Eça de Queirós e Ramalho Ortigão
Entre o sadio e vigoroso criador das Farpas e o magro
sonhador de galantes intrigas, tudo é contraste. Nada mais expressivo para a
compreensão da personalidade de ambos, que a célebre fotografia dos
"Vencidos da Vida", onde os dez amigos aparecem todos de pé.
Dir-se-ia que a simples atitude que assumiram diante da máquina, bastaria para
tornar transparentes os seus respectivos temperamentos, tão díspares e, no
entanto, sobremaneira harmoniosos.
Vejamos Ramalho — as pernas abertas, plantadas solidamente
na terra, lembra-nos Fradique, "que parecia assentar na vida, tão
livremente e tão firmemente como sobre aquele chão de ladrilhos..." É ele
o único do grupo que tem as mãos enterradas nos bolsos, o peito saliente, a
cabeça erguida com altivez e o olhar ousado fixo num ponto desconhecido.
Sente-se que não teve a mínima preocupação de posar para o fotógrafo. Deixou que
a objetiva da máquina o colhesse assim como ele era realmente, na mesma atitude
segura e sobranceira com que se podia vê-lo à porta de qualquer café.
Compreende-se logo que é um homem voltado para fora, sem complicações íntimas,
sem problemas psicológicos, sem arrepios mórbidos e avesso a devaneios líricos.
Na sua expressão fisionômica não há o menor vislumbre de melancolia, nem
tampouco de sarcasmo, nem ironia nem desprezo, nada, enfim, que denuncie a
existência de sofrimento moral.
Um pouco adiante, entre o conde de Arnoso e Oliveira
Martins, está Eça de Queirós. O contraste é profundo. Eça estudou angustiosamente
a pose e, de tanto estudá-la, quase
conseguiu dar a impressão de um perfeito manequim. Adiantou a perna direita e
dobrou um pouco o joelho. A perna esquerda recuada tornou algo ridícula a sua
posição. Tem as duas mãos cruzadas sobre o cabo da bengala, o monóculo caído, e
afinal, entre a cartola e o colarinho alto, mostra-nos o seu rosto melancólico.
Seus olhos fitam pensativamente o solo.
Coisa singular! Dentre todos os "Vencidos",
Ramalho é o único que fita um ponto alto e Eça é o único que tem o olhar
cravado no chão. Os demais, ou fitam os companheiros próximos, ou fitam a
objetiva da máquina. E a atitude de ambos é superiormente simbólica. O
incansável farpante está interessado no mundo que o rodeia, mas o grande
adorador da forma, com os olhos postos no chão, está atento aos murmúrios da
sua tempestade interior, ouvindo os seus grandes temas intraduzíveis, dos quais
a sua obra foi, apesar de tudo, apenas um pálido reflexo.
E esses dois homens, de temperamentos opostos, uniram-se
por uma longa e sólida amizade. Mas, além de serem amigos, compreendiam-se às
mil maravilhas. Como? Por quê?
Chamemos Ramalho objetivo, extrovertido ou
simplesmente realista. Chamemos Eça subjetivo, introspectivo, introvertido, ou
simplesmente romântico. E acrescentemos que a ambos faltava equilíbrio, pois o
quinhão que receberam foi um tanto exagerado e fazia-os vacilar um pouco.
Isolados eram mais uma coisa que outra. Ao se unirem, permutaram o que lhes
sobrava, procurando alcançar uma proporção mais razoável e menos extremista.
Assim Ramalho sentiu-se atraído pela fantasia do
amigo, fantasia que o seu corpo sólido lhe negava. Assim Eça, de Queirós, que
considerava o mal uma figura de retórica, foi buscar no homem prático a soma de
realidade que as suas agitações íntimas o impediam de pesquisar.
Dessa união, o primeiro rebento foi O Mistério da Estrada de Sintra. No
folhetim, que causou furor na época, e segundo alguns, chegou a preocupar a
polícia, há uma parte de impressionante veracidade e outra da mais desabrida
fantasia. Responsabilizemos Ramalho pela primeira e Eça pela segunda, não de
modo absoluto, mas de maneira relativa e equilibrada e teremos distinguido,
certamente, a tarefa que coube a cada um dos colaboradores.
Mas, depois do Mistério,
nasceram as Farpas. Aqui não havia
possibilidade de exteriorizar a inquietação psíquica por meio da fantasia.
Tratava-se, apenas, de observar os fatos e de farpear os erros. Ora, tal
programa, se condizia perfeitamente com o caráter de Ramalho, chocava-se com o
de Eça de Queirós. Ao primeiro o que efetivamente interessava era observar e
estudar o mundo em que vivia, analisar-lhe as instituições e, se possível,
torná-las melhores e mais eficazes. Afora os Contos cor de rosa, a fantasia não encontrou guarida em seu espírito.
Verdadeiro realista, foi incapaz de criar, limitando-se a estudar e comentar o
que via em torno de si. Traduziu a Higiene
da Alma, do barão de Feutchterleben, e escreveu livros hoje inadmissíveis
para nós, como Banhos de Caldas e Águas
Minerais e As Praias de Portugal,
que são impressões de viagem, onde a par de observações científicas, menciona
"os horários dos caminhos de ferro, os preços dos hotéis e os
anúncios", como assinala Fidelino de Figueiredo. Também A Holanda pertence a esse gênero de
literatura.
***
É nas Farpas,
entretanto, que Ramalho e Eça se identificam, embora por um instante. O traço
que os uniu foi a ironia contra a sociedade portuguesa, e, como ambos zombassem
do erro e do ridículo, chegaram a pensar que um mesmo objetivo os ligava. Entre
as duas formas de ironia, porém, abria-se um profundo abismo que não tardou em
manifestar-se.
Quão diferente era a gargalhada de Ramalho, da risada
ferina de Eça! Enquanto aquele ria para desmoralizar e corrigir, este
vingava-se da sociedade, apontando-lhe o nariz grotesco com diabólica
satisfação.
Enquanto a finalidade era demolir, trabalharam juntos,
iludidos, pensando que obedeciam ao mesmo impulso, Mas bem depressa
patenteou-se a divergência que os separava. Ramalho queria derrubar o casebre
para construir o palácio. Eça derrubava pelo prazer de derrubar.
Quando Ortigão achou que o terreno estava
suficientemente preparado para nele serem lançados os alicerces do novo
edifício, Eça recusou-lhe a sua colaboração, procurando mais tarde justificar o
seu gesto em artigo publicado na Renascença:
"As Farpas, segundo as declarações do editor, tinham dois mil assinantes;
isto representava de cinco a seis mil leitores; se, propunha ele, aproveitando
um tal auditório, nós lhes ensinássemos alguns princípios? Fiquei aterrado:
ensinar! Eu era, sou ainda, em filosofia, um touriste facilmente cansado, em ciência um diletante de coxia. Converter a alegre catapultazinha numa austera
cadeira de professor!... Fui prudentemente para a Havana."
A personalidade de Ramalho Ortigão não oferece
mistérios, pois seus objetivos são mais que transparentes. Foi um incansável
lutador, dirigindo toda a sua força contra os vícios da sociedade portuguesa.
Por isso mesmo era um grande conhecedor da sua terra e da sua gente.
Mas, se Ramalho procurava conhecer o português, Eça,
por ser um artista na mais completa acepção da palavra, procurava descobrir,
além e acima do português, o Homem. Sabia que, sendo homem, fazia parte de um
todo e sabia, portanto, que, quanto mais conhecesse a si próprio, mais
conheceria a Humanidade. Quanto mais introspectivo, mais universal e, quanto
mais particular, mais geral seria.
Entre os escritores há os que se ocupam do transitório e os que se ocupam do eterno. A vida dos primeiros é efêmera e a dos segundos é imortal. Ramalho é um exemplo curioso do pensador que se ocupa do transitório como se fosse o eterno, condenando-se a perecer dentro de breve espaço de tempo. Com efeito, seus livros de há muito perderam o interesse e os que ainda o manuseiam, fazem-no por simples curiosidade histórica ou atraídos pela sua amizade com Eça de Queirós. Este, porém, está tão vivo e atual como na época em que viveu. Por quê? Sem dúvida porque, enquanto Ramalho descrevia os hábitos do homem português e detinha-se nas suas atividades sociais e exteriores, Eça estudava as paixões do homem que, acidentalmente, era português. Ora, os hábitos facilmente mudam com o correr do tempo, mas as paixões serão sempre as mesmas, enquanto o mundo for mundo, sejam quais forem as transformações econômicas políticas e sociais que porventura se processem.
A Eça de Queirós coube a tarefa de lançar o sopro eterno
sobre os estudos transitórios de Ramalho. Viana Moog ilustra de modo singular esta
afirmativa, no seu livro Eça de Queirós e
o Século XX, ao observar que a criada Juliana do Primo Basílio é a edição individualizada de um estudo da criada
portuguesa em geral, que Ramalho havia feito nas Farpas. Ora, o estudo de Ramalho, embora penetrante, com ares
psicológicos, atinha-se às exterioridades. Eça de Queirós, porém, criou Juliana
nos moldes oferecidos por Ortigão. Deu-lhe um corpo, apenas porque seria impossível
que ela vivesse sem ele. Mas, deu-lhe, sobretudo, uma alma agitada por
sentimentos de revolta, de ambição, de alegrias e de tristezas. Ora, se as
criadas de Ramalho eram tipicamente portuguesas, a Juliana de Eça tornou-se um
tipo universal. Perdeu as características locais para adquirir as características
universais. Enquanto Ramalho tratou do que havia de transitório na criada —
seus hábitos e sua situação social —, Eça de Queirós explorou o aspecto eterno
que caracteriza todos os seres humanos: a alma e suas manifestações exteriores
— as paixões.
Essa tendência do romancista para o eterno é
inconfundível. Seu primeiro romance, O
Crime do Padre Amaro, é tipicamente português. Utilizando-se das
observações feitas durante o curto período em que serviu como Administrador do
Concelho de Leiria, compôs o cenário do romance. Apenas o cenário, entretanto,
é português, porque o tema, isto é, a intriga que atrai gerações de leitores, é
o amor de Amaro por Amélia, a consequente violação, a gravidez inesperada e o
parto clandestino. Tema tão velho quanto o mundo e tão novo quanto os homens de
hoje. O leitor comum, o grande público que garante a imortalidade do autor,
empresta importância secundária à beleza do estilo e aos problemas sociais que
o romancista encara. Ele segue, apenas, passo a passo, os progressos de Amaro
junto a Amélia, ansiando pelo desfecho e comovendo-se, posteriormente, com a
desgraça dos personagens.
Já no Primo Basílio,
o cenário português perde em vigor e a psicologia dos personagens ganha em
intensidade. Aqui o tema é o adultério, isto é, com ligeiras alterações, o
mesmo que o do romance anterior. E mais uma vez é a inclinação sexual de Luísa
por Basílio que atrai os leitores. Tão vivas são as cenas eróticas que os
críticos, inclusive Ramalho, foram unânimes em proclamar que a intenção moral
do autor havia falhado. Desviava-se Eça de Queirós da Escola realista,
obedecendo às suas tendências íntimas que o impeliam para o eterno, situando-o
acima e além das escolas literárias.
Quanto a Os
Maias, o tema é, de novo, o amor de Carlos por Maria, e desta vez amor
incestuoso. Sempre o mesmo tema, o tema eterno, remontando à Bíblia e aos
trágicos gregos. É visível, porém, a preocupação do autor em obscurecer o tema
invariável, enchendo o livro de quadros da vida portuguesa, que prejudicam a
técnica do romance, sendo, como se tem dito, quase inúteis. Ora, em todos os
personagens de Eça, há pouco de português, mas há muito de humano; e esse traço
universal acentua-se cada vez mais, de livro para livro, culminando com a
personalidade de Fradique, o grande cosmopolita, que de tanto frequentar os
povos, perdeu a nacionalidade, tornando-se apenas um homem. A Fradique
sucede-se os Santos que, além de
universais, são eternos e representam a última etapa da evolução psíquica do
romancista. Há, positivamente, dois Eças: o Eça do grande público e o Eça dos
letrados. O primeiro, na pujança da sua virilidade, escreveu O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio e Os Maias. O segundo, com o espírito amadurecido, senhor da sua
Arte, escreveu A Ilustre Casa de Ramires,
A Relíquia, A Correspondência de Fradique Mendes, A Cidade e as Serras e O Mandarim.
Seria interessante perguntar qual dos dois Eças
mereceu a imortalidade. O primeiro ou o segundo? Ambos, sem dúvida. O Eça dos
letrados consolidou a reputação alcançada pelo Eça do grande público e aquele
respondeu às objeções que poderiam ter sido feitas a este.
***
Diante do panorama geral da obra de Eça de Queirós e
da influência que sobre ele exerceu Ramalho Ortigão poder-se-ia afirmar, com um
pouco de atrevimento, que a colaboração iniciada em O Mistério da Estrada de Sintra se prolongou por toda a vida do
romancista. Temos a impressão de que Ramalho fornecia os cenários e Eça
enchia-os de personagens.
Em conclusão, poderíamos dizer que Ramalho e Eça
representam duas metades do Criador. O primeiro, com a argila inerte, modelou o
homem — veio o segundo e soprou-lhe a vida.
---
CONSTANTINO PALEÓLOGO
Revista Brasileira,
dezembro de 1945.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019)
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