-lhe aqui.
Ele sofreu muito com a falsidade, com a dor, com a cobardia dos homens,
e com a guerra fatal que até as coisas parece moverem-lhes sobre a terra—e por
isso foi que muito riu. Rir, neste caso, é sofrer. Não se pense que quem passa
galhofando do Mal não chora no fundo amargamente a vasta miséria humana.
Senhores, dei a razão da nossa vinda. Hoje é para todos nós um feliz
dia. Já o tínhamos em espírito nas páginas resplendentes dos seus livros; agora
temos também a sua imagem na beleza inexcedível desta estátua. Está conosco, é
como se vivesse!
Cá viremos colher vigor e alento para a caminhada que está longe do seu
termo. Ele riu muito, ensinando muito. É preciso rir e ensinar ainda mais — rir
e ensinar até que brilhe a luz, até que de todo se descubra a figura que vejo
além meio-velada.
Só virá a paz ao mundo quando nele passar, ovante e nua, a Verdade
suprema, gloriosa, soberba e invencível!
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ANÍBAL SOARES
ANÍBAL SOARES
"Discursos", 9 de novembro de 1903.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
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